Da (im)prescindibilidade do periculum in mora nas medidas cautelares patrimoniais no processo penal
Por: Gabriel Henrique Halama e Pedro Henrique Nunes
A fim de assegurar os efeitos da condenação consistentes na perda do produto do crime e na reparação do dano causado pelo delito (art. 91, I e II, CP), o Código de Processo Penal prevê, no Capítulo VI do Título VI, as "medidas assecuratórias", também denominadas "medidas cautelares patrimoniais". Tendo em vista a disposição do CPP, a doutrina costuma dividi-las em: (i) sequestro de bens (arts. 125 a 132), (ii) especialização e registro da hipoteca legal (arts. 134 a 135) e (iii) arresto prévio e de bens móveis (arts. 136 e 137)1.
De modo geral, são necessários dois elementos para a decretação dessas medidas: (i) o fumus commissi delicti, traduzido na necessidade de indícios suficientes de autoria e materialidade delitiva; e (ii) o periculum in mora, o qual "se relaciona aos riscos provenientes da natural demora da prestação jurisdicional dita principal, vale dizer, do perigo concreto que a delonga no acertamento do direito pode acarretar à eficácia prática de futura sentença"2.
Quanto ao segundo elemento, a acusação deve demonstrar que o réu estaria praticando atos que poderiam acarretar a alteração ou a redução do seu patrimônio, capazes de colocar em risco eventual ressarcimento ao lesado, o pagamento de penas pecuniárias, as despesas processuais e o perdimento dos proventos do crime. Para tanto, não basta a manifestação de um risco abstrato ou suposição (presunção) de que, como decorrência do recebimento da denúncia, ocorrerá o desfazimento ou dissipação dos bens pelo réu3.
Ocorre que a necessidade de demonstração do periculum in mora para a decretação das medidas cautelares patrimoniais no processo penal tem sido relativizada pela jurisprudência pátria. Observa-se o alastramento de precedentes propugnando ser dispensável a demonstração concreta do perigo na demora do acautelamento dos bens do acusado.
À vista disso, foram levantados, selecionados e analisados acórdãos do Tribunal Regional Federal da 4ª região (TRF-4) proferidos nos últimos dois anos, a fim de compreender quais os fundamentos de que os julgadores se valem para embasar a dispensa desse requisito das medidas cautelares patrimoniais4.
A partir do exame realizado, averiguou-se que o TRF-4, em uníssono, entende ser prescindível a demonstração concreta de que há algum perigo na satisfação final do processo para o acautelamento patrimonial. Vale mencionar, não foi encontrada nenhuma decisão em sentido contrário, isto é, exigindo que a acusação demonstre o perigo na dissipação dos bens. Ademais, observou-se que a maior parte das decisões encontradas tem o tema por consolidado jurisprudencialmente, razão pela qual a fundamentação não ultrapassa o fundamento de que "o periculum in mora é pressuposto pela lei, conforme precedentes".
Por exemplo, há reiterados votos do Desembargador Federal João Pedro Gebran Neto de que "não há necessidade de se evidenciar com elementos concretos e específicos o periculum in mora, pois este é pressuposto pela lei, notadamente nos casos de crimes praticados contra a administração pública". Este trecho é reproduzido em vários julgados, em alguns casos acompanhado de poucos acréscimos5. Por vezes, suas decisões trazem complemento no sentido de que por conta do "risco de não ser garantido o valor fixado na sentença a título de reparação de danos, deve vigorar nesse momento processual o elemento da cautelaridade".
Do mesmo modo, há julgados de relatoria dos Desembargadores Federais Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, Danilo Pereira Junior, Cláudia Cristofani, Márcio Antônio Rocha e Marcelo Malucelli apontando para a jurisprudência já consolidada daquela Corte de que o periculum in mora, nas cautelares penais, se dá por presunção legal, prescindindo de demonstrações de dilapidação do patrimônio ou má-fé do acusado6.
Em todos esses precedentes, a despeito da menção abstrata à presunção do periculum in mora na decretação das medidas cautelares patrimoniais, deixa-se de indicar o fundamento legal de que se extrai tal entendimento. Quando muito, são citados acórdãos do próprio TRF-4, em um movimento jurisprudencial que se retroalimenta.
No recorte jurisprudencial analisado, os votos da Desembargadora Federal Salise Monteiro Sanchotene foram os que mais se destacaram, porquanto fundamentam com maiores detalhes os decretos de medidas constritivas. Também prepondera em seus votos a presunção quanto ao periculum in mora nas medidas cautelares patrimoniais, porém se avança um pouco mais ao adaptar o fundamento jurídico ao caso concreto. No julgamento da Apelação n.º 5008589-29.2019.4.04.7000, referente à "Operação Integração II", por exemplo, o acórdão adota como norte a natureza dos delitos imputados (corrupção, fraude em licitações, peculato, associação criminosa e lavagem de dinheiro, entre outros) para fundamentar a imposição das medidas assecuratórias em desfavor dos acusados. Especificamente nos casos de lavagem de capitais, consigna-se que o periculum in mora seria presumido, pois "a própria natureza do crime em tela, que tem na sua estrutura as fases de dissimulação, ocultação e integração, autorizam presumir uma disposição dos agentes envolvidos em não facilitar o acesso aos bens ou valores". Outrossim, retoma-se o argumento acima exposto no sentido de que haveria "uma plausível possibilidade de dissipação do patrimônio existente até o trânsito em julgado, ao saber que são investigados"7. No que tange aos delitos contra a Administração Pública, - diferentemente dos demais precedentes analisados - o acórdão faz referência a dispositivos legais em que embasa a presunção do periculum in mora nas medidas impostas. Aduz-se que "os delitos imputados podem configurar atos de improbidade que importem em enriquecimento ilícito, tendo as apelantes como beneficiárias", de modo que "a indisponibilidade dos bens obtidos decorre de imposição constitucional e legal, prescindindo da demonstração de perigo de demora para sua decretação, nos termos do art. 37, § 4º, da Constituição Federal e artigos 6º e 7º da lei 8.429/1992".
Dentre as decisões analisadas, esta última foi a que mais forneceu elementos para compreender os fundamentos da presunção absoluta do "perigo na demora" para a decretação das medidas assecuratórias. Porém, trata-se de fundamentação que não pode ser aplicada a todo e qualquer caso, vez que se refere especificamente a crimes de lavagem - considerando os atos de dissimulação patrimonial que inexoravelmente se conectam a esse tipo de delito -, ou a condutas que, além de punidas penalmente, configurem atos de improbidade - utilizando-se como fundamento legal, neste caso, a lei 8.429/1992.
A partir do observado, é possível concluir que o entendimento do TRF-4 acerca da presunção legal de periculum in mora para a decretação de medida cautelares patrimoniais, dispensando a demonstração concreta de sua ocorrência, viola uma série de princípios inerentes às medidas cautelares.
De início, o entendimento jurisprudencial ora exposto viola a necessária preventividade das medidas cautelares, princípio segundo o qual a finalidade desse tipo de tutela é a prevenção da ocorrência de um dano irreparável ou de difícil reparação, como a dilapidação do patrimônio8. Por se tratar de medidas que visam garantir um provimento final - este, sim, de caráter definitivo -, as medidas assecuratórias não podem ser consideradas como um fim em si mesmas. Somente podem ser aplicadas quando demonstrado o perigo na eficácia do mencionado provimento final, sob pena de com este se confundirem e de possibilitar sua aplicação automática em todo e qualquer caso. Isso também viola a provisoriedade da medida, vez que inexistiriam argumentos aptos a possibilitar a sua revisão.
Além disso, salienta-se que as medidas cautelares não se baseiam em um juízo de certeza, mas em cognição sumária sobre os elementos constantes no inquérito policial ou na ação penal. Tendo em vista essa particularidade, a inexigibilidade do periculum in mora ofende o estado de inocência, uma vez que antecipa os efeitos patrimoniais da condenação - a indisponibilidade dos bens - sem que exista uma condenação criminal, baseando-se apenas em indícios de autoria e na materialidade do delito9.
Ademais, as medidas cautelares patrimoniais existem exatamente para assegurar a eficácia dos efeitos da condenação declarados em sentença nas hipóteses em que se aguardar até o trânsito em julgado da condenação pode tornar ineficaz o provimento final. Sob essa perspectiva, negar a necessidade de demonstração do "perigo na demora" significa negar uma característica da própria medida cautelar aplicada10.
Não se pode olvidar, ainda, que as medidas assecuratórias incorrem em restrição ao patrimônio do acusado sem a existência de uma cognição exauriente sobre os fatos imputados, razão pela qual deve ser demonstrada a efetiva necessidade de sua aplicação, sob pena de se violar o princípio da proporcionalidade11.
Os precedentes analisados também afrontam o princípio da motivação, uma vez que, ao não enfrentarem devidamente a questão da necessidade de demonstração do periculum in mora, limitando-se a alegar uma suposta presunção abstrata do requisito, sem apresentar um fundamento legal para tanto, há o descumprimento do dever constitucional de fundamentação das decisões (art. 93, IX, CF), o que dificulta, ainda, o exercício do direito ao recurso pelos acusados.
Por fim, eventual argumentação no sentido de que a lei processual penal não exige expressamente a demonstração do periculum in mora para a concessão de medidas cautelares patrimoniais perdeu sentido com a previsão do §1º do art. 315 do CPP (introduzido pela lei 13.964/2019). O dispositivo determina que "na motivação da decretação da prisão preventiva ou de qualquer outra cautelar, o juiz deverá indicar concretamente a existência de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada". Essa exigência de apresentação de "fatos novos ou contemporâneos" representa o fundamento legal do periculum in mora, uma vez que as medidas cautelares - inclusive as patrimoniais - não podem ser aplicadas com base em presunções abstratas, tal como sustentou os acórdãos analisados12.
Ante o exposto, o entendimento jurisprudencial - mais especificamente, do Tribunal Regional Federal da 4ª região para fins desse estudo - de que o periculum in mora é presumido pela lei, de modo a não se exigir a sua demonstração para a decretação das medidas assecuratórias, não se coaduna aos princípios inerentes às medidas cautelares, do que decorre a urgência de um olhar mais detido sobre este posicionamento, evitando-se que seja aplicado de modo automático sem um enfrentamento ponderado acerca do tema.
O conteúdo desta coluna é produzido pelos membros do Núcleo de Pesquisa em Direito Penal Econômico da Universidade Federal do Paraná - NUPPE UFPR.
*Gabriel Henrique Halama De Lima é acadêmico de Direito da UFPR. Estagiário do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Membro do Núcleo de Pesquisa em Direito Penal Econômico da UFPR.
**Pedro Henrique Nunes é acadêmico de Direito da UFPR. Estagiário do escritório Lamers Advogados. Membro fundador e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Direito Penal Econômico da UFPR.
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1 BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 8. ed. São Paulo: RT, 2020. p. 1263.
2 SOUZA, Alexander Araújo de. O abuso do direito no requerimento de medidas cautelares típicas e atípicas no processo penal vol. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. [Ebook].
3 TORNAGHI, Hélio. Curso de processo penal vol. 1. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 210.
4 Para melhor compreender a fundamentação, também foram analisados os acórdãos citados ao longo dos julgados encontrados.
5 Com esses exatos termos, todos de relatoria do Des. Fed. João Gebran Neto, pela 8.ª Turma: ACR 5030548-22.2020.4.04.7000, j. 25 fev. 2021; ACR 5061219-62.2019.4.04.7000, j. 9 dez. 2020; ACR 5032072-88.2019.4.04.7000, j. 15 out. 2020; ACR 5031321-04.2019.4.04.7000, j. 24 jun. 2020; ACR 5031320-19.2019.4.04.7000, j. 21 mai. 2020.
6 Nesse sentido, todos do TRF-4: ACR 5020767-98.2019.4.04.7100, 7ª T, Rel. Des. Fed. Danilo Pereira Junior, j. 10 jun. 2021; ACR 5041275-84.2013.4.04.7000, 8ª T, Rel. Des. Fed. Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, j. 19 dez. 2019; ACR 5001092-66.2017.4.04.7118, 7ª T, Rel. Des. Fed. Cláudia Cristina Cristofani, j. 28 nov. 2019; ACR 5002476-04.2016.4.04.7117, 7ª T, Rel. Des. Fed. Márcio Antônio Rocha, j. 18 abr. 2017; ACR 5009018-35.2015.4.04.7000, 7ª T, Rel. Des. Fed. Marcelo Malucelli, j. 14 out. 2015.
