Ninguém é obrigado a fornecer a senha do seu celular

Por Luiz Flávio Borges D'Urso[1]

O aparelho celular tem se tornado, cada vez mais, um dispositivo no qual armazenamos praticamente tudo sobre nossas vidas. Desde nossa agenda de telefones, até fotos, documentos, anotações e mensagens.

Pelo celular recebemos e transmitimos nossos e-mails e mensagens, de modo que ali se encontram nossas conversas profissionais, pessoais e íntimas. Talvez por uma falha do fabricante, não se exige uma senha específica para acessar alguns aplicativos e os e-mails, quando o usuário já tiver desbloqueado o celular.

Habituamos a registrar as nossas vidas, por meio de milhares de fotos e vídeos que são armazenadas no álbum de fotografias do celular, de maneira que, por elas, se pode verificar, facilmente, por onde andamos, quais locais visitamos, com quem estivemos, o que apreciamos, etc. Por este dispositivo, nossa vida é desnudada.

Muitos documentos, inclusive os mais importantes, que outrora estavam no cofre ou em gavetas trancadas em nossas casas e escritórios, agora estão conosco, acompanhando-nos todo o tempo, podendo ser acessados por qualquer pessoa que obtenha a senha do nosso celular.

Nossa agenda diária de compromissos, que antes era feita no papel e descartada ao final de cada ano, agora acumula informações ano após ano, na palma da mão, registrando o passado, o presente e o futuro.

Não há dúvida, que neste aspecto, o aparelho celular se assemelha às gavetas, arquivos e cofres do cidadão, cujo acesso, reitera-se, é extremamente facilitado, bastando inserir uma senha (numérica, biométrica ou de reconhecimento facial) para escancarar todo o seu conteúdo.

A questão principal é se o cidadão pode manter esta senha em sigilo absoluto, não a revelando a ninguém, nem mesmo à polícia ou a um juiz de Direito, mesmo no caso de apreensão do aparelho. A resposta é positiva. O cidadão não está obrigado a fornecer esta senha a ninguém, nem, tampouco, a desbloquear seu celular.

Em outras palavras, caso se obtenha acesso ao conteúdo do celular, sem autorização do seu proprietário ou sem uma ordem judicial, tudo o que for ali encontrado não poderá ser utilizado como prova contra o dono do celular.

Este foi o entendimento da 5ª turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), cujos Ministros decidiram, por unanimidade, no julgamento do RHC 89.981, que a conversa por WhatsApp não pode ser utilizada como prova, quando o seu acesso não foi autorizado pela Justiça, pois será uma invasão, além de uma prova ilegal.

O inciso X do artigo 5º da Constituição Federal brasileira veda o acesso a estas informações, quando estabelece, a inviolabilidade a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas. Assim decidiu o ministro relator Reynaldo Soares da Fonseca, no RHC citado, ao analisar o acesso a mensagens, sem prévia autorização judicial, concluindo que houve violação dos dados armazenados no celular, e em razão disso, determinou o desentranhamento dos autos, das conversas pelo WhatsApp.

Conforme se verifica, as garantias individuais protegem as informações e dados do cidadão constantes do celular, assim, de acordo com a lei, um policial não pode, para produzir provas, obrigar ninguém a informar a senha do celular ou a desbloqueá-lo.

Dúvida persistiria, nos casos em que a apreensão do celular se dá por ordem judicial, ou mesmo quando um Juiz de Direito ordena (ilegalmente), que lhe seja fornecida a referida senha. Nestes casos, o cidadão estaria obrigado a obedecer à ordem judicial e caso não o fizesse, responderia por algum crime?

A resposta é simples. Em nenhuma hipótese o cidadão estará obrigado a fornecer a senha de seu celular a quem quer que seja, nem mesmo a um Juiz de Direito. O aparelho pode ser apreendido, o juiz poderá determinar a realização de perícia e a tentativa da quebra do sigilo da senha, mas não poderá ordenar ou compelir o cidadão a revelar a senha desse aparelho.

Ademais, outro fundamento para esta conclusão decorre do princípio de que ninguém está obrigado a fazer prova contra si mesmo (nemo tenetur se detegere) e também do Pacto San José da Costa Rica (art. 8º, 2, g), do qual o Brasil é signatário, que garante o direito da pessoa de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada.

Diante de tudo isto, verifica-se que a não obrigatoriedade de fornecimento da senha para desbloqueio do celular visa proteger o conteúdo da vida do cidadão, vida esta, que por um fenômeno da atualidade, encontra-se armazenada no seu celular, razão pela qual, este conteúdo precisa estar amparado e protegido pela lei.

 


[1] Luiz Flávio Borges D'Urso é advogado criminalista do escritório D'Urso e Borges Advogados Associados, mestre e doutor em Direito Penal pela USP, presidente da OAB/SP por três gestões, conselheiro Federal da OAB, presidente de honra da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (ABRACRIM).


Este artigo reflete a opinião de seus autores e não necessariamente a opinião do IBDPE.
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As cenas dos próximos capítulos

Dora Cavalcanti[1] e Bruno Salles Ribeiro[2]

Nos círculos jurídicos, é praticamente um consenso que provas obtidas por meios ilícitos não podem ser usadas para acusar, por força de mandamento constitucional. A vedação da prova ilícita, distante de ser uma filigrana processual formalista, é um alicerce do Estado de Direito sem o qual o sistema de justiça se transmuda em mera encenação para o exercício arbitrário de poder.

Paradoxalmente, esse consenso tentou ser desbastado pelo braço de publicidade da Força Tarefa da Lava Jato em Curitiba, que entre as famigeradas “10 medidas contra a corrupção”, elencava a necessidade de “Ajustes nas Nulidades penais”. Um eufemismo que eclipsava a intenção de criar hipóteses em que provas ilícitas poderiam ser convalidadas. Felizmente, prosperaram os princípios da República Federativa do Brasil, e não os de Curitiba. Após amplo processo de consulta pública, o Congresso Nacional rechaçou as propostas legislativas nesse sentido, resguardando com o pacote anticrime a higidez do processo penal democrático.

Agora, porém, que o feitiço voltou-se contra o feiticeiro, protagonistas das conversas reveladas pela Operação Spoofing procuram encontrar justificativas para inviabilizar o conhecimento e o uso das mensagens trocadas no curso de inquéritos e processos, ainda que em favor da defesa de pessoas que foram diretamente impactadas pela relação promíscua e orquestrada entre Ministério Público e Juízo.

No entanto, também é consenso entre os maiores estudiosos do processo penal brasileiro que, ainda que obtidas por meios ilícitos, elementos de prova podem ser utilizados no processo penal, diante da constatação de que essas fontes de informação são meios singulares de demonstração da violação de direitos fundamentais do réu ou acusado.

Em primoroso artigo publicado no “Livro das Suspeições”[3], Juliano Breda recapitula e atualiza a doutrina sobre o tema (Badaró, Casara, Gomes Filho, Grinover, Lopes Filho, Nucci, Scarance Fernandes e Tavares), anotando que “se admite a prova ilícita em favor do acusado, a fim de prevenir uma condenação injusta pela inexistência ou atipicidade do fato, e, também, em face da violação ao devido processo legal”.

Com essas considerações iniciais, é possível que se analise de maneira técnica a validade dos elementos de prova obtidos indigitada Operação Spoofing. No curso das investigações, foram apreendidos os backups de diálogos de Procuradores da República e do ex-juiz da Operação Lava Jato. Do conteúdo de mencionados diálogos, podem emergir duas consequências jurídicas de refração distinta. Por um lado, evidencia-se um possível ajuste entre acusação e juiz que mina por completo a validade da prestação jurisdicional, ante a quebra da imparcialidade. Por outro, emergem suspeitas de possíveis ilícitos praticados pelos envolvidos nas conversas entabuladas.

Nesse último caso, naturalmente, não se pode advogar qualquer outra consequência, a não ser a nulidade das provas. Em que pese o Superior Tribunal de Justiça tenha extensa jurisprudência, de viés pouco garantista, no sentido de que as provas obtidas de maneira fortuita podem ser convalidadas, a nosso sentir os procuradores e o juiz, de forma alguma, poderiam ser acusados criminalmente com base nas mensagens que trocaram, na medida em que mencionadas evidências teriam sido obtidas por meio criminoso.

Por outro lado, qualquer acusado criminalmente que possa se valer de mencionadas informações como prova de sua inocência ou de violações às regras do processo, tem o direito de acessá-las e de utilizá-las, lícita e validamente, em um processo penal.

E o que é mais interessante. A valoração das consequências jurídicas das trocas de mensagens ora reveladas não será feita por seus protagonistas, mas sim pelas partes atuantes nos eventuais processos em que vierem a ser apresentadas. Espera-se, dessa vez, com a necessária equidistância e respeito aos corolários do devido processo legal.

Uma terceira dimensão, que se amplia a partir de agora, consiste em acompanhar os desdobramentos da nova leva de divulgações para além do universo dos investigados e réus diretamente atingidos pela Lava Jato. Como se deu nos grandes escândalos de revelação de dados comprometedores, como Wikileaks e Panama Papers, natural que outras pessoas reclamem legitimidade para pedir providências em razão das gravíssimas ilegalidades desnudadas, na esteira do ofício já encaminhado pela Presidência do Superior Tribunal de Justiça.

A briga vai ser boa e é extremamente relevante do ponto de vista da constante necessidade de aperfeiçoamento das instituições. Embora não reflita o comportamento técnico que em regra caracteriza a atuação do Ministério Público Federal, os bastidores da Lava Jato precisam ser submetidos a escrutínio público para que não se repitam seus métodos. Esse aprendizado passa necessariamente pela invalidação dos resultados obtidos fora das regras do jogo, de modo a desencorajar essa forma de proceder.

 


[1] advogada criminalista, diretora do Innocence Project Brasil e membra-nata do conselho do Instituto de Defesa do Direito de Defesa.

[2] advogado criminalista, mestre em direito pela USP e membro da diretoria do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais


[3] Streck, Lenio; Carvalho, Marco Aurélio, organizadores, Rio de Janeiro: Telha, 2020


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É nula busca e apreensão com base em depoimentos de colaboradores

Fonte: Migalhas 

A 5ª turma do STJ, por unanimidade, anulou busca e apreensão em desfavor de ex-diretor de banco que foi embasada apenas em depoimentos de colaboradores. O colegiado ressaltou que a lei anticrime proibiu a decretação de medidas cautelares ou o recebimento da inicial acusatória com fundamento apenas nas declarações do colaborador.

Consta nos autos que foi deferido pedido de busca e apreensão em desfavor do paciente, cumprido em 12 de março do ano passado, por fatos ocorridos em 2012 e 2013, quando ocupava o cargo de diretor de banco.

A defesa alegou ao STJ que "passados sete anos do fato investigado e considerando que o paciente não mais exerce funções de diretor do banco desde o ano de 2014, não possui mais aparelhos telefônicos ou HD usados à época, nem documentos referentes ao momento do exercício das atividades".

Segundo a defesa, há ausência de contemporaneidade na busca e apreensão e carente de adequada fundamentação, em virtude de se embasar apenas em depoimentos contraditórios de colaboradores.