7 TRF-4, 7ª T, ACR 5008589-29.2019.4.04.7000, Rel. Des. Fed. Salise Monteiro Sanchotene, j. 21 ago. 2019. Fundamento semelhante atrelado ao risco de dissipação dos bens devido ao conhecimento das investigações, foi utilizado em outros recursos de sua relatoria, tais como na ACR 5019811-91.2019.4.04.7000, julg. 07 nov. 2019 e na ACR 5008581-52.2019.4.04.7000, julg. 21 ago. 2019.
8 BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018. p. 939.
9 ESSADO, Tiago. A perda de bens e o novo paradigma para o processo penal brasileiro. Tese (Doutorado em Direito) - Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo - SP, 2014. p. 195-196.
10 Ibid, p. 941-942.
11 LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal.18. ed. São Paulo: Saraiva, 2021. p. 659.
12 DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de processo penal. 7ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021[Ebook].
“O DUPLO BINÁRIO COMO SUPER TRUNFO NOS FATOS ECONÔMICOFINANCEIROS: APROXIMAÇÃO CRÍTICA À LUZ DA VEDAÇÃO AO BIS IN IDEM”
Por: Marco Jorge Eugle Guimarães
Há muito se constrói um racional, em nosso mundo jurídico, que as esferas cível, administrativa e penal são independentes entre si e, eventual fato poderá ser objeto de avaliação judicante em todos os ramos do direito, ressalvada a hipótese de reconhecimento, pela esfera penal, de que o fato não constitui delito ou não se tenha verificado que o imputado seja o autor do fato.
Nesse norte, a doutrina1 acerca de tal temática se debruça numa interpretação literal de nossa Carta Magna, a qual, em seu arquétipo analítico, não fez consignar o impedimento do cognominado bis in idem interdisciplinar ou transversal e, muito pelo contrário, reforçou a possibilidade persecutória nas instâncias administrativo sancionatória e penal, quando determinado fato jurídico comporte responsabilização em ambas as esferas. Por exemplo, no âmbito de questões que envolvam atos de improbidade administrativa, o artigo 37, §4º da Lex Legum aduz que, uma vez constatados tais fatos e, erigido um julgamento procedente da demanda, “importarão na suspensão de direitos políticos, perda da função pública, a indisponibilidade dos bens do autor dos fatos e o ressarcimento ao erário, sem prejuízo de ação penal cabível”.
Por mais que a abalizada doutrina clássica e as normas consuetudinárias sustentem a impossibilidade de dupla sanção penal pelo mesmo fato, hodiernamente, o direito penal econômico nos confere facetas que visam estrangular o particular nas mais variadas frentes de atuação, em detrimento de um determinado fato. Fato é que, quando a abordagem da casuística aporta à seara penal, muitas das vezes já o fazem pela mera condição protocolar, visto que a esfera precedente, logrou intento na coleta de todas as evidências, com adoção de medidas acautelatórias pessoais e reais, assim como medidas assecuratórias para garantir o ressarcimento dos danos ao Estado-Persecutor. Trata-se de uma prevalência sem fim do Estado em detrimento do particular, isto é, a hipertrofia do Poder Público2 por meio dos órgãos reguladores e de persecução, em desfavor da hipotrofia do particular, que se encontra desamparado pelo próprio ordenamento jurídico, o qual fomenta esse blitzkrieg persecutório.
Ao nosso sentir, o texto constitucional acima apontado nos permite uma margem interpretativa a partir de remissões do Poder Legislativo, o qual encontra-se incumbido de estabelecer gradações e formas de sanções em casos alusivos ao direito administrativo sancionador que ricocheteiem no direito penal. E é a partir dessa margem interpretativa – que até então não fora clarificada pelo órgão legiferante – que compreendemos pela vedação do bis in idem entre as esferas da administrativização do direito penal e do direito penal originário dos órgãos persecutores.
Há muito, propugna-se, no âmbito do direito penal que, tal ramo do direito tão somente será instado a exercer seu poder coercitivo quando as esferas precedentes – civil ou administrativa – não alcançarem uma satisfação real de tutela do bem jurídico posto à prova. Ou seja, fazendo alusão à Teoria dos Círculos, inicialmente, verifica-se que, se o bem jurídico tutelado é socorrido pela primeira camada de controle social, qual seja, do direito civil. Se houver solução à contenda instalada, restabelecida está a pacificação social. Caso não tenha solucionado adequadamente a celeuma, convém a manutenção da persecução, porém, em outro ramo do direito, qual seja, o direito administrativo. Uma vez mais, se tal ramo jurídico alcançar a resolução do conflito com o restabelecimento da ordem, não se faz necessário a continuação da via crucis sancionatória. No entanto, caso tal esfera jurídica prevarique na obtenção de eficácia plena à luz da casuística, impõe-se o chamamento da ultima ratio para solução da controvérsia.
Vejamos que esse estabelecimento de gradação, com alcance da seara penal, é conferido ao Poder Legislativo, sob o holofote do Princípio da Necessidade Penal3, que ao nosso olhar, data máxima vênia, vem sendo escanteado pelos órgãos de controle social, com fulcro num direito penal midiático.
Alguns exemplos que conseguimos deduzir, de plano, com enfoque no direito penal econômico, seriam: (i) cobranças de débitos tributários e seu respectivo processo administrativo – ausência de pagamento voluntário após procedimento fiscal culmina na imediata comunicação, por meio de representação fiscal para fins penais, ao Ministério Público correlato, para adoção das medidas criminais em desfavor do responsável tributário. Uma vez quitado o valor atinente ao débito tributário no curso da persecutio criminis in judicio acarreta a extinção da punibilidade da pena alusiva ao delito contido na Lei nº. 8.137/1990 e, conseguintemente, ao procedimento fiscal arrecadatório atrelado ao Fisco; (ii) instauração de procedimento administrativo perante a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) por suposta prática de oferta de investimentos coletivos sem autorização legal para tanto – pessoa jurídica que se encontra sujeita a apuração prévia perante a autarquia federal, que será julgada por membros do alto escalão do próprio órgão, está um passo atrás de um fairplay processual administrativo. Ao final desse processo administrativo, é condenado a paralisar suas atividades por determinação da aludida autarquia (stop order), com sujeição à multa arbitrada em valores astronômicos e imediata comunicação o dominus litis, visando a responsabilização penal de seus sócios administradores. Paralelamente, ante o engessamento da sua atividade empresarial decorrente de uma decisão administrativo-estatal (intervenção do estado na liberdade econômica do sujeito), os clientes da empresa voltam-se contra a ela, visando indenização dos valores investidos que não foram ressarcidos.
As indagações que se colocam são: o Estado-Persecutor não teria meios coercitivos, no âmbito da via administrativa, para exigir a quitação dos tributos em aberto? Precisaria, de fato, submeter uma cobrança fiscal à conhecimento do dominus litis para se deflagrar uma ação penal, visando o recolhimento de tributos? Estaria o Estado lançando mão de uma arrecadação predatória em face do contribuinte, que poderia ser solvida no âmbito do próprio processo administrativo? Quanto ao exemplo lançado acerca da suposta oferta de investimentos coletivos, seria necessária a interrupção das atividades da empresa, afetando inúmeras vidas, direta e indiretamente, máxime a condição reputacional posta em face da empresa alvo das apurações? Qual seria vantagem conferida ao Estado a partir da interrupção de operação de empresa atrelada à investimentos coletivos?
Questionamentos tais deveriam ser aviados ex ante a edição de normas de conotação delitiva.
Como tais indagações não foram consideradas previamente à elaboração das legislações penais extravagantes atinentes à matéria, pressupõe-se a constitucionalidade das normas, até que o órgão judicante Supremo interprete de forma diversa. Logo, se há vigência e aplicação dos mecanismos legais disponíveis ao Estado-Persecutor, temos que as normas procedimentais administrativas acabam por integrar o espectro penal, ainda que de forma relutante, tornando-se um subsistema penal indispensável4, pois sem ele, não se poderá recorrer a última esfera do ramo do direito.
Ante tal explanação, temos que o direito administrativo sancionador, inspirado num viés de intervenção da propriedade do sujeito estabelece, ainda que embrionariamente, um vínculo umbilical com o direito penal substantivo e adjetivo, visto que no âmbito processual, os elementos de informação e provas produzidas na via administrativa, por regra, são aproveitados nas fases preliminar e de instrução criminal, sumarizando as ações persecutórias dos órgãos de controle institucionais.
Vejamos que, em tempos modernos, pode-se suscitar a existência de um modelo processual penal tripartido, quando o enfoque material versar sobre questões atreladas ao direito penal econômico, pois o processo administrativo sancionador, por ricochete, já integra a persecução criminal por tudo que se instrumentaliza em seu bojo e, por tudo que representa no tocante a instrução criminal – como cediço, autarquias e órgãos reguladores servem como assistentes à acusação do Ministério Público, visando fortalecer as teses acusatórias. Estamos diante, verdadeiramente, da caças às bruxas!
De outra banda, inspirados em Tratados e Convenções Internacionais, bem como em decisões reiteradas de Tribunais Internacionais, conseguimos apurar, de maneira mais consolidada, a existência de uma tese fronteiriça entre hipertrofia Estatal e a hipotrofia do particular no âmbito dos processos administrativos sancionadores e penais, qual seja, o Princípio da Independência Mitigada, o qual tem por escopo limitar a elasticidade a imputação pela via do duplo binário.
Tal princípio consiste, precipuamente, na compressão da independência das esferas do ramo do direito, a fim de se evitar sanções que culminem na bancarrota do particular, violando, de forma inconteste, a dignidade da pessoa humana.
Estribado na premissa do direito administrativo sancionador como subsistema do ordenamento jurídico-penal, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), nos idos de 2014, aderiu à tese da vedação de bis in idem entre o direito administrativo sancionador e o direito penal, por compreender que, ante a preexistência da sanção administrativa perante o órgão público respectivo, fulmina a necessidade de uma persecução penal em juízo, visto que já houve um severa punição por fato idêntico, ofendendo assim, as garantias individuais do cidadão, no mesmos termos do que predispõe a Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais.
Em oportunidade pretérita, a mesma Corte, analisando uma situação em que envolvia sanções administrativas castrenses do Estado Russo e a persecução penal decorrente do mesmo fato, que imputou a um homem a sanção de 03 (três) dias de detenção, por ter inserido sua namorada em instalações militares, reconheceu que não seria o caso de atribuir nova sanção oriunda do mesmo fato5.
Como fundamento da decisão, se basearam nos “critérios Engel” (Engel criteria) consistente em: (i) analisar o grau de importância do ato perpetrado e, se tal ato já reflete um caráter penal em sua essência; (ii) verificar qual seria a esfera de proteção do bem jurídico tutelado no âmbito do direito administrativo sancionador e, certificar se tal proteção não guarda relações íntimas com o direito penal, e; (iii) apurar se a sanção imposta ao apenado implica em alguma limitação ambulatória. No caso concreto, o ato de desordem na seara militar já se reveste de caráter penal, preenchendo, portanto, o primeiro critério. O bem jurídico tutelado na presente situação se ilustra na ordem pública e na dignidade humana, bens estes que já se encontram protegidos pela ultima ratio. E, por fim, a sanção administrativa de 03 (três) dias de detenção em caserna consignou um caráter penal, pois cerceou o direito de ir e vir do apenado.
Pelos procedimentos punitivos instaurados guardarem os mesmos fatos, substancialmente, determinou-se o afastamento de eventual sanção criminal com fulcro na vedação do ne bis in idem.
Já em território tupiniquim, tivemos a grata surpresa de, ao final de 2020, sermos agraciados com uma posição semelhante às Cortes Internacionais.
Nosso Pretório Excelso enfrentou a temática no âmbito de Reclamação Constitucional em sede Ação Civil Pública por atos de Improbidade Administrativa, haja vista a preexistência de um trancamento de Ação Penal, escorado de Habeas Corpus, com fundamento elementar na negativa de autoria do recorrente. Na espécie, o Ministro Relator, sua Exa. Gilmar Mendes6, aprofundando seus estudos na narrativa de ambos os procedimentos existentes em face do recorrente, vislumbrou que havia: (i) identidade de narrativas; (ii) identidade de conjunto fático e acervos probatórios na fundamentação dos procedimentos
paralelos.