O relator do caso, ministro Reynaldo da Fonseca ressaltou em seu voto que enquanto o crime investigado não estiver prescrito, são cabíveis todos os meios de produção de prova, desde que devidamente motivada sua necessidade, não havendo se falar, portanto, em contemporaneidade de medida cautelar não pessoal.

No que diz respeito à carência de fundamentação no decreto de busca e apreensão, o ministro lembrou que a lei anticrime alterou a lei 12.850/13 para que, além da sentença condenatória, fosse igualmente proibida a decretação de medidas cautelares ou o recebimento da inicial acusatória, com fundamento apenas nas declarações do colaborador.

"Verifica-se, sem necessidade de revolvimento de fatos e provas, que, realmente, a decisão que decretou a busca e apreensão em desfavor do paciente se encontra deficientemente fundamentada, porquanto embasada apenas em declarações de colaboradores, o que vai de encontro ao disposto no art. 4º, § 16, da lei 12.850/13."

Dessa forma, não conheceu do habeas corpus, mas concedeu a ordem de ofício para anular o decreto de busca e apreensão, bem como as provas dele derivadas, em virtude de deficiente fundamentação, sem prejuízo de que seja novamente decretada a medida, em observância ao regramento legal.

Os advogados Pierpaolo Bottini e Ilana Luz, do escritório Bottini & Tamasauskas Advogados, atuam pelo paciente.

  • Processo: HC 624.608

Veja a decisão.

 


A admissibilidade processual das mensagens reveladas pelo The Intercept no julgamento da suspeição por parcialidade do ex-juiz Sergio Moro

Por Juliano Breda

Ao longo do último ano, o site The Intercept1, a Folha de S. Paulo, a Revista Veja2, o El Pais e outros prestigiados meios de comunicação têm divulgado as notórias mensagens3 trocadas entre agentes públicos que aturaram na operação Lava Jato, vítimas de criminoso ato de hackeamento por pessoas já submetidas à persecução da Justiça.

Até agora, porém, nenhuma resposta definitiva do Supremo Tribunal Federal sobre a possibilidade de admitir esses dados como elementos relevantes para as decisões nos processos criminais relacionados ao conteúdo das comunicações ilegalmente captadas. Tudo indica que o enfrentamento dessa matéria ocorrerá em breve, na oportunidade do julgamento de um pedido do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva de reconhecimento da suspeição do ex-Juiz Sérgio Moro, magistrado que o condenou.

O teor dos diálogos publicados, que denotam inequívoca quebra do dever de imparcialidade do Juiz, pela relação de complementariedade simbiótica com a acusação em flagrante assimetria ao dever de equidistância das partes, não será objeto da presente análise, mas apenas sua admissibilidade como elemento de informação relevante para a decisão do caso.

Desde logo é importante afirmar a impossibilidade do uso desse tipo de prova para o fim de punir qualquer cidadão, no âmbito administrativo ou judicial, ainda que o conteúdo revele uma conduta ilícita. Trata-se de uma garantia assegurada pela Constituição Federal, em seu art. 5º, LVI (são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos), instituída como um obstáculo ético instransponível à atividade probatória do Estado, de forma a assegurar o direito de defesa do acusado contra o exercício arbitrário do poder, muito embora alguns países já estejam admitindo a valoração dos elementos probatórios obtidos dessa maneira.

Em arbitragens internacionais, é cada vez mais comum a valoração como prova de informações reveladas nas publicações de grandes vazamentos de dados por terceiros, que não sejam partes nos litígios4.

Nos Estados Unidos, no ano passado, o Department of Justice ("DOJ") acusou quatro pessoas por diversos crimes, com base nas informações reveladas pela série de publicações "Panamá Papers"5, relatando milhares de operações financeiras a partir do vazamento de dados de offshores panamenhas. Na Inglaterra, em 2017, a Suprema Corte admitiu, por unanimidade, a admissibilidade de documentos sigilosos vazados publicamente no conhecido episódio Wikileaks6.

O tema da prova ilícita e de suas consequências no processo penal adquiriu nas últimas décadas um bom espólio doutrinário e jurisprudencial, mas ainda existe um capítulo pouco explorado na teoria das limitações ao direito probatório: a obtenção, produção, admissibilidade e valoração de uma prova ilícita para favorecer o réu.

É necessário, desde logo, utilizar esse verbo - favorecer - para ampliar o debate não apenas ao problema da absolvição do acusado, em tese de solução mais simples. Ou seja, é possível utilizar uma prova ilícita não apenas para absolver o réu da acusação, mas também para reduzir sua responsabilidade ou de qualquer modo beneficiá-lo, para o fim de reconhecer a violação ao devido processo legal? As legislações dos principais países, inclusive o Brasil, não cuidam expressamente do problema.

A leitura isolada do art. 5º, LVI, da Constituição, conduziria a resposta à literalidade do texto: são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos. E se são inadmissíveis, no processo, o dever se impõe a todos os participantes da relação processual?

A resposta, em primeiro lugar, deve partir da natureza jurídica do direito fundamental à inadmissibilidade da prova obtida por meios ilícitos. Trata-se de uma garantia individual, direito de defesa do cidadão contra a persecução arbitrária e ilegal do Estado7, daí por que a construção do conteúdo normativo não pode cingir-se à literalidade do texto, mas deve se concretizar, de forma ampliativa, com a conjugação das finalidade modernas do processo penal: o respeito aos limites jurídicos da atividade probatória oficial e, essencialmente, a tutela do status de inocência do cidadão.

Aqui já surge a necessidade de uma distinção vital: se a prova é produzida por meio ilícito pelo Estado, por intermédio de suas agências de persecução ou diretamente pelo Juiz, ou se é fruto de atividade probatória privada, pelo próprio acusado ou por terceiro.

Não seria racional, nem atenderia aos mais altos pressupostos de justiça, sancionar o cidadão pela conduta ilícita do Estado, excluindo, desentranhando e destruindo-se uma prova potencialmente favorável à sua posição processual, ao argumento da infração de direitos instituídos em seu favor. Dessa forma, qualquer prova colhida ilicitamente pelo Estado pode ser valorada em benefício do cidadão acusado, eis que a inadmissibilidade, nesse caso, violaria a natureza de um "direito fundamental de defesa" e a concepção moderna do devido processo legal como "processo justo".

E esse consagrado princípio, aceito como um postulado da justiça em todo mundo, ocorre mesmo nas hipóteses em que a prova foi produzida ilicitamente pelo próprio acusado. Alguns sustentam, nessas condições, a analogia da legítima defesa ou do estado de necessidade. As soluções podem ser buscadas no próprio ordenamento processual penal, com a conformação que a Constituição lhe confere. A "justiça como valor supremo", inscrita em nosso Preâmbulo, e a "dignidade da pessoa humana" como fundamento da República servem como paradigmas para a construção da resposta.

Em decorrência desses standards, o sistema de vedações probatórias do ordenamento jurídico não pode ser invocado para a impedir a demonstração de que o cidadão não teve direito a um julgamento justo, proferido em violação aos seus direitos e garantias fundamentais.

Por isso, a conclusão, mediante simples concretização hermenêutica dos valores constitucionais em ponderação, é de que se admite a prova ilícita em favor do acusado, a fim de prevenir uma condenação injusta pela inexistência ou atipicidade do fato e, também, em face da violação do devido processo legal. A exceção, aponta a doutrina, restringe-se à hipótese de um grave atentado aos direitos fundamentais praticado pelo próprio autor do fato, como, por exemplo, o emprego de tortura, especialmente porque nesse caso a proibição é absoluta, sem relativizações.

De outro lado, se a atividade probatória vedada deriva do próprio Estado ou de terceiro particular, como ocorre no caso concreto, ou seja, se a ilegalidade da produção da prova não é de autoria do acusado beneficiário da revelação que a prova indevidamente obtida produz, não é possível cogitar-se de sua inadmissibilidade processual, eis que esse direito, repita-se, é instituído em benefício do acusado e não pode ser lido em seu desfavor.

Nesse sentido, é a opinião dos maiores autores estrangeiros sobre a matéria, tais como Manuel da Costa Andrade8, ao defender a admissibilidade da prova "quando a valoração configure o único meio de salvaguarda de valores de irrecusável prevalência e transcendentes aos meros interesses da perseguição penal". Franco Cordero9 sustenta que o "l'acertamento dell'innocenza è una posta troppo importante, per essere sacrificata agli idoli dela procedura, enquanto Claus Roxin10 anota que "as proibições de métodos probatórios só estão dirigidas aos órgãos da persecução penal". Na mesma linha, há vários pronunciamentos da doutrina nacional, todos favoráveis à utilização da prova ilícita em favor do réu, como, por exemplo, Lenio Streck11, Ada Pellegrini Grinover, Antonio Scarance Fernandes12, Antonio Magalhães Gomes Filho13, Aury Lopes Júnior14, Juarez Tavares e Rubens Casara15, Guilherme Nucci16, entre outros.

Em parecer oferecido no habeas corpus do Ex-presidente Lula, a Procuradora Geral da República Raquel Dodge simplesmente argumentou que "o material publicado pelo site The Intercept Brasil....ainda não foi apresentado às autoridades públicas para que sua integridade seja aferida. Diante disso, a sua autenticidade não foi analisada e muito menos confirmada. Tampouco foi devidamente aferido se as referidas mensagens foram corrompidas, adulteradas ou se procedem em sua inteireza, dos citados interlocutores. Estas circunstâncias jurídicas têm elevado grau de incerteza neste momento processual, que impede seu uso com evidência"17.

Nessa manifestação a PGR sustentou a possibilidade em tese de "que, com o furto e uso de identidade, tais mensagens tenham sido adulteradas ou de alguma forma manipuladas. Trata-se de grave e criminoso atentado contra o Estado e suas instituições, que está sob a devida apuração pelos órgãos competentes".

Ao julgar outro pedido de concessão de habeas corpus em que se pleiteava a liberdade ao ex-Presidente Lula, com o argumento incidental da suspeição do magistrado de primeira instância, logo após as primeiras revelações, o Ministro Gilmar Mendes "reiterou a necessidade de adiar a conclusão do julgamento. Segundo ele, novos pontos trazidos pela defesa sobre a suspeição do ex-juiz Sérgio Moro, relacionados à divulgação pelo site "The Intercept" de diálogos entre ele e procuradores integrantes da Lava-Jato, precisam ser mais bem analisados. Em seu entendimento, além desses diálogos, a interceptação telefônica do escritório de advogados encarregados da defesa do ex-presidente demonstra a plausibilidade jurídica da alegação de suspeição, pois teria ocorrido o monitoramento de comunicações entre defesa e réu. Tal situação justificaria a concessão da liberdade ao ex-presidente até o julgamento do mérito do HC. A proposta foi acompanhada pelo ministro Ricardo Lewandowski".

Nessa sessão de julgamento, o ministro Edson Fachin, em relação às conversas divulgadas pelo "The Intercept", destacou "que não é possível levar este fato em consideração até que seja realizada investigação sobre sua autenticidade"18.

Meses depois, em razão das prisões dos autores do hackeamento das mensagens, tudo indica que os diálogos eram mesmo autênticos e que o material apreendido pelas autoridades públicas é íntegro e que não houve adulteração das mensagens. Em alguns casos, os diálogos foram confirmados por determinados interlocutores19.