O douto Ministro Relator passou a avaliar o artigo 37, § 4º, da Carta Constitucional e, estruturou, a partir de tal verbete, o Princípio da Independência Mitigada no âmbito do ordenamento jurídico pátrio. Em seus fundamentos, se estabeleceu, casuisticamente, uma lógica irrefutável sob a seguinte óptica: a profundidade do processo penal no tocante a coleta de evidências e demais provas é infinitamente maior do que de uma Ação Civil Pública por atos de Improbidade Administrativa. Ainda, a seleção desse arcabouço probatório para edificar um édito condenatório no âmbito do processo penal é muito mais rigoroso frente a um processo administrativo sancionador. Como, no caso concreto, o recorrente fora beneficiado pelo trancamento de Ação Penal, haja vista a sua ausência de autoria ou participação na empreitada criminosa, não havia motivos ótimos para sua manutenção da Ação de Improbidade Administrativa, em sede de processo administrativo sancionador, com espeque nos princípios da proporcionalidade, subsidiariedade e da necessidade.
Concluímos que, diante de tudo o que fora abordado no presente texto, o Estado arrimado na sua tríplice função, tem o dever constitucional de, inicialmente, analisar os projetos de leis incriminatórios – novatio legis incriminador – abalizados no Princípio da Necessidade Penal e seus corolários (Princípio da Fragmentariedade, Subsidiariedade e Intervenção Mínima) e desvencilhados de qualquer repercussão simbólica ou midiática, confrontar as normas administrativo-sancionatórias para checar se estas não supririam, a contento, o ajuste pretendido.
Superada a fase de lege ferenda, cabe ao Poder Judiciário o necessário controle, não só das normas postas, mas também dos excessos e arbítrios das Autoridades que se valem de super trunfos ou blitzkriegs procedimentais para, não só, alcançar seu intento persecutório, como também açoitar a dignidade humana do particular. Controle dos excessos são necessários!
Advogado Criminalista, Pós-Graduado em Direito e Tecnologia da Informação pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (POLI-USP) e Pós-Graduando em Direito Penal Econômico pela Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP).
1 CAVALLI, Marcelo Costenaro. Fundamento e limites da repressão penal da manipulação do mercado de capitais: uma análise a partir do bem jurídico da capacidade funcional alocativa do mercado. Tese para obtenção do título de Doutor em Direito. Universidade de São Paulo – USP. 2017.
2 MALAN, Diogo. Processo Penal aplicado à criminalidade econômico-financeira. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. 2015. RBCCrim 114.
3 MARTINELLI, João Paulo Orsini. DE BEM, Leonardo Schmitt. Lições fundamentais de direito penal – parte geral. 3ª Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2018, p. 173.
4 OLIVEIRA, Ana Carolina. Direito de Intervenção e Direito Administrativo Sancionador: o pensamento de Hassamer e o direito penal brasileiro 2012. Tese para obtenção do título de Mestre em Direito. Universidade de São Paulo – USP. 2012.
5 Öztürk c. Allemagne (Requête n. 8544/79), ECHR, 21 de fevereiro de 1984.
6 STF, Rcl. 41.557/SP, 2ª Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 14.12.2020.
DA IMPOSSIBILIDADE DA PRÁTICA DO CRIME DE FRUSTRAÇÃO DO CARÁTER COMPETITIVO DO PREGÃO POR MEIO DE BLOQUEIO
Por: Carolina Lopes Pinheiro[1] e Carolina Schmidt[2]
Visando o combate a cartéis em contratações públicas, tem se tornado cada vez mais comum a existência de processos criminais, tanto na esfera Estadual, quanto na Federal, em que se imputa a prática do crime de frustração do caráter competitivo de licitação[3], na modalidade pregão presencial, por meio da utilização da técnica conhecida como bloqueio ou paredão.
O bloqueio em pregão presencial é definido pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), como uma estratégia anticompetitiva caracterizada pela atuação concertada entre uma empresa que fornece determinado bem ou serviço
Na prática, o objetivo é reduzir as chances das demais licitantes de se classificarem para a fase de lances do pregão, restringindo, com isso, a concorrência no certame.
No entanto, conclui-se que, a tese de bloqueio em pregão presencial, seja na modalidade menor ou maior preço, é incabível, dada a própria lógica desse tipo de licitação.
Assim, o escopo desse artigo é demonstrar que o crime previsto no Art. 337-F, do Código Penal, não pode ser realizado mediante a utilização desse modus operandi, devendo, nesses casos, ser reconhecida a atipicidade da conduta.
Da impossibilidade de bloqueio em pregão
De acordo com o contido na Lei nº 10.520/2002, nas situações em que a Administração Pública necessite da prestação de um serviço ou da aquisição de bens comuns, deverá realizar licitação através da modalidade do pregão, que pode ser presencial ou eletrônico.
Tendo em consideração que o pregão eletrônico não está sujeito à regra dos 10%[4], a discussão nesse artigo se dará somente em torno do pregão presencial.
O pregão presencial, independentemente do seu critério, maior ou menor preço, possui dois momentos distintos de disputa de valores: i) apresentação das propostas de todos os licitantes cadastrados e ii) fase de lances verbais e sucessivos. Nessa última fase participarão somente os licitantes classificados na fase de abertura dos envelopes.
Dessa maneira, de acordo com o artigo 4º, VIII, da Lei 10.502/2002, serão classificados para a fase de lances verbais, o licitante com a melhor proposta e, todos os demais, que atingirem a diferença de, no máximo, 10% (dez por cento) da primeira classificada, devendo ser classificados no mínimo três licitantes.
Destaca-se que as propostas iniciais entregues pelos licitantes ao pregoeiro estarão lacradas nos envelopes, de forma que os demais concorrentes não conseguem visualizá-las antes da classificação inicial, portanto, é impossível aos licitantes possuírem controle das ofertas de todos os seus concorrentes, de modo a restringir ou bloquear a competitividade do certame.
Deste modo, verifica-se em processos dessa natureza, que a argumentação que vem sendo apresentada pelo Órgão acusador, de que os acusados se utilizam do bloqueio com intuito de afastar concorrentes da fase de lances e, assim, inviabilizar a disputa, é completamente descabida. Isso porque, essa tese tem se fundamentado em eventos inviáveis, dada a dinâmica da modalidade licitatória, pois a própria normativa dispõe de mecanismos que proporcionam um maior número de participantes para a fase de lances, estabelecendo apenas a quantidade mínima e, não máxima.
Isto é, não há como um licitante impedir que seus concorrentes participem da fase aludida, pelos simples fatos de: i) não terem domínio sobre as propostas ofertadas por todos os concorrentes; e ii) a lei determinar que serão classificados no mínimo três - e não somente três – concorrentes.
Nessa lógica, Carlos Ari Sundfeld[5] aduz que
“Eventual acerto prévio entre três licitantes quanto a suas ofertas iniciais pode existir, claro, mas não tem como lhes garantir a passagem, nem pode gera o bloqueio de terceiros; isso depende dos valores de todas as propostas iniciais, o que o acerto só entre três licitantes não é capaz de afetar. ” (2020, p. 580)
“Se três licitantes não têm poder de dominação sobre os demais e não mandam no mercado (ditando comportamentos e impondo condutas no ambiente da licitação como um todo), não há como supor a existência de cartel entre eles. Não há como supor acordo ilógico, o qual, por conta das regras, não poderia garantir a exclusão de competidores não alinhados. ” (2020, p. 580)
Ainda, conclui:
“À luz das regras do pregão presencial, não é possível que um acordo entre licitantes bloqueie a ida de terceiro à fase de Lances. Não há número máximo para a passagem de concorrentes à segunda fase (passam todos com propostas iniciais até 10% superiores à menor), sendo impossível que algum acordo bloqueie a passagem de terceiro”. (2020, p. 582)
Nesse sentido, cumpre ressaltar ainda, que mesmo não se tratando do entendimento perfilhado por essas autoras, a tese de bloqueio, só seria minimamente cabível, em certames cujo critério é o do menor preço, visto que, nesses casos, a Administração Pública consegue observar se as propostas dos licitantes na primeira fase são irrisórias, ou seja, ofertas que claramente estão em desacordo com o mercado e, portanto, são impraticáveis.
Já, em se tratando de um pregão pelo critério do maior preço, o objetivo da Administração Pública é justamente o oposto, isto é, a obtenção da maior oferta. Assim, será vencedor o participante que apresentar a proposta de maior valor. O que torna descabida a alegação de lesão a competitividade e eventual prejuízo à Administração Pública.
Conclusão
Ainda que o bloqueio em pregão presencial, venha sendo indicado pelo Ministério Público como um meio utilizado para a prática do crime de frustração do caráter competitivo das licitações, pela argumentação acima apresentada, é possível concluir que, dada a própria dinâmica desse tipo de certame, o bloqueio não é um instrumento hábil para impedir o caráter competitivo das contratações públicas.
Sendo assim, este tipo de acordo colusivo não seria capaz de eliminar ou mesmo, restringir, a participação dos demais licitantes para a 2ª fase da disputa, de modo a impedir a concorrência dos processos de contratação de bens e serviços pela Administração Pública.
Dessa forma, nos processos em que o Órgão acusador indicar o bloqueio como sendo o único método empregado para a configuração desse delito, a atipicidade da conduta deve ser reconhecida, com a consequente absolvição do acusado.
[1]Advogada especialista em Direito Penal e Criminologia (UFPR) e mestre em Direitos Fundamentais e Democracia (Unibrasil).
[2]Advogada especialista em Direito Administrativo (Instituto de Direito Bacellar) e bacharelanda em Gestão Pública (UFPR).
[3]Art. 337-F, do Código Penal: Frustrar ou fraudar, com o intuito de obter para si ou para outrem vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação, o caráter competitivo do processo licitatório: Pena - reclusão, de 4 (quatro) anos a 8 (oito) anos, e multa.
[4] A estratégia de bloqueio não se aplica ao pregão eletrônico, pois nesta modalidade todas as empresas com propostas dentro dos parâmetros estabelecidos pelo Edital podem participar da fase competitiva, em que são apresentados os lances (art. 29 do Decreto nº 10.024/2019).
[5] SUNDFELD, Carlos Ari et. al. Controle Concorrencial nas licitações: a tese do bloqueio em pregão presencial. Revista Jurídica da Presidência. Brasília, v. 21, n. 125, p. 564-589, Out. 2019/Jan. 2020.
Referências
BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Institui o Código Penal.
BRASIL. Decreto nº 10.024, de 20 de setembro de 2019. Regulamenta a licitação, na modalidade pregão, na forma eletrônica.
CADE. Guia - Combate a Cartéis em Licitação. Disponível em:
https://cdn.cade.gov.br/Portal/Not%C3%ADcias/2019/Cade%20publica%20Guia%20de%20Combate%20a%20Cart%C3%A9is%20em%20Licita%C3%A7%C3%A3o__guia-de-combate-a-carteis-em-licitacao-versao-final-1.pdf.
SUNDFELD, Carlos Ari et. al. Controle Concorrencial nas licitações: a tese do bloqueio em pregão presencial. Revista Jurídica da Presidência. Brasília, v. 21, n. 125, p. 564-589, Out. 2019/Jan. 2020.
ORDEM ECONÔMICA E A (IM)POSSIBILIDADE DE SER CONSIDERADA BEM JURÍDICO AUTÔNOMO
Por: Lívia Maria Alves Teixeira Lima[1]
Delimitar os bens jurídicos tutelados pelo Direito Penal é uma garantia do controle do ius puniendi do Estado contra os cidadãos. O primeiro a desenhar a teoria do bem jurídico foi Franz Birnbaum (século XIX) que dizia que o delito não lesiona direitos, mas sim lesiona bens fundamentais imateriais; esses são valores da existência social, valores esses instituídos pela própria vida em sociedade. Quando ocorre um homicídio, por exemplo, o bem violado é, evidentemente, a vida humana. Ademais, implicitamente são violados de forma secundária a integridade física e a liberdade, pois o corpo da vítima é destruído e seu direito de ir e vir cerceado de forma definitiva e irremediável. No âmbito do direito penal econômico, como a natureza dos bens jurídicos tutelados é transindividual ou metaindividual, há ainda muitas controvérsias e polêmicas sobre quais bens jurídicos são tutelados quando da análise de alguns tipos penais econômicos.
Como ponto de partida, o crime de lavagem de dinheiro ainda levanta dúvidas na doutrina e jurisprudência, nacionais e estrangeiras, de qual seria o bem jurídico violado quando da prática do mencionado fato típico. Existem três correntes distintas sobre qual bem jurídico é ofendido quando da prática do branqueamento de capitais: a primeira defende ser a ordem econômica; a segunda defende ser a administração da justiça e, por último, a mais complexa em que os bens jurídicos tutelados são múltiplos: a administração da justiça, a ordem econômica e o bem jurídico protegido pelo crime antecedente. A dificuldade encontrada pelos órgãos de persecução penal para delimitar as condutas praticadas pelos agentes e para a obtenção de provas coloca em risco as funções de investigar, processar e julgar dos órgãos de justiça criminal.
Os tipos penais econômicos, em sua maioria, são normas penais em branco e crimes de perigo abstrato. Esses tipos penais vazios, geralmente, precisam de complementos de resoluções emanadas de órgãos do Poder Executivo, tais como Banco Central, Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), Conselho Monetário Nacional (CMN), entre outros.
Conceituar o que seria ordem econômica é uma tarefa complexa, pois nem mesmo os especialistas chegaram a um consenso do que objetivamente seria esse “possível” bem jurídico. A Constituição Federal, em seu artigo 170, expressa quais são os fundamentos que norteiam a ordem econômica: a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa. A constitucionalização da ordem econômica mostra o quão ela é importante e cara ao estado democrático de direito, pois ela objetiva assegurar uma vida digna e igualitária para todos os cidadãos.
Existem diversas leis esparsas que tipificam condutas contra a ordem econômica, mas no presente artigo destacam-se duas legislações: a lei 8.137/90, conhecida como crimes contra a ordem tributária e a lei 8.176/91. A primeira, nos incisos do seu artigo 4º, elenca as condutas contra a ordem econômica, consideradas crimes. A segunda, as condutas tipificadas estão previstas no artigo 1º da referida lei. O Código de Processo Penal Brasileiro, em seu artigo 312, também traz o termo “ordem econômica” de forma muito vaga, pois como decretar prisão preventiva baseado em termos genéricos (ordem econômica, ordem pública)?
O professor Luís Greco, catedrático da Universidade Humboldt de Berlim, em um vídeo para o canal no YouTube intitulado Senhor Criminologia[2], com apoio da Universidade Federal de Minas Gerais, afirma que ele tem tendências a não aceitar a ordem econômica como bem jurídico autônomo, porém ele afirma ser necessário um estudo mais aprofundado do tema e análise dos tipos penais. Essa palestra ministrada pelo professor Greco trouxe uma inquietude nessa que vos escreve sobre o tema apontado no título e objeto desse artigo. Ele menciona também que provavelmente, quando da análise dos tipos penais ditos ofensivos a ordem econômica, concluiríamos que em todos esses tipos penais existe um perigo abstrato para bens individuais (patrimônio, propriedade) ou bens coletivos, por exemplo, a concorrência (professor Luís Greco considera como um bem jurídico).
As leis 8.137/90 e a lei 8.176/91, a título de exemplo, possuem em seu bojo um tipo penal conhecido como “cartel”: acordo feito entre duas ou mais empresas do mesmo ramo, que combinam os preços dos seus produtos a fim de maximizar os lucros e estabelecer clientes e mercados de atuação, entre outras finalidades. Podemos perceber de plano que a livre concorrência é afetada, pois as outras empresas que não participam do processo de cartelização inevitavelmente vão perder espaço no mercado e, por consequência, serão obrigadas a encerrar seus empreendimentos. Os consumidores também são afetados porque não possuem direito a escolha do melhor produto em termos de qualidade e preço, forçando-os a comprarem produtos por preços abusivos. É instantâneo a nossa vontade de apontar a ordem econômica como bem jurídico autônomo, mas a conclusão que se chega é que bens jurídicos individuais são afetados com esse tipo de conduta, sobretudo o patrimônio.
A ordem econômica, possivelmente, não pode ser entendida como um bem jurídico autônomo, mas a base de outros bens jurídicos que fundamental a tutela penal (concorrências, relações de consumo, administração pública, entre outros). Os crimes contra a ordem econômica nada mais são que delitos que ofendem um conjunto de princípios de um sistema amplo de normas; a ordem econômica é atingida através dos bens jurídicos nos quais ela se presta a regulamentar, mas aquela, por si só, não é capaz de ser lesada de forma independente. A ordem econômica precisa de um complemento: ordem econômica + bem jurídico individual ou supraindividual penalmente relevante. Há a diminuição do patrimônio das empresas que não formalizaram o cartel e, claro, dos consumidores. Não há um entendimento claro sobre isso, nem tão pouco pacífico sobre se a ordem econômica figura como bem jurídico autônomo no direito penal econômico. Considerações mais aprofundadas e atentas, no futuro, serão de grande utilidade e fonte de debates e reflexões acerca desse assunto.
Ainda pairam muitas dúvidas acerca desse tema, uma temática inclusive pouco explorada pela doutrina especializada. O objetivo primordial do presente texto não é esgotar ou trazer respostas definitivas ao tema; a finalidade é fomentar a reflexão do que podemos ou não considerar bens jurídicos tutelados pelo direito penal, haja vista que não se pode considerar tudo como bem jurídico penalmente relevante.
A maioria dos autores que produzem sobre Direito Penal, sobretudo o Direito Penal Econômico não fazem maiores questionamentos, aceitando de pronto a ordem econômica como bem jurídico. O recrudescimento da chamada sociedade de risco de Ulrich (1986) não pode legitimar a desenfreada “intromissão” do Direito Penal em condutas que podem ser combatidas pelo direito administrativo ou civil. Se o Estado não souber os seus limites, até onde pode punir e como punir, abre-se espaço para arbitrariedades e flexibilização de garantias constitucionais, ainda mais em um ramo do direito em que se cerceia a liberdade, bem jurídico este tão caro que não pode ser restituído, pois o tempo perdido não pode mais ser recuperado, nem mesmo com indenizações na esfera cível. Há de se ter um olhar mais cuidadoso dos estudiosos em delimitar quais bens jurídicos merecem a tutela penal e quais podem ser preservados por outros ramos do direito.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Disponível em: www.planalto.gov.vr/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm Acesso em: 01 out. 2021
BRASIL. Lei n. 8.137, 1990. Define crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo, e dá outras providências. Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8137.htm. Acesso em: 01 out. 2021
BRASIL. Lei n. 8.176, 91. Define crimes contra a ordem econômica e cria o Sistema de Estoques de Combustíveis. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8176.htm Acesso em: 01 out. 2021
SOUZA, Luciano Anderson. Análise da legitimidade da tutela penal da ordem econômica. 2011. Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Direito Penal, USP, São Paulo.
WUNDERLICH, Alexandre, et al. Direito penal econômico: crimes financeiros e correlatos. São Paulo: Saraiva, 2011
[1] Graduada em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis; Pós-graduanda em Direito Penal Econômico pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; Advogada.
[2]CALHAU, Lélio. Senhor Criminologia. Criminalidade Econômica – Professor Luís Greco – UFMG/Canal Senhor Criminologia. YouTube, Maio 2021. Disponível em: https://youtu.be/L9UCXag6cPo
O ESCRIVÃO E O MINISTRO
Por: Beno Brandão e Alessi Brandão
É fato que todos os advogados, ainda que neófitos, têm alguma passagem pitoresca para relatar do dia a dia da relação com a Justiça. Histórias de audiências conturbadas, de bons ou maus atendimentos nos fóruns, delegacias ou outros órgãos públicos. Muitas delas são recheadas de nulidades e salpicadas de situações que requerem do advogado, além do conhecimento jurídico, um certo traquejo para contorná-las, ou, ao menos, para minorar o desgaste do momento.
Dentro desse contexto, recentemente vivemos duas situações, ne- gativas infelizmente, contendo alto grau de desprezo com a atuação pro- fissional do advogado, ocorridas em competências, digamos, diametral- mente opostas do nosso sistema processual. Em uma delas, a negativa de acesso aos autos pela defesa, cuja ordem emanou de um integrante da mais alta Corte do país, no Inquérito n. 4781, conhecido como o Inquérito das Fake News; o outro caso, o impedimento de acesso à defesa, oposta por um escrivão de Polícia Civil, a um mero boletim de ocorrência e de- poimento dos policiais militares antes da realização do interrogatório.
Comecemos pela situação de piso, ocorrida ao final de uma noite, quando solicitados a atender um cliente, que se encontrava na Delegacia da Mulher de Curitiba, acusado de ter agredido sua esposa. Embora não seja algo absoluto, não se pode negar que boa parte das vezes os advoga- dos sofrem certo preconceito quando defendem investigados de prática de agressão contra mulheres; o mesmo ocorre quando se trata de crime contra crianças e adolescentes. Nesse panorama é que se desenrolou o caso em apreço.
Logo no primeiro contato com o cliente, um senhor de mais de 60 anos que havia, pouco tempo antes, se submetido a uma cirurgia na prós- tata para a retirada de um tumor e que lhe rendeu uma incontinência urinária, verificou-se que ele havia se urinado e estava com uma das mãos algemada a um pedaço de ferro no interior da delegacia; não havia tido a oportunidade de ir ao banheiro, apesar de suas súplicas para os policiais que lá estavam.
Após breve conversa com o cliente, pediram os advogados que a família lhe trouxesse uma outra calça, posto que já passava de meia-noite e certamente a madrugada seria longa até que fosse lavrado o flagrante, pois a delegacia estava com muitas ocorrências. Perto das 3 horas da ma- drugada e sem nenhum sinal de início do seu interrogatório, solicitou-se aos policiais que entregassem a calça limpa e um casaco ao detido, que, apesar da idade avançada e sem registro de antecedentes, permanecia sendo tratado como uma pessoa de alta periculosidade: algemado a um cano no interior da delegacia. Um dos policiais até chegou a se sensibili- zar com a situação, ali, na fria madrugada curitibana, todo urinado e al- gemado. Contudo, foi repreendido por outra policial, que disse que se ele, o cliente, quisesse se trocar, que o fizesse após ser interrogado. A sensação que se tem – e cremos que muitos colegas já a tiveram – é de que para alguns não bastam as penalidades previstas no Código Penal após a con- denação. O escárnio e o constrangimento já são impostos na partida, já no início do procedimento investigatório.
Mas esse não é o ponto forte do nosso relato; apenas serve como pano de fundo para a arbitrariedade maior que veio a ocorrer. Pouco an- tes do interrogatório, isso já passado das 4 horas da madrugada, verificou- se que a sedizente vítima havia cansado de esperar sua inquirição, pelo que deixou a delegacia sem prestar esclarecimentos – e, portanto, forma- lizar a acusação contra o cliente; pediram os advogados, então, para ler os depoimentos prestados pelos policiais militares que atenderam a ocor- rência e verificar exatamente o que havia sido registrado no respectivo boletim. Medida básica que qualquer advogado tomaria: ter ciência pré- via da acusação para poder instruir o cliente para seu interrogatório. Regra básica, que tem como pressuposto lógico um direito comezinho, o de ter franqueado o acesso ao que já foi documentado.
Apesar dos abusos e constrangimentos já cometidos naquela noite, o escrivão apresentou o gran finale, transformando aquele senhor, subme- tido a uma situação humilhante, na personificação de Josef K., o famoso personagem de Franz Kafka, na obra O Processo, de leitura obrigatória a qualquer profissional do direito, onde se critica fortemente o autoritaris- mo do Estado e toda a estrutura judicial.
Munido de toda a sua autoridade – destaque-se que não participou do ato a delegada que subscreveu o termo posteriormente – o escrivão disse que não permitiria a leitura da acusação, ou seja, o que continha o boletim de ocorrência e nem o que tinham os policiais militares dito em seus depoimentos; afirmou que se os advogados ali presentes lessem es- sas peças, o cliente teria que ser acompanhado por outro advogado ou poderia até ser interrogado sem a presença de um defensor. A situação era dantesca. Tudo isso poderia ser passível de dúvida sobre sua efetiva ocorrência, não fosse por um detalhe: o indeferimento do escrivão restou consignado no termo de interrogatório. Diante da manifesta ilegalidade, a orientação da defesa técnica não poderia ser outra que não o do interro- gado permanecer em silêncio; além disso, solicitaram-se providências ad- ministrativas na Corregedoria da Polícia Civil e criminais ao Ministério Público, pela prática do crime do art. 32, da Lei n. 13.869/19, que prevê detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa àquele que
“Negar ao interessado, seu defensor ou advogado acesso aos au- tos de investigação preliminar, ao termo circunstanciado, ao in- quérito ou a qualquer outro procedimento investigatório de in- fração penal, civil ou administrativa, assim como impedir a obtenção de cópias, ressalvado o acesso a peças relativas a dili- gências em curso, ou que indiquem a realização de diligências futuras, cujo sigilo seja imprescindível”.