O Ministério Público Federal, que tem acesso a todos esses elementos, pois investigou e denunciou os autores dos crimes de invasão de dispositivos informáticos e violação indevida de comunicações telemáticas, poderia facilmente ter demonstrado a falsidade ou distorção das mensagens.

O silêncio eloquente do órgão de acusação opera como mais um forte elemento de confirmação da veracidade das mensagens publicadas pelo The Intercept ou, em sentido inverso e suficiente para a admissibilidade da prova, da inexistência de qualquer indício que aponte para a inautenticidade ou falta de integridade do material divulgado pelos meios de comunicação.

Não há, portanto, justificativa constitucionalmente legítima para que essas informações não sejam objeto de exame pelo Supremo Tribunal Federal como mais um elemento probatório relevante para decidir se as garantias fundamentais do cidadão foram plenamente respeitadas, entre elas a imparcialidade do julgador.

 


Juliano Breda: Advogado. Pós-Doutor em Direito pela Universidade de Coimbra. Mestre e Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná.


1 Clique aqui, acessado em 2/7/2020.

2 "Novos diálogos revelam que Moro orientava ilegalmente ações da Lava Jato" clique aqui, acessado em 2/7/2020.

3 Clique aqui, acessado em 2/7/2020.

4 "Since the WikiLeaks scandal, the legal parameters for admissible evidence seem poised to change: evidence that would have been considered inadmissible due to its privileged or confidential character is now admissible because it is considered to be public information" Ricardo Ortiz em clique aqui, acessado em 2/7/2020.

5 Clique aqui, acessado em 2/7/2020.

6 Clique aqui, acessado em 2/7/2020.

7 Em clássica obra, o Ministro Gilmar Mendes sustenta que "na condição de direitos de defesa, os direitos fundamentais asseguram a esfera de liberdade individual contra interferências ilegítimas do Poder Público, provenham elas do Executivo, do Legislativo ou, mesmo, do Judiciário". Direitos fundamentais e controle da constitucionalidade. Estudos de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 3.

8 "Nem deve, de resto, desatender-se a possibilidade de o processo penal se constituir e sede autônoma de revelação, actualização ou mediação de conflitos de interesses, susceptíveis de - em nome, v. g. da prevenção de perigos concretos - ditar a utilização de um meio de prova criminalmente obtido. Como sucederá quando a valoração configure o único meio de salvaguarda de valores de irrecusável prevalência e transcendentes aos meros interesses da perseguição penal, máxime em se tratando de valores encabeçados por particulares e atinentes aos direitos fundamentais. Assim e concretamente quando, v. g., a valoração duma gravação ilícita represente a única possibilidade de alcançar a absolvição de um inocente infundadamente acusado de um crime. Dessa forma se prevenindo o intolerável atentado à liberdade e à dignidade humana que a condenação penal já de per si constitui, posta mesmo entre parênteses a conhecida cadeia das sequelas negativas de uma pena como a prisão" (Sobre as proibições de prova no processo penal. Coimbra: Coimbra Editora, 1992, p. 45 e 46).

9 "Ci si chiede ancora il divieto di valutare la prova irritualmene acquisita, operi incondizionatamente ovvero trovi uma deroga nel caso in cui dalla risultanza che dovrebbe essere amputata, emergano illazioni favoveroli alla difesa. Se si accogliese il secondo termine del dilema, il fenomeno muterebbe volto: saremmo di fronte non tanto a um divieto probatório quanto ad una regola legale decisoria, che vieta al giudice d'assumere certe acquisizioni a premessa d'una condanna; in tal modo si attenuerebbe la contradizione ínsita nella figura d'una prova inammissibile e tuttavia processualmente relevante, sai purê in bonam parte. Quest'ultima è la soluzione per cui optiamo; essa s'inquadra in um principio generale, in cui segnacolo si coglie nell'art. 152: l'acertamento dell'innocenza è una posta troppo importante, per essere sacrificata agli idoli dela procedura" (Tre studi sulle prove penali. Milano: Giufrrè Editore, 1963, p. 171).

10 "Cuando esos particulares proceden en ello ilicitamente (p.ej., sustraen documentos) y ponen a disposición de las autoridades de la investigación las pruebas así obtenidas, se cuestiona si las pruebas obtenidas pueden ser valoradas en el procedimento penal. Dado que las disposiciones sobre el procedimento de la StPO (!y ante todo de las prohibiciones de métodos probatórios!) sólo están dirigidas a los órganos de la persecución penal, este tipo de pruebas son, en princípio, valorable; una excepción debe regir unicamente para casos de extrema violación de derechos humanos..." (Derecho Procesal Penal. Buenos Aires: Editores del Puerto, 2000, p. 206). 

11 Os fins justificam os meios? No Direito, não! Mas na "lava jato", sim!, acessado em 2/7/2020.

12 Grinover, Scarance e Antonio Magalhães Gomes Filho. As nulidades no processo penal. 8ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 161 e 162. 

13 "Mas, por outro lado, são semelhantes considerações a respeito da ponderação de interesses que autorizam a admissão da prova ilícita pro reo: no confronto entre uma proibição de prova, ainda que ditada pelo interesse de proteção a um direito fundamental, e o direito à prova de inocência parece claro que deva este último prevalecer, não só porque a liberdade e a dignidade da pessoa humana constituem valores insuperáveis, na ótica da sociedade democrática, mas também porque ao próprio Estado não pode interessar a punição do inocente,..." (Direito à prova no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 106 e 107).  Nesse mesmo sentido, em Gomes Filho, Toron e Badaró (Código de Processo Penal Comentado. 2ª ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2019, p. 417).

14 "Neste caso, a prova ilícita poderia ser admitida e valorada quando se revelasse a favor do réu. Trata-se da proporcionalidade pro reo, onde a ponderação entre o direito de liberdade de um inocente prevalece sobre um eventual direito sacrificado na obtenção da prova..." (Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional. Volume I. Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, p. 566 e 567).

15 "No Brasil, reconhece-se, sem maiores divergências, a possibilidade de utilização da prova ilícita favorável ao acusado (prova ilícita pro reo). Trata-se de evidente manifestação do princípio da proporcionalidade, em que, no caso concreto, o princípio da ampla defesa contrasta e prevalece sobre o princípio da vedação das provas ilícitas (trata-se de uma incidência do favor rei)". (Prova e Verdade. São Paulo: Tirant lo Blanc, 2020, p. 92).

16 "Porém, caso se trate de prova indispensável para garantir a absolvição do acusado, demonstrando seu estado natural de inocência, jamais se pode desprezá-la. Lembremos que o Estado possui um propósito ao vedar a produção de provas ilícitas, que é manter a ética e a lisura dos atos processuais, mas, acima disso, encontra-se a realização da justiça e a total inviabilidade de cometimento de um erro judiciário. Inexiste fundamento lógico para garantir a ética, em nome da falsa condenação de um inocente: transborda-se da lisura dos meios para a ruptura ética do resultado." (Princípios constitucionais penais e processuais penais. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 352/353).

17 Cópia da Manifestação da PGR em clique aqui, acessado em 2/7/20.

18 Notícia do julgamento publicada no site oficial do STF em clique aqui, acessado em 2/7/20.

19 Como exemplo de algumas confirmações, clique aqui e clique aqui, acessados em 4/7/20.


Este artigo reflete a opinião de seus autores e não necessariamente a opinião do IBDPE.
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GAECOS passam a ter competência para investigar crimes de corrupção

Fonte :Agência Brasil.

A equipe da lava-jato, que nos últimos anos teve uma intensa atuação nos rumos da política nacional, foi dissolvida nesta segunda-feira, 1, como informou o Ministério Público Federal.

Alguns dos integrantes da força-tarefa foram realocados para o Grupo de Atuação de Combate ao Crime Organizado do Estado, o GAECO, criado em 2013 e considerado referência no combate aos crimes organizados nos Ministérios Públicos estaduais e, por isso colocado à frente das investigações da sobre corrupção e crime organizado no país.

Dos procuradores que atuavam na operação, quatro passaram a integrar o GAECO do estado, que passou a contar com nove procuradores, designados até agosto de 2022. Os demais, cerca de dez membros, continuarão na operação até 1° de outubro deste ano sem dedicação exclusiva e de modo eventual, para depois voltar às suas lotações originárias.

Tais modificações – que já estavam previstas numa portaria publicada pela PGR desde dezembro do ano passado – fazem parte de uma reformulação das instituições de combate à corrupção e são amplamente defendidas pelo Procurador-Geral da República, Augusto Aras, o qual já vinha travando embates com o grupo desde 2020.

Também a força-tarefa da Lava-jato no Rio de Janeiro está passando por reestruturações, sendo transferida ao GAECO da região. Os procuradores, por sua vez, ainda aguardam a designação de suas novas funções. Aras ainda prorrogou, a pedido do grupo, o prazo final para a designação dos procuradores atuantes para 31 de março. Anteriormente, este terminaria no dia 31 de janeiro.

 

Lava-Jato no Paraná

  • 79 fases deflagradas
  • 130 denúncias
  • 533 acusados
  • 174 condenados
  • 1450 mandados de busca e apreensão
  • 211 conduções coercitivas
  • 163 prisões temporárias
  • 132 prisões preventivas
  • 209 acordos de colaboração premiada
  • 352 pedidos de cooperação com diversos países
  • 17 acordos de leniência
  • 15 bilhões aos cofres públicos.

 

 


A prova aparentemente "lícita" obtida por autoridade de má-fé é prova ilícita? "Um drible investigatório"

Por Catharina Araújo Lisbôa[1] e Pablo Domingues Ferreira de Castro[2].

Eis o caso (em abstrato), para que se torne este artigo mais didático e específico: Um Autoridade Policial que queria, por meio de exame grafotécnico, certificar se uma determina assinatura “conferia” (análise de traços, empunhaduras, etc.) com outro documento dito suspeito – objeto da discussão -. Ou seja, queria certificar se foi o mesmo punho que assinou dois documentos distintos.

Para que se deixe o corte temático muito bem delimitado do que se pretender discutir nestes comentários, não se trata, a hipótese, pois, daquela discussão da prova ilícita obtida de boa fé retratada naquele projeto incoerentemente chamado de “pacote anticrime” (curioso seria se alguém o nomeasse de pacote a favor do crime) que, ao fim e ao cabo, com a promulgação da lei nº 13.964, de 24 de dezembro 2019 acabou tendo a inconstitucional previsão sido (acertadamente) excluída. Afinal, o que é boa fé? Seria sempre aquela que a autoridade policial dissesse. Discussão atrasada e mais uma tentativa de importação dos equívocos norte-americanos. Sobre o tema e com melhor propriedade, confira-se artigo da Professora Fernanda Ravazzano[3].

Mas o caso é outro: O investigado é convocado a depor pela Autoridade Policial que o, após a oitiva, textualmente, convida para que forneça material grafotécnico para que se sujeite a perícia e análise da já dita eventual constatação de identidade de assinaturas em documentos distintos (é uma admoestação, convenhamos).

Expressamente, valendo-se do até então direito de não produzir prova contra si mesmo declara: “não quero fornecer material algum”.

Eis que exsurge o “drible jurídico” dado pela autoridade policial (o termo não é nosso, mas amolda-se à situação de modo cirúrgico): com a recusa de fornecimento de material gráfico, a Autoridade Policial colhe a assinatura que o investigado apôs na ATA de audiência e envia à perícia. A partir daí pouco importa o resultado (se confirmado ou não a identidade de grafias). O que se questiona é o método. Ou, no linguajar mais técnico (ou para alguns coloquial) o modus operandi, só que dessa fez feito por uma Autoridade.

O que impende questionar e o que compreende como hipótese e problema desse breve artigo é: pode uma Autoridade Policial engabelar um investigado e, mesmo com sua recusa expressa, colher material seu fornecido para assinatura de uma ATA de audiência (que é um documento com fins específicos: atestar que o que foi dito é por quem o subscreveu) que, frise-se, é o mesmo documento que contempla a sua recusa de fornecer material gráfico?

Assinar a ata, onde constou-se que não se deseja fornecer material gráfico, é um documento lícito. Ali, o investigado acusado, não só subscreveu e atestou o conteúdo daquilo que declarou, mas incluiu a manifestação de sua vontade de não produzir provas contra si.

Porém, questionar o acusado investigado e ter a recusa deste do fornecimento do material gráfico e, ainda assim, encaminhar um documento subscrito de boa-fé (sim, foi assinado, primeiro porque era uma ata e segundo porque nele consignou-se a recusa da obtenção da prova) à uma perícia grafotécnica por quem, a rigor, deve zelar pelas boas práticas dos atos procedimentais é notoriamente má fé (enganou-se o investigado!). Se a intenção do questionamento fosse irrelevante, não se necessitaria questioná-lo. Mas, se questionou, é porque tinha relevância a resposta. E, sabendo da recusa, encaminhar o material à perícia é uma ação de má fé. Não fosse necessária a aquiescência do investigado apenas se pegaria a ata e enviaria à perícia se nada lhe questionar a respeito. Simples.

Há dois trechos da obra dos Professores Rômulo de Andrade Moreia e Alexandre Morais da Rosa que retratam bem a fundamentação daquilo que se pretende concluir.

Eis o primeiro:

“Sendo assim, entendemos que o direito ao silêncio , declarado em nossa constituição, e o de não se declarar culpado, previstos em ambos os documentos internacionais desobrigam o indiciado ou o acusado, compulsoriamente a submeterem-se  a coleta matéria biológico para efeitos de identificação criminal (ou por qualquer outro método, fotográfico ou datiloscópico) sendo nulos “los posteriores analises genéticos que se pratiquen sobre dicho material”, “cuando se estime que la extraccion u obtencíon del material celular necessário para la pratica de la huella genética há vulnerado algum derecho fundamental (integridade física , intimidade, etc)”.[4](grifos dos autores)

Eis o segundo:

O drible investigatório todavia pode ser realizado mediante as formas e ilegais conduções coercitivas, já que o investigado acusado estará, mesmo que por certo tempo, sob a tutela estatal, dentro da repartição pública, momento em que eventuais fios de cabelo, saliva, excrementos, suor, etc, poderão ser captados pelo Estado. Todavia, manipulada dessa forma a obtenção será um ardil fraudulento, espécie de doping, pelo qual se fraudará a investigação.[5] (grifos dos autores).

O caso em exame é a junção das duas anomalias descritas pelos autores: uma colheita da prova contra expressa vontade de quem foi solicitado a submetê-la (investigado ou acusado) e promovida dentro da própria repartição pública, sob a tutela estatal.

É, pois, uma obtenção de prova manipulada, com um método fraudulento e ardiloso (é o tal modus operandi tanto verbalizado pelas Autoridades para acachapar os investigados no invencionismo chamado de “operação policial”. Uma fraude à própria investigação.

A prova é, sem receio do que agora se afirma, ilegal. Mas não somente ilícita, é antiética e imoral (não que estes dois valores importem ao direito) o que, num contexto de tantos discursos (muitas vezes inapropriados) confusos entre direito e ética, vale o registro: Autoridades também têm modus operandi e, por vez, agem de má fé. E, seja uma forma antiética ou imoral, para uma análise jurídica e abstrata, pouco importa. Releva é compreender que é uma prova ilícita e incompatível em um Estado Democrático de Direito. Alguém disse, certa feita (e talvez não exatamente com essas palavras, mas com esse mesmo sentido), que “não se precisa ter a valentia ao ponto de pôr a própria vida em risco e nem a covardia de não se exigir que seus direitos cívicos sejam exercidos”. Exigir o cumprimento da Constituição Federativa da República é um direito e dever cívico, não sejamos covardes.

Ora, não é preciso que se relembre, que o processo penal – e aí inclua-se a persecução penal composta por investigação preliminar, inquérito e ação penal, é, antes de tudo, uma garantia ao acusado-investigado frente ao próprio poder punitivo estatal, de maneira a que se tenha, a todo tempo, respeitado os seus direitos fundamentais, notadamente pelos entes públicos.

Para que se fique mais claro: não se quer questionar a Autoridade de quem as tem por atribuição Constitucional, questiona-se o método de quem obtém provas por meios ardilosos. Aí é mera exigência de um dever cívico de que a investigação transcorra em um ambiente legal e democrático.

Permitir ou convalidar modalidades de “dribles investigatórios” é, na verdade, uma desnaturação completa da função primordial do sistema acusatório e um retrocesso ao sistema inquisitorial.

 


[1] Advogada criminalista, especialista em Ciências Criminais, professora da pós-graduação em Ciências Criminais da Faculdade Baiana de Direito.

[2] Advogado criminalista, doutorando pelo IDP(DF), mestre pela UFBA, especialista pelo IBCCRIM, pós-graduado pela UFBA, professor de cursos de pós-graduação, coordenador adjunto da pós-graduação em Ciências Criminais da Faculdade Baiana de Direito.


[3] https://canalcienciascriminais.jusbrasil.com.br/artigos/371621378/sergio-moro-e-a-admissao-da-prova-ilicita-ha-boa-fe-na-ma-fe#:~:text=O%20Juiz%20S%C3%A9rgio%20Moro%2C%20em,Faith%20excepction%E2%80%9D%20do%20processo%20penal

[4] Rosa, Alexandre de Moraes da. Não vale tudo no processo penal: escritos marginais de dois outsiders/Alexande Moraes da Rosa, Rômulo de Andrade Moreira – 1 ed, Florianópolis [SC]: Emais: 2020. Fls. 26.

[5] Rosa, Alexandre de Moraes da. Não vale tudo no processo penal: escritos marginais de dois outsiders/Alexandre Moraes da Rosa, Rômulo de Andrade Moreira – 1 ed, Florianópolis [SC]: Emais: 2020. Fls. 27.


Este artigo reflete a opinião de seus autores e não necessariamente a opinião do IBDPE.
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Sobre a Proteção Penal da Reputação de Pessoas Jurídicas

Por Guilherme Brenner Lucchesi[1]

A honra figura como objeto de proteção jurídico-penal em todo o desenvolvimento do ordenamento jurídico brasileiro. O que tem se alterado com a passagem do tempo é o conteúdo desse objeto de proteção, tendo se discutido tratar de um bem integrado na personalidade da pessoa ou de um valor cuja preservação interessa à sociedade. Aqui se pode distinguir dois diferentes interesses merecedores de tutela jurídica, uma de ordem interna (subjetiva) e outra de ordem externa (objetiva). Honra subjetiva é consistida pela estima que a pessoa tem por si própria, referindo-se ao sentimento próprio de dignidade. Por outro lado, honra objetiva é formada pelos conceitos de consideração e respeito que as outras pessoas têm pelo indivíduo, a partir de sua reputação. Ambas estas facetas da honra são igualmente importantes à pessoa e recebem tutela penal no CP.

A legislação penal, nesse sentido, prevê três diferentes crimes contra a honra: calúnia (art. 138, CP), difamação (art. 139, CP) e injúria (art. 140, CP). Os crimes de calúnia e difamação buscam coibir a imputação de fatos ofensivos às pessoas, de modo que se objetiva proteger a reputação do sujeito passivo, isto é, maneira como ele é visto por outras pessoas de seu meio e convivência, o que se denomina honra objetiva. Por outro lado, ao coibir a ofensa à dignidade ou decoro do sujeito passivo, pela atribuição de vícios ou defeitos, ou mesmo pelo ultraje mediante palavra, gesto ou sinal insultante, o crime de injúria protege ao sentimento de auto respeitabilidade do sujeito passivo, o que se denomina honra subjetiva.

Há muito se discute quem pode ser vítima de um crime contra a honra. É certo que o sujeito passivo deve ser o destinatário nominado ou determinável, quando não for nominado, das ofensas proferidas pelo autor. Qualquer que seja sua condição pessoal, o indivíduo possui direito à sua reputação e sentimento de auto respeitabilidade. Porém, não é suficiente que o sujeito tenha se sentido ofendido pela linguagem do autor, e sim que a sua honra tenha sido diretamente atacada.

Há, porém, importante questão relativo à possibilidade de se considerar crime as ofensas dirigidas a pessoas jurídicas.

A visão tradicional das pessoas jurídicas como ficção é antiquada, e representa apenas uma dentre muitas teorias individualistas — i.e. que negam as realidades coletivas na estruturação da sociedade — da pessoa jurídica. O direito admite teorias voluntaristas e institucionais da pessoa jurídica[2], reconhecendo as pessoas jurídicas como uma realidade à parte das pessoas naturais e, portanto, dotadas de personalidade. É justamente este atributo personalidade que confere às pessoas jurídicas a possibilidade de figurar como sujeito passivo de ofensas à honra objetiva, pois dotadas de reputação que não se confunde com a reputação das pessoas naturais que integram a sua administração ou composição societária.

Para além de antecedentes legais que previam expressamente a punibilidade de ofensa à honra de entidades (art. 21, § 1.º, “a”, Lei de Imprensa; art. 28, Dec.-Lei 4.766/1942), contemporaneamente há especial preocupação com ética empresarial e compliance por parte de pessoas jurídicas, revelando um interesse na manutenção de sua reputação, não apenas na qualidade de produtos ou serviços oferecidos, mas também na própria noção de estrito cumprimento de regras pela entidade.

Apesar de a questão ainda não estar pacificada na jurisprudência, tem-se admitido que pessoa jurídica figure como sujeito passivo somente do crime de difamação.[3] Não se admite crime de injúria contra pessoa jurídica, por não haver um sentimento de dignidade ou decoro próprio dos entes personificados.

Por outro lado, ainda que também se trate de honra objetiva, igualmente não se tem admitido a tipificação de crime de calúnia contra pessoas jurídicas, por se entender que essas não cometem crimes (societas delinquere non potest). Parece olvidar-se, contudo, que a responsabilidade penal das pessoas jurídicas já é realidade em nosso ordenamento jurídico no que diz respeito aos crimes contra o meio-ambiente, ainda que fundada em um modelo de heterorresponsabilidade (art. 3.ª, Lei 9.605/1998). Ademais, diante das proposições legislativas em trâmite para a reforma da legislação penal brasileira, a responsabilidade penal das pessoas jurídicas para outras espécies delitivas parece ser realidade premente, de modo que a jurisprudência quanto à (im)possibilidade de calúnia contra pessoa jurídica possa vir a ser atualizada em breve.