O outro caso que se passa a citar é de interesse nacional. Trata-se do Inquérito 4781, em trâmite perante o Supremo Tribunal Federal e, em que pese já decidido por maioria ampla do Plenário daquela Corte ser legal a sua instauração, certamente ainda gerará muito questiona- mento sobre sua licitude. Falamos do que se convencionou chamar de o Inquérito das Fake News.
Há uma certa limitação no que se pode expor aqui sobre o conteúdo do processo, vez que ele tramita, infelizmente, sobre segredo de justiça, a despeito de alguns advogados que atuam no caso já terem solicitado a sua publicização (exatamente para que que toda a imprensa e a população te- nham pleno conhecimento de seu conteúdo). Trata-se, pois, de fazer valer o princípio da publicidade, estabelecido expressamente na Constituição Federal, em seu art. 5º, LX, art. 93, inciso IX e art. 37, caput. Esse princípio ao mesmo tempo não só de resulta numa garantia às partes no processo, mas, concomitantemente, na efetivação da transparência necessária para o controle democrático da atuação do Poder Judiciário, conforme ensina Simone Schreiber.1
No entanto, a decretação desse segredo foi tão fortemente encarna- da pelo seu relator (que foi nomeado – e não sorteado – para presidi-lo), que os próprios advogados dos investigados tiveram e ainda continuam a ter toda uma série de limitações para acessar a investigação.
Apropriado um rápido histórico acerca desse Inquérito n. 4781. Foi ele instaurado por ordem do Presidente daquela Corte, Ministro Dias Toffoli, através da Portaria GP. n. 69, de 14 de março de 2019. Designou-se como relator o Ministro Alexandre de Moraes, o qual esta- beleceu em 19 de março de 2019 o objeto da investigação como sendo notícias fraudulentas ( fake news), falsas comunicações de crimes, de- nunciações caluniosas, ameaças e demais infrações revestidas de ani- mus caluniandi, diffamandi ou injuriandi, que estariam a atingir a hono- rabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros; bem como de seus familiares, quando houver relação com a dignidade dos Ministros, inclusive o vazamento de informações e documentos sigilosos, com o intuito de atribuir e/ou insinuar a prática de ilícitos por membros da Suprema Corte, por parte daqueles que têm o dever legal de preservar o sigilo; e a verificação da existência de esquemas de finan- ciamento e divulgação em massa nas redes sociais, com o intuito de lesar ou expor a perigo de lesão a independência do Poder Judiciário e ao Estado do Direito.
A razão que levou a presidência do Supremo Tribunal Federal do país a proceder dessa forma teve como estopim a notícia de um artigo, no qual um Procurador da República no Paraná e então integrante da Força Tarefa da Lava Jato publicar sobre o Poder Judiciário, criticando a competência da Justiça Eleitoral para julgar casos de corrupção, visto que, nas palavras do Procurador, publicadas no site “O Antagonista”, “a Justiça Eleitoral histori- camente, não condena e não manda ninguém para a prisão.”
Referido inquérito, que até hoje, transcorrido mais de ano, não veio a público em sua integralidade, mas que se diz já contar com mais de 10 mil páginas, parece investigar um número indefinido de assuntos, en- tre eles, inclusive, o fato envolvendo o ex-Procurador-Geral da República,
Rodrigo Janot, que disse certa feita ter ido armado ao Supremo Tribunal Federal, com a intenção de assassinar o Ministro Gilmar Mendes. Contudo, não se sabe ao certo o que exatamente existe dentro desse inquérito.
Em 26 de maio de 2020 o relator do Inquérito 4781 determinou o afastamento do sigilo bancário e fiscal, busca e apreensão e bloqueio em redes sociais de diversas pessoas, entre eles deputados federais, influencia- dores digitais e empresários (estes últimos no pressuposto de que, possivel- mente, financiariam perfis que promoveriam fake news). A questão posta neste artigo não se relaciona aprofundar o acerto ou desacerto da decisão, não se discute sequer se há ofensa ou não aos direitos de expressão e livre manifestação do pensamento. O ponto é outro. Tal qual o que ocorreu no primeiro caso, onde um escrivão de polícia, fazendo as vezes de um delega- do de polícia, feriu prerrogativas do advogado, o mesmo ocorreu – e ainda continua – no caso em trâmite perante o Supremo Tribunal Federal.
Com efeito, no mesmo dia da operação os advogados dos atingidos pela busca e apreensão imediatamente requereram formalmente no Supremo Tribunal Federal cópia do processo e, principalmente, da deci- são, posto que ela não instruiu os respectivos mandados. O decisum, e somente ele, foi disponibilizado no site daquela Corte no dia seguinte à operação. Não obstante os esforços de todos os advogados constituídos nos autos, o acesso ao processo demandou vários dias.
Nesse ínterim, foram impetrados vários habeas corpus visando combater a ilegalidade de não concessão de vista, valendo destacar os writs do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (HC 186492) e da Associação Nacional de Membros do Ministério Público – MP. Pró Sociedade (HC 185500). Posteriormente se constatou que de fato o Ministro relator havia, dois dias após a operação, decidido por dar aces- so parcial do inquérito; contudo, a burocracia, que tanto o judiciário pro- cura combater, imperou no caso, vez que por se tratar do inquérito físico, todas as intimações dos advogados estavam e continuam sendo feitas por correio. Se não bastasse, os defensores tiveram ainda que esperar que os autos voltassem da Procuradoria Geral da República, sendo, que de fato, o primeiro contato havido com algum elemento concreto do malsinado inquérito ocorreu somente 10 dias após. Isso sem contar que durante esse período ocorreram algumas audiências para inquirição dos investigados, sobre os fatos que permaneciam sigilosos. Na prática, ocorreu a mesma si- tuação do caso relatado na Delegacia da Mulher de Curitiba: interrogatório sem franqueamento prévio à defesa do dos elementos probatórios. Em face disso, alguns alvos do Inquérito 4.781 permaneceram em silêncio.
O problema não se findou por aí. Com surpresa, os vários defenso- res que atuam no caso verificaram que não foi disponibilizado o inquéri- to em si, mas, sim, uma parte pequena, constituída basicamente por do- cumentos selecionados, de pouca importância, que passaram a formar o denominado Apenso 70. Da análise do referido apenso, constatou-se a ausência de vários relatórios, que foram expressamente citados na deci- são do relator, que decidira então pela busca e apreensão, quebras de sigi- los bancário e fiscal e bloqueio (indevido) de perfis dos investigados nas redes sociais. De fato, por ocasião da imposição das cautelares, o relator fez expressa referência a esses documentos (relatórios), os quais não esta- vam no Apenso 70.
Assim, foram requeridos os documentos que foram a base funda- mental para a decretação das medidas em comento. Invocou-se no pleito, como é curial, não só o Estatuto da Advocacia e da OAB (Lei n. 8.906/94, art. 7°, incs. XIII, XV e XXI), como também a Súmula Vinculante n. 14 do STF, a qual estabelece que “É direito do defensor, no interesse do repre- sentado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”.
O pedido foi indeferido ao argumento de que haveria ainda dili- gências pendentes de realização ou ainda em curso.
De fato, a jurisprudência tem temperado e retirado o caráter abso- luto de um direito de acessar todo e qualquer procedimento investigató- rio. Nesse sentido, vale citar a Reclamação n. 29.958, de relatoria do Ministro Alexandre de Moraes, onde restou consignado que o direito do defensor de acesso aos autos esbarra em diligências ainda em andamento. Há nisso uma certa subjetividade e falta de precisão no que exatamente consistiria o conceito de diligências em andamento. Por diligências em andamento, por óbvio, não se pode confundir investigação em curso. O que se pode compreender como razoável, que necessariamente não deva ainda ser acessível ao investigado e seu advogado, é aquela diligência que, descoberta a sua existência, poderá vir a ser frustrada seu resultado, pos- to que ainda não finalizada. Exemplo disso é a interceptação telefônica, pois, sabendo o investigado que está sendo monitorado, lógico que irá cessar suas comunicações; outro exemplo é o agente infiltrado, com a fi- nalidade de descobrir crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes (art. 190-A, da Lei n. 8.96/90), bem como também a infiltra- ção de policial em crimes praticados por organização criminosa (art. 3°, VII, da Lei n. 12.850/13).
Deveras, tendo havido no bojo do referido inquérito – que tramita desde seu nascedouro em sigilo e onde inclusive foi determinada a censu- ra prévia da Revista Crusoé e do site O antagonista – a decretação das cau- telares de busca e apreensão de dispositivos eletrônicos, em especial tele- fones celulares, quebra de sigilos bancário e fiscal e, para o espanto da comunidade jurídica, de perfis nas mídias sociais, a conclusão lógica é de que os relatórios citados na decisão constituem prova já realizada. Prova já encartada aos autos, tanto que foram utilizadas para a promoção de medidas invasivas.
Portanto, a menos que num futuro incerto se demonstre o oposto, com a publicização da investigação, ou ao menos disponibilização às de- fesas, as provas que materializam ditos relatórios constituem-se atos de investigação finalizados e concluídos. Não é demais ressaltar que a fase ostensiva da operação (rectius: as buscas e apreensões) foram em maio de 2020, passados, portanto, meses sem que nenhum advogado tenha tido conhecimento das provas que alicerçaram o decisum do relator.
Amplamente noticiado que a decisão de bloquear os perfis dos inves- tigados, inclusive no exterior, sofreu relativa resistência das redes sociais, em especial do Facebook. No entanto, a ameaça de penas de multa altíssimas e até a prisão do seu presidente no Brasil, fizeram com que a ordem fosse cumprida. E os processos, ou parte significativa deles, de interesse direto da defesa, continuam inacessíveis. Na prática, as defesas continuam às es- curas, sem poder ter a real dimensão das provas (no pressuposto de que de fato há algo de concreto). Não há, nesse panorama, como exercer de fato uma defesa eficaz. Como bem apontam Alberto Zacharias Toron e Alexandra Lebelson Zafir, “Advogados cegos, ‘blind lawyers’, poderão, quem sabe, confortar afetivamente seus assistidos, mas, juridicamente, prestar-se-ão, unicamente, a legitimar tudo o que no inquérito se fizer con- tra o indiciado.”2
O ponto nevrálgico é que a decisão da busca e apreensão, bloqueio e quebra de sigilos, baseia-se em provas (relatórios) já encartadas ao pro- cesso, que não poderia por essa razão serem sonegadas ao conhecimento dos atingidos pelas medidas impostas. Tomando por base o magistério de
Paulo Rangel, “Por conclusão, os princípios da verdade real e da igualda- de das partes na relação jurídico-processual fazem com que as provas car- readas para os autos pertençam a todos os sujeitos processuais, ou seja, dão origem ao princípio da comunhão das provas.”3
O postulado da comunhão das provas é bem explorado em diver- sas decisões do Supremo Tribunal Federal, tendo no decano da Corte, Ministro Celso de Mello, a melhor expressão de sua importância. Sua excelência, na Reclamação n. 18399, com maestria peculiar ensina que “a prova penal, uma vez regularmente introduzida no procedimento persecu- tório, não pertence a ninguém, mas integra os autos do respectivo inqué- rito ou processo, constituindo, desse modo, acervo plenamente acessível a todos quantos sofram, em referido procedimento sigiloso, atos de perse- cução penal por parte do Estado”.4
Os tais relatórios apenas deixaram de constar do Apenso 70, que constitui de peças as mais esparsas possíveis, sem uma ordem clara, sele- cionadas sem um critério claro. Mas é fato que tais relatórios, omitidos nas peças entregues aos inúmeros advogados do feito (visto que também são inúmeros os investigados), certamente integram o Inquérito das Fake News, que se diz possuir mais de 10.000 páginas. O fato de estarmos em fase de investigações, e não de ações penais propriamente ditas, não des- legitima a necessidade da atuação da defesa por advogado. Como bem lembrado por Carlos Hélder Carvalho Furtado Mendes, Marcos Eugênio Vieira Melo e Tiago Bunning Mendes, “a efetivação do direito de defesa na fase de investigação é um dos passos necessários para uma investiga- ção mais democrática”.5
O conhecimento sobre dois casos, um da Delegacia da Mulher de Curitiba e outro do Supremo Tribunal Federal, ocorridos ainda nesse fatídi- co ano de 2020, servem para bem ilustrar que ilegalidades jurídicas são co- metidas em qualquer lugar, independentemente da posição de seus autores. Cotidianamente, por esse país de proporções continentais, infelizmente, não é surpresa para a maioria dos advogados e serve bem para ilustrar que estamos retrocedendo no campo da violação aos direitos da defesa. O exem- plo que vem de cima, pode ser para o bem ou para o mal. Se a mais alta Corte de Justiça do Brasil demora semanas para dar acesso aos autos, e quan- do o faz, seleciona as peças, não ofertando exatamente aquilo que seria o essencial e que foi a base para decisão de busca e apreensão e outras medidas, o que se esperar de outras autoridades, espalhadas pelos rincões do Brasil?
Os exemplos mostram as batalhas diárias que são colocadas a nós, advogados, em situações que a princípio deveriam ser simples e não neces- sitariam energia alguma: ter ciência da acusação e das provas coligidas.
Chegamos a um ponto que, como disse Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay:
“Para nós, advogados, exercer a advocacia passou a ser também fazer o enfrentamento político. Não a política partidária, mas a defesa da Constituição. A advocacia vive e sobrevive dentro do Estado democrático de Direito e dele depende, pois há de exercer seu papel indispensável à administração da Justiça sempre com fiel observância à lei e à Constituição. E não se trata de mera op- ção profissional! É um dever, que impõe ao advogado grande comprometimento com toda e qualquer luta contra arbitrarieda- des e violências às liberdades, aos Poderes da República, ao devi- do processo legal, ao direito de defesa.”6
A advocacia, notadamente a advocacia criminal, é uma atividade de resistência, contra os abusos dos Estado e seus agentes, em quaisquer ní- veis. Aquele que se presta ingressar nas trincheiras da defesa da liberdade, do respeito ao devido processo legal, contra a tirania e o autoritarismo, jamais pode se esquecer de Sobral Pinto, o advogado dos advogados, que imortalizou a frase de que “A advocacia não é profissão de covardes”.
De nada adianta termos leis e mais leis assegurando direitos à defe- sa, como a recente Lei n. 13.869, de 5 de setembro de 2019. Magistrados e membros do Ministério Público devem compreender que a advocacia, notadamente a defensiva, necessita ser respeitada, não podendo, ainda que em um pensamento inconfesso, ser entendida como um estorvo ao processo ou à investigação. Marta Saad, com muito discernimento e olhar
crítico, já anotou e notou que “a Constituição vem sendo reiteradamente interpretada de forma a restringir as garantias constitucionais lá escancara- das, reduzindo-se a nada o direito de defesa (art. 5º, LV) e o direito à assis- tência de advogado (art. 5º, LXXIV, arts. 133 e 134), já na persecução prepa- ratória ou prévia”7. Convém lembrar que a atual Constituição, nas palavras do Ministro Luís Roberto Barroso, “é o símbolo maior de uma história de sucesso: a transição de um Estado autoritário, intolerante e muitas vezes violento para um Estado democrático de direito”8.
Bem observou o advogado Leônidas Ribeiro Scholz, em artigo que merece atenta leitura, que “O grande desafio da advocacia criminal no Brasil reside em lutar incansavelmente pela observância do devido pro- cesso legal, que não é favor, não é indulgência do Estado; é o estrito cum- primento da legislação, que ele próprio, Estado, editou.”9
Parafraseando o Ministro Marco Aurélio, que asseverou que “são tempos estranhos, muito estranhos”, ao se referir à conclamação da socie- dade para os protestos do ano passado, realmente estamos passando por tempos estranhos. O Brasil, que avançou nas décadas passadas, no rumo da democracia plena, vê, vez ou outra, pinceladas de autoritarismo, e de onde jamais poderia se esperar. Interpreta-se a Constituição Federal de forma a renegar o óbvio; tudo é relativizado e entendimentos são modificados da noite para o dia, desnudando um país sem segurança jurídica.
Mais do que nunca a advocacia se faz necessária. Advocacia respei- tosa, mas não subserviente; ética, mas não acovardada. Jamais esqueça- mos de Ruy Barbosa: “O advogado pouco vale nos tempos calmos; o seu grande papel é quando precisa arrostar o poder dos déspotas, apresenta- do perante os tribunais o caráter supremo dos povos livres.”
Referências
1 SCHREIBER, Simone. Notas sobre o princípio da publicidade processual no pro- cesso penal. Revista SJRJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 36, 2013, p. 137.
2 TORON, Alberto Zacharias. SZAFIR, Alexandra Lebelson. Prerrogativas profissio- nais do advogado, p. 86, item n. 1, 2006, OAB Editora.
3 RANGEL, Paulo. Direito processual penal, p. 411/412, item n. 7.5.1, 8. ed., 2004, Lumen Juris.
4 Fonte cit. Os destaques são do original.
5 MENDES, Carlos Hélder Carvalho Furtado. MELO, Marcos Eugênio Vieira. MENDES, Tiago Bunning. A Lei 13.245/2016 e a efetivação das prerrogativas do advo- gado na investigação criminal: garantia constitucional ao direito de defesa na fase preliminar. Artigo publicado na RBCCrim n. 159 (setembro 2019), p. 286.
6 CASTRO. Carlos de Almeida Castro. É a Constituição, estúpido! diz Kakay. Sítio “Poder 360”, publicado em 7/8/20. https://www.poder360.com.br/opiniao/justica/ e-a-constituicao-estupido-esbraveja-kakay/
7 SAAD, Marta. O direito de defesa no inquérito policial. São Paulo: Revista dos Tribunais (Coleção Estudos de Processo Penal Prof. Joaquim Canuto Mendes de Almeida, v. 9), p. 200.
8 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção de um novo modelo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 492.
9 SCHOLZ, Leônidas Ribeiro. “Desafio da advocacia criminal no Brasil” artigo publi- cado no Boletim IBCCRIM n. 207, fevereiro de 2010, p. 13.
BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção de um novo modelo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
CASTRO. Carlos de Almeida Castro. É a Constituição, estúpido! diz Kakay. Sí- tio “Poder 360”, publicado em 7/8/20. https://www.poder360.com.br/opi- niao/justica/e-a-constituicao-estupido-esbraveja-kakay/
MENDES, Carlos Hélder Carvalho Furtado. MELO, Marcos Eugênio Vieira. MENDES, Tiago Bunning. A Lei 13.245/2016 e a efetivação das prerrogativas do advogado na investigação criminal: garantia constitucional ao direito de defesa na fase preliminar. Artigo publicado na RBCCrim n. 159 (setembro 2019).
RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal, p. 411/412, item n. 7.5.1, 8. ed., 2004, Lumen Juris.
SAAD, Marta. O direito de defesa no inquérito policial. São Paulo: Revista dos Tribunais (Coleção Estudos de Processo Penal Prof. Joaquim Canuto Men- des de Almeida, v. 9).
SCHOLZ, Leônidas Ribeiro. “Desafio da advocacia criminal no Brasil” artigo publicado no Boletim IBCCRIM n. 207, fevereiro de 2010, p. 13. TORON, Al- berto Zacharias.
SZAFIR, Alexandra Lebelson. Prerrogativas profissionais do advogado, p. 86, item n. 1, 2006, OAB Editora.
SCHREIBER, Simone. Notas sobre o princípio da publicidade processual no processo penal. Revista SJRJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 36, 2013.
DEVEMOS LUTAR PELA SOLIDEZ EPISTEMOLÓGICA NO PROCESSO PENAL
Por: Douglas Rodrigues da Silva
A faculdade de direito, de uma forma geral, não costuma preparar os estudantes e futuros profissionais para lidarem com fatos do processo ou com problemas estruturais na comprovação da verdade. Na realidade, uma análise geral dos currículos de cursos de graduação e especialização demonstra que a preocupação da academia jurídica, em grande medida, reside na busca de critérios interpretativos na aplicação de uma norma jurídica em detrimento de um estudo mais aprofundado ou sistêmico dos instrumentos de construção da verdade jurídica.
Falta-nos uma solidez epistemológica em relação ao fato jurídico.
Como se sabe, o ponto principal do processo – por mais estranho que possa parecer – não está necessariamente em se saber qual a melhor interpretação que se deva dar à norma jurídica. É óbvio, claro, que o direito consiste na aplicação de normas e, por isso mesmo, não se pode olvidar da extrema importância do estudo de seus critérios de interpretação, da sua dogmática e de outras vertentes teóricas. Entretanto, como é sabido, o direito apenas tem espaço quando há, no contexto tratado, um fato comprovado que detenha relevância jurídica, pois sem isso, o direito não tem o seu objeto de atuação.
Não há direito sem fatos. E por isso mesmo o fato, antes mesmo da norma jurídica, deveria merecer maior atenção de todos aqueles personagens do cotidiano forense. Com mais razão aqueles que atuam na seara penal e processual penal.
E aqui, especificamente, adquire crucial importância a solidez da epistemologia judiciária.
Só cabe falar em aplicação adequada da norma ao fato se, diante dos parâmetros aceitáveis de construção do conhecimento, puder se confirmar que o fato realmente existiu. É preciso, pois, que antes de se entender por tal ou qual solução jurídica, entenda-se se tal ou qual fato pode ser visto como algo concretizado, como algo demonstrado, e, por conseguinte, digno de apreciação jurídica. Sem isso, por evidente, de nada adianta esvaziar toneis de tinta para escrever linhas sobre a hermenêutica ou a dogmática sem ter como se apontar um fato como demonstrado.
Segundo Taruffo (2014, p. 17), “o direito define e seleciona os fatos”, portanto, o fato que interessa ao direito deve ter, antes de tudo, uma dimensão jurídica, capaz de torná-lo relevante. Mas, apesar disso, o fato também demanda uma dimensão empírica, já que adquire relevância como “[...] base de um caso jurídico somente quando pode ser dito que existem no mundo empírico”. Um homicídio, por exemplo, é um fato com dimensão jurídica, posto que criminalizado, mas, concretamente, só adquire espaço no âmbito processual quando realmente se está diante da comprovação de que um ser humano ceifou a vida de outro. Sem isso, tudo não passa de mera especulação teórica, e por esse motivo se clama tanto pela compreensão mais pungente do que seja a epistemologia judiciária.
O objetivo do processo penal, se pudéssemos resumi-lo, é a legitimação do poder punitivo do Estado, o qual somente se dá quando, diante do julgamento concreto, se consegue verificar que o exercício do poder se deu amparado em critérios racionais capazes de dar um grau mínimo de confiabilidade às conclusões exaradas na decisão (BADARÓ, 2019, p. 18). O papel do processo penal, pois, está na reconstrução histórica de um fato juridicamente relevante, a partir de critérios racionais e confiáveis, que permitam ao julgador, em primeiro plano, concluir pela ocorrência desse fato para, na sequência, poder optar pela melhor norma ou interpretação jurídica cabível. A intenção do julgador, ao fim e ao cabo, deve residir na busca da verdade.
Sem adentrar no mérito do que se possa compreender pela verdade – e muito menos dividi-la em graus, como parte da doutrina costuma fazer –, partimos desde logo da ideia de que a verdade é uma só, assim como descreve Schünemann (2013, p. 245). Porém, e aqui é um ponto importante, sabe-se que a verdade (no caso, conhecimento sobre ela), ao menos no que atine à reconstrução histórica de fatos, é aproximativa. Ou seja, a partir de métodos racionais de busca dessa verdade, pautados em critérios epistemológicos, é que poderemos apontar com o mínimo de segurança e probabilidade que determinada situação ocorreu no mundo dos fatos e, só a partir daí, conseguiremos buscar a melhor solução.