 


[1] Advogado sócio da Lucchesi Advocacia. Professor da Faculdade de Direito da UFPR. Doutor pela UFPR. Presidente do IBDPE.


[2] J. Lamartine Corrêa de Oliveira define a pessoa jurídica a partir de uma concepção ontológica-institucional com especial apoio na noção de analogia. A analogia “não é aqui utilizada no sentido pós-normativo em que aparece como recurso utilizado na aplicação da norma, mas no sentido pré-normativo de analogia entre as categorias da vida que funcionam como dado prévio ao construído normativo” (A dupla crise da pessoa jurídica, p. 16), não caracterizando ofensa à garantia de legalidade do Direto penal.

[3] “A pessoa jurídica pode ser vítima de difamação, mas não de injúria e calúnia. A imputação da prática de crime a pessoa jurídica gera a legitimidade do sócio-gerente para a queixa-crime por calúnia.” (STF, RHC 83091, rel. Min. Marco Aurélio, j. 05.08.2003).

Em sentido contrário: “Alguém, em todo o Direito, notadamente no contexto legislativo, indica o ser humano. Jamais a legislação se refere à pessoa jurídica como alguém. Interpretação lógica reafirma essa conclusão. Honra, no Capítulo ‘V’ – Dos Crimes contra a Pessoa, significa o patrimônio moral do homem. Daí a impossibilidade de ser ofendida em sua dignidade, decoro ou reputação na sociedade. A pessoa jurídica tem reputação, sim; todavia, de outra espécie, ou seja, significado de sua atividade social, que se pode sintetizar no valor de seu relacionamento, dado ser titular de personalidade jurídica. Honra e reputação da empresa não se confundem. A primeira possui o ‘homem’. A segunda, a ‘atividade comercial ou industrial’.” (STJ, HC 7.512, rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, j. 30.06.1998). Em sentido contrário: “A jurisprudência desta Corte, sem recusar à pessoa jurídica o direito à reputação, é firmada no sentido de que os crimes contra a honra só podem ser cometidos contra pessoas físicas. Eventuais ofensas à honra das pessoas jurídicas devem ser resolvidas na esfera cível. Recurso desprovido.” (STJ, REsp 493.763/SP, rel. Min. Gilson Dipp, j. 26.08.2003).


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Reflexões sobre a convergência entre o Compliance e a Justiça Restaurativa

Nicole Trauczynski[i]

Camila Rodrigues Forigo[ii]

O Direito Penal Econômico é integrado por discussões que perpassam por questões extremamente contemporâneas e que necessitam ser objeto de atualização constante.

Nessa área de estudo, o compliance ganhou lugar de destaque e, com o passar dos anos, seus pressupostos, suas qualidades e seus problemas têm sido alvo de discussão cada vez mais crítica.

Ainda que seja uma ferramenta importante na prevenção de ilícitos corporativos, uma série de aprimoramentos se faz indispensável, seja pela necessidade de instituição de uma fiscalização e uma efetiva avaliação desses programas pelo setor público, seja pelas consequências penais que decorrem da sua implementação.

Paralelamente, a (in)eficácia do sistema penal repressivo há décadas é objeto de críticas e de sugestões de aprimoramento. Os elementos que levam a essa discussão são inúmeros, mas para o recorte do presente artigo dois podem ser destacados: a necessidade de se pensar em uma forma efetiva de prevenção da criminalidade e uma resposta estatal que seja capaz de reinserir socialmente o condenado após o cumprimento da pena, levando em consideração também os aspectos dos demais sujeitos envolvidos no cometimento do delito, como por exemplo, as vítimas e as consequências sociais.

A convergência entre esses dois temas foi objeto de um Seminário promovido pelo Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico (IBDPE) no dia 01 de outubro de 2020, intitulado “Justiça Restaurativa Empresarial: Problemas e Desafios”[iii] e este trabalho se destina a apresentar algumas das reflexões que foram expostas naquela ocasião.

Para o início dessa breve reflexão, é fundamental ter em vista que o delito praticado no âmbito empresarial apresenta algumas características gerais que o distinguem da criminalidade comum.

Além desse crime ser diferenciado pelas características pessoais do delinquente, já que geralmente se trata de pessoa instruída, com bom poder aquisitivo e que ocupa altos cargos hierárquicos dentro de uma empresa, o crime empresarial apresenta consequências sociais e econômicas muito graves, sendo o dano dificilmente objetivável ou identificável e a vítima, muitas vezes, não é aparente ou de fácil identificação[iv]. É de se recordar, ainda, que o âmbito de proteção dos delitos econômicos se volta, muitas vezes, para bens jurídicos de caráter supraindividual ou coletivos, razão pela qual sua violação pode acarretar danos generalizados. Ademais, em delitos ambientais de graves repercussões, a responsabilização penal das pessoas físicas envolvidas não raras vezes é de difícil aferição, prejudicando a responsabilidade pessoal dos autores do delito e remanescendo apenas sanções de caráter econômico em face das empresas.

Ressalte-se, ainda, que a atuação em um ambiente coletivo, próprio de uma estrutura empresarial, incrementa o risco de aparecimento de condutas desviantes por parte de seus diretores e empregados, já que o sentimento de responsabilidade individual existente em uma corporação é volatilizada, de modo que os agentes praticam condutas que provavelmente não desenvolveriam individualmente[v]. Isso é classificado por Omar Palermo e Mateo Bermejo como “atitude criminal de grupo”[vi] e pode decorrer de uma cultura empresarial criminógena[vii] que se origina também das dificuldades de imputação de responsabilidade jurídica aos agentes internos da empresa.

Alie-se também a existência de uma crise de valores na empresa, que, ao invés de estimular preceitos de solidariedade e de consideração com os demais, fomenta o egoísmo e a busca de seus próprios interesses, muitas vezes em detrimento da obediência ao direito[viii].

Sem pretender esgotar os elementos que caracterizam a empresa como um ambiente propício ao cometimento de ilícitos, esses pontos apresentados, refletem, principalmente, aspectos valorativos existentes no ambiente empresarial e nos indivíduos ali inseridos.

E é nesse contexto que o compliance ganha relevo, já que pode ser implementado com atenção aos valores e a ética que devem reger a atividade negocial.

Nesse sentido, o Professor Eduardo Saad-Diniz, que gentilmente colaborou com o Seminário e enriqueceu profundamente o debate, esclarece que “o planejamento estratégico de compliance se for mesmo o caso de se livrar de fanatismos ou obsessão pela punição de infrações econômicas, deve supor elevada capacidade de aprendizagem com os erros, apresentando, de forma idônea, sua postura colaborativa com as autoridades fiscalizadoras e reguladoras”[ix].

E aqui, então, se verifica a convergência com a temática da justiça restaurativa.

A Justiça restaurativa busca a recomposição do dano em sua integralidade e sob todos os seus aspectos, isto é, a partir de uma “composição” entre vítimas e sujeito ativo do delito a fim de se perquirir uma situação mais próxima do status quo possível. Assim leciona Giamberadino: “Ao invés da aflitividade, a dimensão comunicativa da censura deve abrir espaços de proatividade aos sujeitos vitimizados e criminalizados para que, (...) sejam desafiados a ressignificar o ocorrido e propor medidas criativas e simbólicas de reparação e ‘restauração’”[x]. É nesse sentido também que Luz e Santana defendem a integração com os interesses e opiniões dos demais envolvidos[xi], como ocorre com a justiça restaurativa, diferentemente das persecuções comuns que tornam a vítima e o ofensor mero objetos e expectadores dos processos e procedimentos em que estão envolvidos, como afirma Martín[xii].

Ocorre que o compromisso por programas de compliance mais efetivos são, muitas vezes, assumidos por grandes corporações em decorrência de acordos de leniência firmados pelas empresas, não raras vezes em paralelo com acordos de colaboração premiada firmados por seus executivos, a fim de restabelecer a continuidade das funções da empresa e aceitar a resposta sancionatória imposta pelo Estado pelos fatos ilícitos praticados. No entanto, a mera assunção de programas dessa natureza, sem a conscientização do empresariado pela adesão de políticas de justiça restaurativa não tem o condão de apaziguar e restabelecer o possível dano ocasionado no âmbito dessa criminalidade, seja em face das vítimas diretamente atingidas ou da comunidade como um todo. Não se trata de impor mais uma medida sancionatória, mas a busca pela conscientização da importância da justiça restaurativa a fim de trazer à resolução do conflito as perspectivas e a participação de todos os seus envolvidos.

Com efeito, o paradigma de punir pelos mecanismos tradicionalmente adotados não tem apresentado respostas satisfatórias ao fenômeno delitivo, eis que há alta taxa de reincidência no cometimento de delitos[xiii], além de não recomporem o dano social ocasionado.

Tal situação se concretiza nestes termos em razão da presença exclusiva de sujeitos estatais (responsáveis pela persecução e pelas decisões decorrentes dos atos criminosos), numa perspectiva abstrata de aplicação das normas e numa postura de superioridade e distanciamento frente aos jurisdicionados, na medida em que as decisões são tomadas à margem da vivência concreta dos envolvidos no fenômeno delitivo e do diálogo entre eles. Nesse jaez, a maior aplicabilidade da justiça restaurativa teria o condão de escutar a(s) vítima(s) e demais envolvidos no cometimento do delito para efetivamente restabelecer a paz social.

Desta forma, defende-se a o incremento da utilização das balizas utilizadas na justiça restaurativa nos programas de compliance ou de forma complementar a esses, visando uma maior aproximação entre aqueles que são atingidos pelo ato delitivo e aqueles que aplicarão os referidos programas, visando uma maior efetividade e uma resposta integral social, alçando-se a real responsabilidade social que deve nortear a atividade empresarial.


[i] Mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Especialista em Direito Penal Econômico e Empresarial pela Universidad Castilla-La Mancha, Toledo/Espanha. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela PUC-SP. Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e das Comissões da Mulher Advogada e de Advogados Criminalistas da OAB/PR. Conselheira do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico (IBDPE). Advogada.

[ii] Doutoranda em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Direito Econômico e Desenvolvimento, pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal - ICPC. Secretária da Comissão da Advocacia Criminal da OAB-PR. Conselheira do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico (IBDPE). Advogada.


[iii] A íntegra do Seminário está disponível no canal doYoutube do IBDPE: https://www.youtube.com/watch?v=u19kzWk3Z0c

[iv] AGUSTINA SANLLEHÍ, José R. Estrategias y limites en la prevención del delito dentro de la empresa: a proposito del control del correo electrónico del trabajador como posible violación de la intimidad (ex artículo 197 CP). Revista para el Análisis del Derecho – InDret, Barcelona, v. 2/2009, abr. 2009. p.  8. Disponível em: <http://www.raco.cat/index.php/InDret/article/viewFile/122213/169333>.

[v] FORIGO, Camila. A figura do compliance officer no direito brasileiro: funções e responsabilização penal. Multifoco: Rio de Janeiro, 2017. p. 41.

[vi] PALERMO, Omar; BERMEJO, Mateo G. La Intervención Delictiva del Compliance Officer. In: KUHLEN, Lothar; MONTIEL, Juan Pablo; URBINA GIMENO, Íñigo Ortiz de (Eds.). p. 171-205. Compliance y teoria del derecho penal. Madrid: Marcial Pons, 2013. p.  174-175.

[vii] SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María; VARELA, Lorena. Responsabilidades individuales em estructuras de empresa: la influencia de sesgos cognitivos y dinámicas de grupo. In: SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María (Dir.). MONTANER FERNÁNDEZ, Raquel (Coord). p. 265-286. Criminalidad de empresa y compliance: prevención y reacciones corporativas. Atelier: Barcelona, 2013. p. 278-280.

[viii] PASTOR MUÑOZ, Nuria. La respuesta adecuada a la criminalidade de los directivos contra la própria empresa: ¿Derecho penal o autorregulación empresarial? Revista para el Análisis del Derecho – InDret, Barcelona, v. 4/2006, n. 380, out. 2006. Disponível em: <http://www.raco.cat/index.php/InDret/article/viewFile/122213/169333>.

[ix] SAAD-DINIZ, Eduardo. Ética negocial e compliance: entre a educação executiva e a interpretação judicial. São Paulo: Thomson Reuters, 2019, p. 193.

[x] GIAMBERARDINO, André Ribeiro. Crítica da pena e justiça restaurativa: a censura para além da punição. 1 ed. Florianópolis: Empório do Direito Editora, 2015, p. 230.

[xi] SANTANA, Selma Pereira; LUZ, Ilana Martin. A ascensão do intérprete e o outro olhar do conflito penal. In: COSTA, José de Faria et al. Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Manuel da Costa Andrade. Volume II. Coimbra: Sersilito-Empresa Gráfica Lda., 2017, p. 795 – 814.

[xii] MARTÍN, Adán Nieto. Empresas, víctimas y sanciones restaurativas: ¿como configurar um sistema de sanciones para personas jurídicas pensando em sus víctimas?. In: SAAD-DINIZ, Eduardo; LAURENTIZ, Victoria Vitti de; Corrupção, direitos humanos e empresa. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 31 - 46.

[xiii] A taxa é de aproximadamente 42% segundo o relatório “Reentradas e reiterações Infracionais — Um olhar Sobre os Sistemas Socioeducativo e Prisional Brasileiros” – CONJUR. Taxa de retorno ao sistema prisional entre adultos é de 42%, aponta pesquisa. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2020-mar-03/42-adultos-retornam-sistema-prisional-aponta-pesquisa>, acesso em 19 nov. 2020.


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Há um modelo brasileiro de Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica?

Por Guilherme Brenner Lucchesi[i]

A temática da responsabilidade penal da pessoa jurídica não é exatamente nova no Brasil. A Constituição da República em 1988 já previu a possibilidade de pessoas jurídicas responderem criminalmente pelos danos causados ao meio ambiente — ou, ao menos, muitos dizem haver esta previsão constitucional.

Há um certo debate a respeito da interpretação do dispositivo constitucional, pois o §3.º do art. 225 da Constituição diz que haverá responsabilidade penal e administrativa das pessoas físicas e jurídicas pelas infrações ao meio ambiente. A interpretação dessa redação tende a se dar da maneira que melhor convenha ao interesse ou à posição defendida. Seria esta previsão ampla, respondendo tanto as pessoas físicas como as jurídicas nas searas administrativa e penal? Ou a interpretação correta seria “distributiva”, de modo que as pessoas físicas devem responder penalmente, enquanto as pessoas jurídicas estariam limitadas à responsabilidade administrativa? Essa interpretação serviu de base ao argumento de que a responsabilidade penal de pessoas jurídicas seria incompatível com a ordem constitucional.[ii]

A discussão constitucional é peculiar, pois a Constituição da República não precisaria prever ou autorizar a responsabilidade penal de pessoas jurídicas, bastando a previsão legal e compatibilidade dogmática. Não é, portanto, a nossa Constituição que autoriza a responsabilidade penal de pessoas jurídicas no Brasil. Tampouco é a Constituição que limita essa responsabilidade penal aos crimes contra o meio ambiente. De todo modo, a legislação brasileira, até o momento, somente autoriza a responsabilidade penal de pessoas jurídicas com relação aos crimes contra o meio ambiente, previstos na Lei n.º 9.605, de 1998.[iii]

O modelo de responsabilidade penal de pessoas jurídicas estabelecido pela legislação brasileira é um modelo vicariante, sendo o qual a pessoa jurídica somente agiria pelas pessoas físicas que a constituem, devendo haver alguma decisão de dirigente ou conselho tomada em prol da pessoa jurídica para que ela pudesse ser atingida criminalmente.

Segundo o modelo penal brasileiro, as pessoas jurídicas não seriam dotadas de realidade institucional, autônoma em relação aos seus dirigentes e integrantes. A responsabilidade não seria baseada em seus próprios atos, mas sim nos atos de pessoas naturais.

Isso, evidentemente, não exclui a responsabilidade penal das pessoas físicas. Desse modo, a lei passou a prever, implicitamente, a existência de alguma espécie de coautoria entre pessoa jurídica e pessoa física. Contudo, a lei não fornece nenhum outro critério para se estabelecer a responsabilidade penal de pessoas jurídicas.

O art. 21 da Lei n.º 9.605, de 1998, estabelece quais as sanções a serem aplicadas a pessoa jurídica: pena de multa, penas restritivas de direitos e penas de prestação de serviços à comunidade. Tais penas não são aplicadas em substituição às penas privativas de liberdade, como determina o art. 44 do Código Penal, em relação às pessoas físicas. No regime instituído pela Lei n.º 9.650, de 1998, não há qualquer critério ou referencial de substituição, e também não há qualquer possibilidade de cominação de penas privativas de liberdade às pessoas jurídicas.

A previsão de responsabilidade penal da pessoa jurídica pela legislação penal ambiental não estabelece de nenhuma maneira como se daria a imputação de responsabilidade penal aos entes morais. Não há dispositivos que esclareçam quais são os limites à imputação de pessoas físicas e jurídicas. Também não há regras quanto ao processo a ser observado. A Lei n.º 9.605, de 1998, determina que, em havendo ato de administrador ou de dirigente que seja praticado no interesse da empresa e constitua ação nela tipificada, a pessoa jurídica poderá ser – de um modo que a lei não diz – responsabilizada criminalmente.

No início dos anos 2000, o entendimento prevalecente nos tribunais brasileiros era de que somente poderia haver responsabilidade penal da pessoa jurídica se houvesse também a imputação à pessoa física. Haveria, portanto, um concurso necessário entre as pessoas físicas e jurídicas. A já aludida responsabilidade vicariante ou “por ricochete”.

No ano de 2013, o Supremo Tribunal Federal julgou o Recurso Extraordinário n.º 548.181, interposto pelo Ministério Público Federal, contra um recurso ordinário em mandado de segurança julgado pelo Superior Tribunal de Justiça em que se deliberava acerca da responsabilidade penal da Petróleo Brasileiro S.A – Petrobras, independentemente da responsabilização conjunta e cumulativa das pessoas físicas envolvidas no caso. Nessa decisão, por maioria, o STF passou a entender que a Constituição não estabelecia a necessidade de concurso entre pessoas físicas e jurídicas.

Posto de outro modo, o STF entendeu que o cerne de toda discussão acerca da responsabilidade penal das pessoas jurídicas estaria na previsão programática constitucional de que as pessoas físicas e jurídicas seriam responsabilizadas penal e administrativamente pelos atos lesivos ao meio ambiente. A partir disso, estabeleceu a possibilidade de responsabilidade penal de pessoas jurídicas independentemente da imputação criminal a algum dirigente empresarial ou a alguma pessoa física.

O entendimento firmado em 2013 pelo STF vai de encontro àquilo que está disposto na Lei n.º 9.605, de 1998, na parte que busca iniciar alguma tratativa a respeito da responsabilidade penal de pessoas jurídicas. Isso, pois o próprio art. 3.º da Lei n.º 9.605, de 1998, estabelece que somente poderá haver responsabilidade de pessoa jurídica quando houver alguma decisão de dirigente tomada em prol da pessoa jurídica.

Diante disso, a única forma de compatibilizar o entendimento do STF ao que determina a lei é: em havendo um ato de dirigente (porque a nossa lei estabelece um modelo vicariante de responsabilidade e não prevê nenhum outro modo de responsabilidade autônoma ou independente da pessoa jurídica), deve haver a identificação de alguma decisão tomada no interesse da pessoa jurídica. Porém, se por algum motivo (v.g., extinção da punibilidade), não se puder realizar a persecução penal da pessoa física, admitir-se-ia nesse caso a responsabilidade penal individual da pessoa jurídica.

Infelizmente, não é o que se vê na prática. Em meio a tantos sinais contraditórios emitidos pelo legislador e pelo Supremo Tribunal Federal, a situação no Brasil se revela um pouco caótica.

A tendência é que em breve se tenha ampliada no Brasil a responsabilidade penal da pessoa jurídica para outros crimes. Aliás, parece haver uma inclinação para a adoção de um modelo de responsabilidade penal irrestrita a qualquer delito cometido por pessoas jurídicas, mais semelhante ao estabelecido na França e na Suíça.

Há diversos casos na realidade brasileira em que essa discussão se poderia colocar presente. Relembre-se das inúmeras mortes no estado de Minas Gerais por conta do rompimento de barragens, em que poder-se-ia falar em responsabilidade penal de pessoa jurídica por homicídio cometido, por exemplo. O grande problema é que a legislação penal ambiental não oferece qualquer segurança para se prosseguir, pois nos faltam critérios, em absoluto.

Nesse cenário, convém apresentar alguns pontos preocupantes a respeito do nosso modelo atual de responsabilidade penal de pessoas jurídicas.

O Brasil convive com um modelo híbrido. Principalmente, em razão da previsão no ordenamento jurídico brasileiro de pessoas jurídicas unipessoais: a Empresa Individual de Responsabilidade Limitada - Eireli e a Sociedade Limitada Unipessoal (introduzida recentemente pela Lei nº 13.874/2019). Nesses modelos, há uma teoria de identificação muito forte, a qual torna difícil distinguir o que seria ato de pessoa física e o que seria ato de pessoa jurídica.

O STF e a doutrina brasileira visam um modelo que reconheça a realidade institucional das pessoas jurídicas não sob um modelo de culpabilidade institucional, mas sob um modelo que trata as pessoas jurídicas como dotadas de periculosidade. Desse modo, estas se submeteriam a aplicação de medidas de segurança (e não penas), o que parece resolver o problema da culpabilidade das pessoas jurídicas.[iv]

Agora, se considerarmos que existe uma realidade institucional nas pessoas jurídicas que torne possível admiti-las como autorresponsáveis pelos seus atos, indaga-se de que modo poderia haver a coautoria entre pessoas jurídicas e pessoas físicas para se evitar bis in idem? Os dirigentes devem responder pelos mesmos atos que foram praticados em prol da pessoa jurídica? É possível que as pessoas jurídicas passem a responder pelos atos de seus funcionários? Em havendo uma realidade institucional, a pessoa jurídica passa a ser uma garantidora universal de todos os atos que acontecem no seu meio? Então, se há uma falha no cumprimento das medidas de compliance, toda vez que o agente agir em nome da pessoa jurídica — não necessariamente em seu interesse, mas no âmbito desta —, poderá haver a imputação de omissão imprópria à pessoa jurídica?