E o papel da epistemologia judiciária merece proeminência justamente nesse estado de coisas. Se consideramos que o processo só tem razão de ser se pautado na verdade dos fatos ali apreciados, é certo que apenas caberá confirmar a legitimidade da decisão adotada se, antes de tudo, se puder falar que o fato é verdadeiro, seguiu parâmetros racionais de confirmação e refutação e, ao final de tudo, superou todos os “testes”.
No processo penal, em específico, a hipótese a ser provada é uma só: aquela que consta do enunciado fático da denúncia. Toda a atividade probatória se fixará no intento de confirmar a hipótese (acusação) ou de refutá-la ou apresentar uma hipótese alternativa mais favorável (defesa). Mas essa atividade, quando necessita ser valorada pelo julgador, não pode ficar à mercê de uma leitura subjetiva ou por mera coerência (por ser mais “crível”). O juiz precisa indicar, racionalmente, de que maneira entendeu ocorrido o fato do processo ou, se muito, porque acredita que ele não ocorreu. E isso somente se faz possível pela epistemologia. Não há outro caminho.
É pelo estudo da epistemologia, por exemplo, que se pode definir quais são os melhores parâmetros que possibilitam crer que um fato está comprovado ou não. É pela epistemologia também que se podem fixar, de forma racional, o standard de prova mais adequado e, principalmente, verificar se ele foi ou não alcançado no caso concreto, ainda mais no processo penal, em que se fala tanto em “provas acima da dúvida razoável” (ou seja, não é qualquer comprovação da verdade que serve).
No ponto, alerta Badaró (2019, p. 84):
Por ser algo frequente ao longo de toda a vida e realizado de modo natural, quase automático, há uma crença comum de que valorar provas no processo é algo que se aprende quase que intuitivamente, não sendo necessário para tanto que adquirir conhecimentos específicos ou dominar técnicas epistemológicas mais sofisticadas. Essa equivocada concepção de que “os julgamentos sobre fatos constituem simples constatações da realidade”, muitas vezes, leva a uma acrítica recepção e aceitação dos juízos de fatos realizados pelos magistrados no processo. Se os juízes têm feito um mal uso do seu ‘livre convencimento’, o remédio não será eliminar esse princípio de valoração livre, mas estabelecer e aplicar mecanismos racionais e procedimentais que possam assegurar o bom uso da discricionariedade nas escolhas feitas na valoração da prova.
A epistemologia judiciária, portanto, não merecia ser tão menosprezada como se costuma fazer entre nós. É somente por meio dela que se podem retirar critérios seguros de construção do conhecimento juridicamente relevante a fim de apontar a veracidade ou não de um fato. Mas não só. É dela que surgem mecanismos de controle decisórios tão importantes quanto os critérios hermenêuticos tão debatidos atualmente. Sem antes definir quando o juiz pode dizer que algo realmente ocorreu num passado não tão distante, não adianta se debruçar em tantas regras e princípios de como interpretar a lei.
Por isso, como dito no título deste texto, devemos lutar por uma solidez epistemológica no processo penal.
REFERÊNCIAS
BADARÓ, Gustavo Henrique. Epistemologia judiciária e prova penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.
SCHÜNEMANN, Bernd. Um olhar crítico ao modelo processual penal norte-americano. In. Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito. São Paulo: Marcial Pons, 2013. p. 240-261.
TARUFFO, Michele. A prova. São Paulo: Marcial Pons, 2014.
Douglas Rodrigues da Silva
Mestre em Direito (UNICURITIBA)
Especialista em Direito Penal e Processo Penal (UNICURITIBA)
Bacharel em Direito (UNICURITIBA)
Professor de Direito Penal Econômico e Legislação Penal Especial nas Faculdades da Indústria de São José dos Pinhais (FIEP-IEL)
Advogado Criminal em Curitiba, Paraná.
Autorregulação financeira e gerenciamento do risco: reflexos a partir da crise de 2008.
Rafael Guedes de Castro*
1. Introdução
No mês de agosto de 2007, eclodiu, a partir dos Estados Unidos da América, uma das maiores crises econômicas da história do capitalismo. A concessão de empréstimos hipotecários de alto risco no setor imobiliário, denominado de “sub-prime”, expôs, de forma jamais vista, a fragilidade e a insegurança do sistema financeiro global. Os riscos oriundos das operações realizadas no mercado financeiro foram amplamente questionados, visto que a crise norte-americana afetou a economia em escala mundial.
Certo é que razões políticas e ideológicas determinaram o estabelecimento da economia de mercado, suas diretrizes e formas operacionais que marcaram as relações do Estado e da economia no período. O capitalismo neoliberal, baseado nos pressupostos desregularizadores que viam o afastamento do Estado das relações econômicas como fator benéfico e incentivador de uma política de livre mercado, passa a ser questionado justamente pelo reconhecimento de sua insuficiência em identificar e prevenir os riscos oriundos da atividade financeira.
O presente artigo tem por objetivo analisar o paradigma da desregulamentação e o livre mercado em seu contexto histórico e a crise econômica acima referida como vetores determinantes para a introdução do papel da autorregulação empresarial como instrumento capaz de prevenir os riscos oriundos da atividade financeira. Importante demarcar que o conceito de autorregulação aqui abordado será o de uma combinação entre a presença de uma regulação pública, com seus mecanismos de supervisão igualmente públicos, integrada à necessidade de aproveitar as vantagens que os atores privados possuem no campo da informação, conhecimento e tecnologia para que a eles seja atribuída a responsabilidade de se autorregular e minimizar os riscos sistêmicos que são gerados com sua atividade. Por fim, analisar-se-á a coexistência e a complementaridade entre autorregulação e a adoção de mecanismos internos de políticas de prevenção e gerenciamento do risco na atividade empresarial.
2. O paradigma da desregulamentação e o livre mercado
O período posterior à Segunda Guerra mundial impactou de maneira profunda as relações entre o Estado e Economia. Com as lições aprendidas na 1ª Guerra Mundial e na crise de 1929, os Estados Unidos da América sabiam que o financiamento e o incentivo à reestruturação européia eram fundamentais para evitar a crise de superprodução.
Foi assim que, em 1944, quarenta e quatro países se reuniram e aprovaram o acordo de Bretton Woods, que introduziu modificações no plano econômico mundial tais como (i) o dólar como moeda internacional e conversível em ouro, (ii) a livre conversibilidade das moedas nacionais entre si, a partir de uma paridade fixada em ouro ou em dólar, (iii) e estabeleceu a criação do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial. (PADRÓS, 2003, p. 236).
Foi John Maynard Keynes quem desenvolveu as bases teóricas do acordo, consolidando assim a proposta do Estado de Bem-Estar Social, caracterizado pela intervenção do Estado na economia. O Estado passou a assumir funções econômicas e sociais jamais vistas. No plano econômico visou regular o funcionamento global da economia impulsionando e sustentando a sua expansão; estabeleceu a criação de indústrias vinculadas ao desenvolvimento do Estado de Bem-Estar, de bens de consumos duráveis, bem como promoveu o desenvolvimento de novas regiões industriais tendo o Estado assumindo obras de infra-estrutura. No aspecto social a idéia era a de que o Estado assegurasse o bem-estar social com a adoção de medidas contra riscos de trabalhos, doenças, desemprego, aposentadoria e seguros sociais. (PADRÓS, 2003, p. 255).
Este Estado intervencionista, em suma, atribuiu à ordem econômica uma finalidade de justiça social, visando assegurar a todos condições dignas de vida e de bem-estar, em oposição modelo de liberal que admitia os princípios da livre iniciativa, liberdade de concorrência e não intervenção estatal no âmbito econômico. Para Adam Smith, em a “Riqueza das Nações”, a regulação econômica dar-se-ia pela “mão invisível” e ao Estado seria reservada apenas a função de manutenção da ordem e da segurança pública
No início dos 70, o sistema de acumulação que marcou as décadas precedentes começa a demonstrar a sua insuficiência e anuncia os questionamentos ao Estado de Bem- Estar Social, eis que este já não suportava os altos encargos oriundos do providencialismo que marcou o período, seja no aspecto social ou no econômico com o alto custo do setor público da economia.
Segundo Peltzman (2004, p. 85) o movimento de desregulação foi uma reação às condições políticas e econômicas do final da década de 70, período caracterizado pelo incremento da inflação e pela já reconhecida ineficácia da intervenção estatal.
Neste sentido, no final da década de 80 se estabeleceu a consolidação de tendências econômicas marcadamente liberais que levaram à conclusão de que o Estado de Bem-Estar Social havia se esgotado.
O insucesso dos modelos intervencionistas mostrou a necessidade de o Estado pensar em novas formas de geração de riquezas. Abandonou o encargo de promoção do bem-estar atrelado à função de distribuição de justiça social com o retorno às idéias liberais e a concepção da presença do Estado na economia como um ente garantidor e regulador da atividade econômica baseado na livre iniciativa, na liberdade de mercado, na desestatização econômica e redução sistemática dos encargos sociais para garantir equilíbrio nas contas públicas. (FIGUEIREDO, 2012, p. 44)
Assim, foi editado um conjunto de medidas a partir de um encontro entre economistas, instituições financeiras e administradores latino-americanos, ocorrido no ano de 1989, na cidade de Washington, denominado Consenso de Washington, no qual originou quatro grandes diretrizes para o desenvolvimento econômico, quais sejam (i) liberalizar, (ii) desregular, (iii) privatizar, (iv) globalizar. (NUSDEO, 2013, p. 226)
Referido consenso demarcou a implantação do chamado neoliberalismo, que avançou e perdurou até a crise do sistema financeiro americano que se espalhou pelo mundo no ano de 2008. (NUSDEO, 2013, p.227)
3. A crise econômica de 2008
De fato, a crise financeira de 2008 inaugurou uma nova era. Os mercados financeiros apresentaram riscos potenciais muito graves para todas as economias nacionais, assim como para o sistema econômico mundial, como visto nos EUA, bem como colocou em dúvida os pressupostos desregulamentadores da economia de livre mercado.
Apesar de não existir uma explicação exata para a crise econômica, ela estaria nos objetivos do neoliberalismo, nos seus instrumentos utilizados para buscá-lo e nas suas próprias contradições. A hegemonia dos Estados Unidos, a busca por altas rendas, combinada com as realizações associadas à financeirização e à globalização são fatores identificáveis do fenômeno. (DUMENIL; LÉVY, 2014, p. 42).
Como dito, o referido autor destaca que um aspecto crucial que marca as décadas neoliberais após os anos 70 é a financeirização, que significa o incremento de mecanismos financeiros que alcançaram níveis sem precedentes de sofisticação e expansão das instituições financeiras. Após o ano 2000, esses mecanismos de expansão tiveram crescimento ainda maior com a introdução de procedimentos inovadores que afetaram sobremaneira o livre comércio de capitais no mundo todo, a globalização dos procedimentos monetários e financeiros, significando a construção de uma estrutura financeira frágil ante a dificuldade de controlar taxas de juros, de câmbio e empréstimos em um mundo de livre circulação de capital. (DUMENIL; LÉVY, 2014, p. 42).
O que a princípio seria uma crise de liquidez com o declínio do mercado imobiliário, era apenas um dos problemas dentro de um conjunto muito mais amplo dos fatores determinantes que deflagaram a crise.
Segundo Dumenil e Levy (2014, p. 48):
O colapso de muitos instrumentos financeiros desestabilizou a estrutura
financeira geral. No início de 2008, evidenciou-se o aumento de prejuízos das instituições financeiras, com o início de uma epidemia de falência de bancos. Em março, o Bear Stearns faliu e se revelaram as primeiras manifestações de fraqueza dos gigantes Fannie Mae e Freddie Mac. A partir de então, a situação de deteriorização do setor financeiro se degenerou numa crise de oferta de crédito para famílias e corporações não financeiras, conhecidas como o “arrocho de crédito” (...) Faliram o Lehman Borthers, o Washington Mutual Bank e outros gigantes financeiros.
A identificação do estabelecimento de uma estrutura financeira frágil, a partir de pressupostos desregularizadores que marcaram as décadas precedentes associada à crise que desestruturou o sistema financeiro em geral, gerou, no campo que interessa à presente pesquisa, a necessidade de debate público acerca da necessidade de reforma dos sistemas de regulação e fiscalização dos mecanismos financeiros como forma de proteção e prevenção do sistema financeiro global, surgindo assim, a questão da autorregulação. (SANCHEZ; FERNANDES, 2013, p.78)
Da mesma forma, Calado (2009, p. 22) observa que nessa nova perspectiva e dinâmica “constitui-se de fundamental importância a presença do (auto) regulador atuante para garantir um ambiente institucional mais seguro”, garantindo assim estabilidade econômica em um momento marcado por significativas alterações no contexto global.