No caso das pessoas jurídicas unipessoais, cabe uma importante crítica apontada por Otávio Luiz Rodrigues Junior e Rodrigo Xavier Leonardo[v], segundo quem há um forte incentivo legal à formação dessas pessoas jurídicas que, na verdade, não têm nenhuma realidade institucional e suas atividades muito se confundem com a dos indivíduos que a compõe. Alguns dos grandes exemplos são profissionais liberais, artistas e desportistas, em que se constitui uma pessoa jurídica para fins tributários, apenas. E isso, apesar de ser incentivado pelo Estado, é muitas vezes tratado pelas autoridades públicas como se alguma espécie de fraude fosse. Essa realidade, invariavelmente, chegará no âmbito da responsabilidade penal de pessoa jurídica para se evitar um bis in idem, isto é, um duplo sancionamento para esses indivíduos.

No âmbito processual, por seu turno, a observância aos requisitos de uma adequada imputação criminal demanda a descrição de um fato naturalístico atribuído à pessoa jurídica. Não é difícil aceitar o fato de que a pessoa jurídica pode ser responsabilizada por condutas. Entretanto, é indispensável que isso seja bem compreendido pelas nossas autoridades, para que não existam acusações ineptas que gerem responsabilidade penal objetiva da pessoa jurídica por todos os atos que aconteçam no âmbito da sua atuação institucional.

Do mesmo modo, caso se entenda que há uma realidade institucional das pessoas jurídicas, os atos a estas imputados não podem ser os mesmos passíveis de imputação específica às pessoas físicas que as compõem. Essa dificuldade de algum modo precisará ser resolvida.

Em caso de concurso entre pessoas físicas e jurídicas é fundamental se reconhecer eventual conflito de interesses entre a pessoa jurídica e as pessoas naturais coacusadas. Como constituir um mesmo advogado para ambas se o interesse da pessoa física for evitar sua responsabilidade pessoal e transmitir a carga de responsabilidade à pessoa jurídica? Esse também é um problema concreto a ser enfrentado.

A própria distinção entre a pessoa física e natural não é feita pela lei ou pelo Judiciário. No âmbito da Justiça Federal, identificam-se diversos casos em que as pessoas jurídicas celebram acordos de suspensão condicional do processo e acordos de não persecução penal com o Ministério Público. Havendo ANPP, a confissão da pessoa jurídica é feita pelo representante legal que na maior parte das vezes é coacusado. Até mesmo no interrogatório não há uma adequada separação entre empresa e indivíduo: costumeiramente são interrogados conjuntamente em um único ato, em que há representação legal conjunta para ambos os acusados.

Mesmo no âmbito das penas não há o estabelecimento de algum critério seguro para a sua dosimetria. O modelo previsto no art. 59 do Código Penal analisa uma série de circunstâncias muito próprias às pessoas naturais: culpabilidade, personalidade, conduta social, motivos etc. A nossa legislação penal ambiental não estabelece nenhum critério de correspondência, o que nos gera até mesmo uma dificuldade para cálculo de prescrição.

Nas pessoas naturais, não há dificuldade em estabelecer a correlação entre as penas privativas de liberdade e as penas restritivas de direito, já que estas são aplicadas de modo substitutivo àquelas. A dosimetria é realizada, calcula-se a pena de privação de liberdade e há critérios legais para a conversão dessa pena em prestações alternativas.

Como dito acima, a legislação penal ambiental estabelece as penas restritivas de direito como sanções principais e não estabelece nenhuma relação de substitutividade. Portanto, em havendo a cominação de uma pena de multa à pessoa jurídica, fica a dúvida de como se calcula a sua prescrição em caso de demora no julgamento de um eventual recurso ou em caso de demora para início da execução da pena.

São problemas reais que simplesmente não foram tratados pelo legislador. Talvez porque se quis prever de algum modo a possibilidade de punir pessoas jurídicas criminalmente, mas, por falta de qualquer experiência ou modelo adequado a ser observado, não foi capaz de definir de que modo isso aconteceria.

Esse preocupante cenário reclama o estabelecimento de critérios que tragam segurança jurídica e que respeitem a garantia de legalidade. A responsabilidade penal das pessoas jurídicas no Brasil parece ser uma realidade inarredável, mas para que possa ser operada é preciso que se estabeleçam padrões mínimos nos termos da lei, e não por meio de uma criação ad hoc pelo magistrado que decide processar e apenar pessoas jurídicas.


[i] Advogado sócio da Lucchesi Advocacia. Professor da Faculdade de Direito da UFPR. Doutor pela UFPR. Presidente do IBDPE.


[ii] CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito penal: parte geral. Florianópolis: Conceito, 2012. p. 666.

[iii] A eficácia contida do texto constitucional quanto a esse ponto resta evidenciada diante do lapso de uma década até que a responsabilidade penal das pessoas jurídicas fosse prevista em lei ordinária.

[iv] BUSATO, Paulo César. Responsabilidade penal de pessoas jurídicas no projeto do novo Código Penal brasileiro. Revista Liberdades. Disponível em: http://www.revistaliberdades.org.br/site/outrasEdicoes/outrasEdicoesExibir.php?rcon_id=135.

[v] A “pejotização” e a esquizofrenia sancionatória brasileira. ConJur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-fev-03/direito-civil-atual-pessoa-juridica-pejotizacao-esquizofrenia-sancionatoria-brasileira (parte 1) e https://www.conjur.com.br/2020-fev-10/direito-civil-atual-pejotizacao-esquizofrenia-sancionatoria-brasileira (parte 2).


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BUSCAS (POLICIAIS) EM APARELHOS CELULARES

Leonardo Marcondes Machado[i]

A questão atinente à possibilidade (ou não) de acesso legal ao conteúdo de aparelho celular pertencente ao suspeito da prática de uma infração penal, independentemente de autorização judicial específica, constitui ainda um tema polêmico no direito processual penal brasileiro.[ii]

A posição inicial da jurisprudência, alguns anos atrás, quando as discussões giravam em torno da verificação dos registros das últimas chamadas, efetuadas e recebidas, pelo imputado através de mero aparelho de telefonia, era no sentido da licitude dessa medida investigativa, sem autorização judicial, uma vez que não submetida à cláusula constitucional da inviolabilidade do sigilo das comunicações telefônicas (art. 5º, XII, da CF), mas, pelo contrário, inscrita no poder/dever da autoridade policial de apreensão dos objetos relacionados à prática criminosa e sua consequente análise (art. 6º, II, III e VII, do CPP).[iii]

Fazia-se, portanto, uma distinção entre comunicação telefônica e registros telefônicos, bem como seus diferentes âmbitos jurídicos de proteção. A partir do entendimento de que o objeto de tutela no direito à inviolabilidade do sigilo não seriam “os dados em si, mas a sua comunicação restringida (liberdade de negação)”,[iv] afastava-se qualquer violação ao art. 5º. XII, da Constituição[v].

As situações, contudo, se alteraram em uma sociedade cada vez mais dominada pelos avanços tecnológicos e, acima de tudo, pelo uso massivo dos aparelhos celulares como principal instrumento de acesso à internet.[vi] De fato, a popularização da chamada “telefonia móvel inteligente”, com os seus modelos de smartphones, transformou os celulares (mobiles) em grandes depositários de informações privilegiadas e, por consequência, os acessos não autorizados pelo titular em atos tipicamente invasivos, ou melhor, violadores da privacidade (art. 5º, X, da CF). O que, como era de se esperar, acabou gerando uma revisão quanto aos limites jurídicos dessa prática investigativa.

É inegável que os novos celulares não funcionam mais apenas como instrumentos de comunicação telefônica; serventia, aliás, que tem diminuído ao longo dos últimos anos.[vii] As suas múltiplas funcionalidades, desde mensagens de texto a compartilhamento de áudios e vídeos, acesso a redes sociais, confecção de registros fotográficos, agendamento de eventos profissionais e pessoais, controle de dados financeiros etc., cada vez mais populares no meio social, estabelecem um conjunto de evidências consideráveis ou pelo menos rastros bastante significativos da vida íntima de seu usuário.

Segundo Lopes Jr. e Morais da Rosa, o tema da busca de dados em aparelhos celulares não recebia da jurisprudência nacional a atenção devida, partindo-se tradicionalmente de uma premissa jurídica equivocada, qual seja, a “de que o conteúdo digital estava no aparelho e, assim, tal qual outro objeto apreendido poderia ser analisado pela autoridade policial”. O equívoco, segundo os autores, decorre do fato de que a intimidade e a privacidade armazenadas no dispositivo transcendem “os limites analógicos de bens materiais”, abarcando aspectos da necessária tutela de direitos fundamentais.[viii]

Não à toa, em que pese controvérsias, o Superior Tribunal de Justiça tem entendido como “ilícita a prova oriunda do acesso aos dados armazenados no aparelho celular, relativos a mensagens de texto, SMS, conversas por meio de aplicativos (WhatsApp), obtidos diretamente pela polícia no momento da prisão em flagrante, sem prévia autorização judicial”.[ix] Conforme assentado pelo STJ, “por se encontrar em situação similar às conversas mantidas por e-mail, a cujo acesso é exigida prévia ordem judicial, a obtenção de conversas mantidas pelo programa whatsapp, sem a devida autorização judicial, revela-se ilegal”.[x] Assim também considerado o exame pericial efetuado no telefone celular, mediante requisição da autoridade policial, se desacompanhada de ordem judicial específica.[xi]

Sublinhe-se que esse tipo de ilegalidade na fase pré-processual pode gerar a rejeição liminar da inicial acusatória quando não subsistam outros elementos informativos autônomos e suficientes à formação da justa causa processual penal.[xii] Se já instaurada a relação processual, essas informações ilícitas deverão ser desentranhadas dos autos, bem como os demais elementos probatórios delas diretamente derivados[xiii], podendo, assim, ocasionar o trancamento do processo penal[xiv] se não houver outra base informativa válida para o seu regular desenvolvimento. Por óbvio, esse tipo de ilegalidade também pode afetar eventuais medidas cautelares reais ou pessoais (ex.: prisão preventiva) decretadas na espécie.

Nessa linha, portanto, tem-se que o acesso ao conteúdo de aparelho celular depende atualmente de concordância expressa e voluntária do titular[xv] ou de ordem judicial específica para o afastamento de direitos fundamentais do imputado[xvi] em respeito à inviolabilidade da intimidade e da vida privada (art. 5º, X, da CF)[xvii], o que apenas se justifica quando presentes os requisitos próprios de cautelaridade processual penal no sentido da imprescindibilidade desse meio investigativo criminal.[xviii]

Não custa lembrar que a Lei n. 12.965/2014, responsável pela disciplina normativa do uso da internet no país, estabelece textualmente, em seu art. 7º, inc. III, que são assegurados aos seus usuários a “inviolabilidade e sigilo de suas comunicações privadas armazenadas, salvo por ordem judicial”.[xix] O que, sem dúvida, reforça a tese majoritária quanto à reserva constitucional de jurisdição inclusive no campo da investigação criminal.[xx]

Em tempo, algumas distinções jurisprudenciais importantes. A primeira é no sentido da ausência de ilicitude informativa ou probatória quando a visualização de dados armazenados em aparelhos celulares, inclusive smartphones, resultar da posse regular desses objetos em cumprimento a mandados de busca e apreensão domiciliar. Conforme o Superior Tribunal de Justiça, “na pressuposição da ordem de apreensão (...) está o acesso aos dados que neles estejam armazenados, sob pena de a busca e apreensão resultar em medida írrita, dado que o aparelho desprovido de conteúdo simplesmente não ostenta virtualidade de ser utilizado como prova criminal”.[xxi]

Necessário, contudo, observar um requisito adicional à validade desse tipo de diligência investigativa, qual seja, a especificação quanto ao objeto da busca e apreensão na correspondente decisão judicial, uma vez que o próprio mandado “pode facultar o acesso às informações” que constem nos aparelhos recolhidos. Daí não haver óbice para que a autoridade policial ou o órgão ministerial solicite, em sua representação ou requerimento “pela autorização de busca e apreensão, que seja deferido o acesso aos dados estáticos contidos no material coletado”.[xxii]

Outra questão diz respeito à ilegalidade, mesmo em face de ordem judicial específica, quanto ao uso da técnica de espelhamento, via “whatsapp web”, para o acesso das conversas (pretéritas, atuais e futuras) do investigado no referido aplicativo. O Tribunal entendeu que esse tipo de medida, que não se confunde com a interceptação das comunicações telefônicas tampouco com o acesso às conversas já realizadas e armazenadas no celular através do aplicativo whatsapp, não encontra respaldo na ordem jurídica brasileira, motivo pelo qual não poderia ser autorizada pelo Poder Judiciário. [xxiii]

Há, ainda, outro relevante julgado do STJ que considerou ilegal os atos praticados na fase de investigação preliminar, bem como reconheceu a nulidade de sentença criminal embasada em prova ilícita derivada do fato de um policial, sem qualquer autorização do titular da linha ou da justiça, “para ler mensagens nem para atender ao telefone móvel da pessoa sob investigação e travar conversa por meio do aparelho com qualquer interlocutor que seja”, ter se passado por seu dono “para  fazer a negociação de drogas e provocar o flagrante”.[xxiv]

Por fim, vale destacar que o mesmo Superior Tribunal de Justiça afastou a ilicitude de provas obtidas a partir de “breve consulta” realizada por policiais militares, sem autorização judicial, de dados existentes em “aparelho abandonado em via pública, a fim de identificar a propriedade do objeto”. No caso em questão, a pessoa abordada pelos militares estaduais teria inicialmente negado a propriedade de celular localizado próximo a ele, o que interpretado pelo STJ como motivo regular ao acesso “pelos policiais às informações contidas no referido aparelho celular apreendido”.[xxv]


[i] Doutorando e Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná - UFPR. Pós-graduado em Bases del Razonamiento Probatorio pela Universitat de Girona – Espanha. Especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal - ICPC. Professor de Direito Processual Penal e Criminologia na Academia de Polícia Civil de Santa Catarina (ACADEPOL-SC) e no Centro Universitário para o Desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí (UNIDAVI-SC). Professor em Cursos de Pós-Graduação na Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst). Delegado de Polícia Civil em Santa Catarina. Contato: www.leonardomarcondesmachado.com.br.


[ii] Matéria pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal com repercussão geral admitida: STF - Tribunal Pleno - ARE 1.042.075 RG/RJ - Rel. Min. Dias Toffoli - j em 23.11.2017 - DJe 285 de 11.12.2017. Sobre a jurisprudência estadual: ANTONIALLI, Dennys; ABREU, Jacqueline; MASSARO, Heloisa; LUCIANO, Maria. Acesso de autoridades policiais a celulares em abordagens: retrato e análise da jurisprudência de tribunais estaduais. Revista Brasileira de Ciências Criminais , v. 27, n. 154, p. 177-214, abr. 2019.

[iii] STF - Segunda Turma - HC 91.867/PA - Rel. Min. Gilmar Mendes - j em 24.04.2012 – DJe 185 de 24.04.2012.

[iv] FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Sigilo de dados: o direito à privacidade e os limites à função fiscalizadora do Estado. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, v. 88, p. 439-459, 1993, p. 446.

[v] STF - Tribunal Pleno - RE 418.416/SC - Rel. Min. Sepúlveda Pertence - j em 10.05.2006 – DJ de 19.12.2006.

[vi] Conforme pesquisa divulgada no ano de 2018 pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil, tem-se, pela primeira vez na série histórica, que “a proporção de usuários que acessaram a rede apenas pelo celular superou a daqueles que combinaram celular e computador”. Nesse sentido, quanto aos meios de acesso à internet, nota-se uma clara preferência pelo uso do celular (mobile), empregado por 90% dos internautas. Na verdade, desde a edição de 2015 da pesquisa, o telefone celular tem sido o dispositivo mais utilizado para acesso à rede. Em 2017, estimou-se que mais de 115 milhões de brasileiros acessaram a internet por meio do telefone celular. (CGI. Pesquisa sobre o Uso das Tecnologias de Informação e Comunicação nos Domicílios Brasileiros: TIC Domicílios 2017. Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR - São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2018, pp. 24, 33 e 121).

[vii] “Em 2017, 156,8 milhões de brasileiros eram usuários de telefone celular”, sendo que a sua utilização para chamadas telefônicas vem sofrendo uma variação negativa desde 2014 (CGI. Pesquisa sobre o Uso das Tecnologias de Informação e Comunicação nos Domicílios Brasileiros..., p. 125).

[viii] LOPES JÚNIOR, Aury; MORAIS DA ROSA, Alexandre. Vasculhar aparelho celular só é possível com autorização judicial. São Paulo: Consultor Jurídico, 23 fev. 2018. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-fev-23/limite-penal-vasculhar-aparelho-celular-somente-autorizacao-judicial>. Acesso em: 15.03.2019

[ix] STJ - Quinta Turma - RHC 92.009/RS - Rel. Min. Felix Fischer - j em 10.04.2018 - DJe de 16.04.2018.

[x] STJ - Quinta Turma - RHC 90.276/MG - Rel. Min. Ribeiro Dantas - j em 13.03.2018 - DJe de 21.03.2018.

[xi] STJ - Quinta Turma - REsp 1.727.266/SC - Rel. Min. Jorge Mussi - j em 05.06.2018 - DJe de 15.06.2018.

[xii] STJ - Quinta Turma - AgRg no REsp 1.748.161/AC - Rel. Min. Jorge Mussi - j em 13.11.2018 - DJe de 22.11.2018.

[xiii] STJ - Quinta Turma - RHC 73.998/SC - Rel. Min. Joel Ilan Paciornik - j em 06.02.2018 - DJe de 19.02.2018.

[xiv] STJ - Sexta Turma - RHC 98.250/RS - Rel. Min. Nefi Cordeiro - j em 12.02.2019 - DJe de 07.03.2019.

[xv] “1. Os dados armazenados nos aparelhos celulares - envio e recebimento de mensagens via SMS, programas ou aplicativos de troca de mensagens, fotografias etc. -, por dizerem respeito à intimidade e à vida privada do indivíduo, são invioláveis, nos termos em que previsto no inciso X do art. 5º da Constituição Federal, só podendo, portanto, ser acessados e utilizados mediante prévia autorização judicial, com base em decisão devidamente motivada que evidencie a imprescindibilidade da medida, capaz de justificar a mitigação do direito à intimidade e à privacidade do agente. 2. Pelo contexto fático que ficou delineado nos autos, há elementos suficientes o bastante - produzidos sob o crivo do contraditório e da ampla defesa - a evidenciar que os próprios pacientes, de forma voluntária, autorizaram aos policiais o acesso ao celular, o que afasta a apontada violação dos dados armazenados no referido aparelho e, consequentemente, a aventada ilicitude das provas obtidas” (STJ - Sexta Turma - HC 492.052/SP - Rel. Min. Rogério Schietti Cruz - j em 26.05.2020 - DJe de 02.06.2020).

[xvi] Diferente é a situação de telefone de propriedade da vítima de um crime, já falecida, cujo aparelho celular tenha sido entregue à polícia pela esposa, interessada no esclarecimento dos fatos. Nessa situação, o acesso às conversas de whatsapp armazenadas no telefone, sem autorização judicial, não se reveste de ilicitude, conforme julgado do Supremo Tribunal Federal (STF - Segunda Turma - HC 152.836 AgR/MT - Rel. Min. Gilmar Mendes - j. em 22.06.2018 - DJe 153 de 31.07.2018).

[xvii] STJ - Quinta Turma - RHC 89.981/MG - Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca - j em 05.12.2017 - DJe de 13.12.2017.

[xviii] É o posicionamento do Min. Gilmar Mendes: “(...) o acesso aos aparelhos telefônicos deve ser submetido a prévia decisão judicial, na qual seja demonstrado, in concreto, a necessidade, adequação e proporcionalidade do acesso aos dados e informações requeridos”. O que não impede a atuação da polícia no momento do flagrante para apreender o aparelho celular, respeitados os requisitos legais para tanto (haver fundada suspeita de que existam provas em sua memória) e a cadeia de custódia, para posterior representação ao juízo para que autorize o acesso aos dados” (STF - ARE 1.042.075/RJ - Voto Min. Gilmar Mendes).

[xix] A citada previsão é bastante semelhante ao que já consta no art. 3º, inc. V, da Lei n. 9.472/97, a qual, no entanto, se refere ao campo dos serviços de telecomunicações. Conforme esse dispositivo legal, todo usuário de telecomunicações tem direito “à inviolabilidade e ao segredo de sua comunicação, salvo nas hipóteses e condições constitucional e legalmente previstas”.

[xx] Nesse sentido: GLOECKNER, Ricardo Jacobsen; EILBERG, Daniela Dora. Busca e Apreensão de Dados em Telefones Celulares: novos desafios diante dos avanços tecnológicos. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 27, n. 156, p. 353-393, jun. 2019; ZILLI, Marcos. A Prisão em Flagrante e o Acesso de Dados em Dispositivos Móveis. Nem utopia, nem distopia, apenas racionalidade. In: ANTONIALLI, Dennys; ABREU, Jaqueline da Souza (ed.). Direitos Fundamentais e Processo Penal na Era Digital. v. 1. São Paulo: Internetlab, 2018. p. 64-99.

[xxi] STJ - Quinta Turma - RHC 75.800/PR - Rel. Min. Felix Fischer - j. em 15.09.2016 - DJe de 26.09.2016. No mesmo sentido: STJ - Sexta Turma - HC 574.131/RS - Rel. Min. Nefi Cordeiro - j. em 25.08.2020 - DJe de 04.09.2020.

[xxii] STJ - Sexta Turma - HC 444.024/PR - Rel. Min. Sebastião Reis Júnior - Rel. p/ Acórdão Min. Rogerio Schietti Cruz - j em 02.04.2019 - DJe de 02.08.2019.

[xxiii] STJ - Sexta Turma - RHC 99.735/SC - Rel. Min. Laurita Vaz - j em 27.11.2018 - DJe de 12.12.2018.

[xxiv] STJ - Sexta Turma - HC 511.484/RS - Rel. Min. Sebastião Reis Júnior - j em 15.08.2019 - DJe de 29.08.2019.

[xxv] STJ - Quinta Turma - AgRg no AREsp 1.573.424/SP - Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca - j. em 08.09.2020 - Dje de 15.09.2020.


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