4. Autorregulação e recuperação do sistema financeiro internacional
A redução da atuação do Estado na ordem econômica implicou em um novo modelo de intervenção, chamada de indireta, por via da regulação. Como observado no primeiro ponto do presente trabalho, o reconhecimento da insuficiência do modelo interventivo direto na economia fez com que o Estado assumisse a função interventiva indireta ao monitorar e normatizar a exploração da atividade econômica. Neste prisma, Leonardo Figueiredo (2012,
- 109) afirma que:
A intervenção indireta, por via da regulação da atividade econômica surgiu como pressão do Estado sobre a economia para devolvê-la à normalidade, isto é, para garantir um regime de livre-concorrência, evitando-se práticas abusivas pelos agentes mais fortes em face dos mais fracos, bem como em detrimento do mercado e, por conseqüência, de toda sociedade.
Ainda que tal fenômeno possa ser identificado em momentos distintos nos Estados Unidos da América e na Europa, é certo que no Brasil esse processo é oriundo do início da década de 90, com a legitimação das premissas neoliberais atinentes à desestatização de diversas atividades antes exploradas pelo Estado, devolvendo-as à iniciativa privada.
Ao abordar a perspectiva européia sobre o assunto, Moncada (2004, p. 367) observa que o processo de privatização se constituiu em uma realidade em alguns setores da economia com um claro propósito de liberalização. Contudo, não significou o desaparecimento do Estado, mas a substituição de um modelo direto de intervenção, alicerçada no tradicional serviço público de propriedade e gestão estatal, por novas formas de regulação, ou seja, pela intervenção indireta.
Com a crise financeira ocorrida no ano de 2008, que mostrou ao mundo a vulnerabilidade de uma economia baseada no livre mercado, de característica marcadamente neoliberal, colocou em pauta novamente o tema sobre a regulação e a posição do modelo de intervenção do Estado. O paradigma ideológico que via como benéfica a desregulamentação para o exercício do livre mercado passa a ser desacreditado e questionado, tendo em vista a complexidade das relações econômicas no mercado financeiro e a dificuldade de fiscalização das instituições financeiras nas relações globais.
É este o enfoque que se deu na discussão sobre a regulação após a crise econômica. Abordou-se, com ênfase, a função e o alcance dos organismos reguladores de supervisão normativa que deveriam caracterizar o mercado financeiro, o fortalecimento de certas normas e regulamentos existentes, a melhora da qualidade de aplicação, cumprimento, a necessidade de fortalecer a cooperação global no âmbito da regulação e supervisão, imprescindível para supervisionar o mercado transnacional, e a definição das atividades que podem conduzir potencialmente a uma situação de risco sistêmico.
A par das importantes discussões travadas, parece elementar ter como premissa a conclusão de Oksandro Gonçalvez e Antônio Porto (2014, p. 18), no artigo intitulado “O vetor axiológico do movimento de saneamento do Sistema Financeiro Nacional”, que chama a atenção para o fato de que não se pode resolver problemas atuais atrelados a conceitos passados sob o enfoque de uma visão maniqueísta de luta entre o bem o mal (intervenção versus liberalismo).
Pelo contrário, uma dinâmica que perpetue a situação em que os reguladores e atores privados se coloquem em lados opostos, sempre em um clima de constante tensão e enfrentamento, não se faz nada mais do que elevar o nível de complexidade dos mercados financeiros globais e agravar o risco potencial sistêmico.
É neste sentido que Gonzales e Berini (2013, p. 75) sustentam que o debate público sobre o tema regulação é contraditória e descontextualizada visto que, em geral, trazem a idéia de que a solução para prevenir riscos futuros de uma crise financeira passa pela necessidade de incremento de maior regulação do Estado. Entretanto, nenhuma das propostas aborda explicitamente o papel da autorregulação da indústria como parte da transformação da regulamentação a longo prazo bem como a sua importância.
Neste aspecto, qualquer reforma significativa de regulamentação a longo prazo no setor financeiro, deve considerar seriamente o papel potencial que a autorregulação tem como mecanismo fundamental para controlar e minimizar o risco. Os tópicos subseqüentes analisarão de que forma se dá a proposta da autorregulação, sua ligação com o tema regulação e suas vantagens.
- Conceito
A visão convencional da atividade reguladora do Estado enfatiza dois pontos de vista, quais sejam: liberdade e controle ou, em uma abordagem de sistemas políticos contrapostos, liberalismo e estatismo. Ocorre que entre eles existe uma pluralidade de sistemas intermediários que podem se revelar melhores para conjugar os interesses privados e coletivos (VILA, 2013, p. 44)
Segundo Calabro (2010, p. 53), o conceito de autorregulação, apesar de equívoco, seu significado em todas as áreas do direito parece convergir para a capacidade de um organismo de entrar em equilíbrio interno e em equilíbrio com o ambiente externo, sendo conceituada como a capacidade de um organismo de perceber estímulos internos e externos e de estabelecer suas próprias regras de estruturação e funcionamento para responder a esses estímulos de forma que melhor garanta seu equilíbrio.
Moreira (1997, p. 60) identifica que o próprio conceito de autorregulação traz duas origens distintas, eis que pode surgir de uma iniciativa das organizações profissionais, bem como resultar de uma iniciativa e criação estadual.
Na primeira hipótese, a autorregulação pode ser, consoante os casos, ignorada, consentida, reconhecida, incentivada ou mesmo oficializada e cooptada pelo Estado. Na segunda hipótese a autorregulação é promovida pelo Estado como forma de desregulação estadual ou de prevenção de regulação estadual. Na primeira hipótese, a autorregulação espontânea traduz-se em geral no fenômeno de ampliação da regulação, criando-a onde ela não existia; na segunda modalidade, a autorregulação traduz em geral um processo de desregulação estadual ou uma alternativa a uma regulação pública que sem autorregulação se tornaria necessária. (MOREIRA, 1997, p.60)
Hodiernamente, o crescente influxo de informações que envolve os mais diversos ramos das atividades econômicas geradoras de riqueza não acompanham o processo legislativo regulador que, muitas vezes moroso e carente de tecnicidade, cria regras obsoletas que não acompanham a evolução do mercado.
Assim, a autorregulação é uma forma de regulação que não pressupõe a ausência desta, se constituindo, na essência, em uma espécie do gênero regulação, deve ser coletiva e não estatal, mas pode ter a origem de ser promovida pelo Estado como forma de prevenção da regulação. (MOREIRA, 1997, p. 53)
O conceito de autorregulação aqui esposado não é o de um sistema unicamente privado de regulação da atividade econômica e, como conseqüência a completa ausência de qualquer intervenção reguladora do governo, mas sim de buscar uma articulação que propõe uma nova forma de regular, que combine a presença normativa oriunda do próprio setor financeiro com um sistema de controle adequado na mão do Estado.
Ainda que a autorregulação se mostre tendência, esta não substitui a tarefa normativa institucional, nem a supervisão, mediante entidades públicas de controle, da imposição direta da responsabilidade de regular e minimizar o risco sistêmico que elas mesmas geram com sua atividade. O novo modelo de regulação, segundo Omarova (2013, p. 690), é, portanto, aumentar a capacidade dos participantes no mercado privado em adotar e fazer cumprir as regras que regem suas atividades e negócios e, ao mesmo tempo, combinar essa tendência com uma responsabilidade maior e cada vez mais explícita das empresas pelos efeitos econômicos e sociais de suas atividades de risco.
Calado (2009, p.59) observa que uma abordagem sobre o tema dispõe que a regulação deve oferecer aos participantes do mercado o arcabouço básico para o relacionamento entre os participantes, regulando o que pode ser chamado de macroambiente. Ocorre que é importante a concorrência entre reguladores e autorreguladores para normatizar pormenores, no que o autor denomina de microambiente, tendo em vista a capacidade de interação dos próprios participantes do mercado.
Uma abordagem bastante defendida rege que a regulação do mercado deve fornecer o arcabouço básico dentro qual se dá o relacionamento entre os diversos participantes, regulando o que pode ser denominado macroambiente. Igualmente importante é a concorrência entre reguladores e autorreguladores. Nessa perspectiva, à autorregulação cabe normatizar pormenores do processo ou microambiente, visto que, nesse palco, os próprios participantes do mercado são os mais capacitados a interagir, discutir e propor as melhores práticas.
É conjugando essa espécie mista de regulação pública e privada como forma de superar e introduzir um novo marco na discussão da regulação estatal e sua efetividade, que estamos diante do que pode ser chamado de Autorregulação regulada.
Assim destaca Sanchez e Fernandes, (2013, p.96)
Se trata da necessidade de reformar o sistema regulatório do setor financeiro e econômico, mediante o estabelecimento de um regime misto que inclua a participação ativa e equilibrada dos atores públicos e privados, com o fim de garantir o cumprimento real e efetivo do marco normativo que vigora a atividade. A investigação empírica mostra que as organizações são mais propensas a cumprir com seus compromissos de autorregulação quando elas mesmas estão sujeitas à estrita vigilância de um ente institucional estabelecido.
Essa nova visão refere-se à forma de regulação estatal do mundo empresarial caracterizada pela incorporação do ente privado no processo de regulação, mas de forma subordinada aos concretos fins e interesse público predeterminados pelo Estado. Neste sentido, existem três possíveis modelos de cumprimento desta regulação regulada, quais sejam (i) o estado delega pontualmente a faculdade de regulação mas, mantém a faculdade de supervisão e sanção (ii) o estado pode transferir o poder de regulação, supervisão e sanção, mas manter o poder revisão (iii) co-regulação – o estado trabalha junto com a empresa na elaboração de sistemas específicos de regulação. Esses três modelos seriam os que melhor corresponderiam ao interesse do estado de reorientar a atuação regulatória. (VILA, 2013, p. 54)
Com o escopo de garantir efetividade, a regulação do sistema financeiro não deve substituir a tarefa normativa estatal, nem mesmo a supervisão. Assim, a vigilância e o controle do governo, são fundamentais para assegurar que a atividade privada promova o interesse público geral.
A proposta da autorregulação é prevenir o risco de quebra e que esteja firmemente arraigada ao interesse público geral e aos objetivos políticos, pretendendo entender o mundo como um sistema complexo, dinâmico, intrincado em que as múltiplas forças governamentais e não governamentais em uma constante interconexão pactuam e renegociam os limites entre as esferas públicas e privadas da vida econômica e social. (GONZALES; BERRINI, 2013, p. 79)
Assim, quando se fala em autorregulação, não se está dizendo que esta decorre de normas oriundas do próprio mercado sem a necessidade de interferência do Estado, isto porque, o objeto do presente estudo cinge-se à análise da autorregulação como atribuição a partir de um processo de regulação pelo Estado. Ou seja, uma espécie de atribuição de deveres de auto-disciplina aos agentes econômicos na condução de sua atividade adaptada à realidade que norteia o mercado e as relações econômicas.
- Vantangens
Após discorrer sobre o contexto histórico que permeia a presente discussão e o viés que a perspectiva de um processo de autorregulação pode trazer à economia de mercado, cabe destacar algumas vantagens que esta teria em face da regulação direta
Leonardo Figueiredo (2012, p. 111) ao citar José Joaquim Gomes Canotilho, afirma que na moderna concepção do Estado frente à economia, este assume postura de regulador das atividades econômicas, podendo, inclusive, delegá-la a entidades administrativas independentes, não diretamente subordinadas ao poder político governamental, fundamentando-se na verificação de que muitas competências e atribuições estatais necessitam de conhecimentos específicos, técnicas e profissionais que se encontram fora do aparelho estatal.
Esta parece ser a constatação primordial para determinar as vantagens que um sistema de autorregulação possui, qual seja, o de que o agente econômico, em seu ramo específico, está muito mais habilitado a conhecer, solucionar e prevenir riscos oriundos de sua atividade.
Isto porque, após a crise, ficou demonstrado, ante a crescente complexidade do mercado financeiro, de suas atividades bem como de seu alcance global, a incapacidade das autoridades reguladoras para detectar, prevenir ou ao menos minimizar o risco sistêmico.
Calado (2009, p. 58) observa que “uma entidade autorreguladora, ao obter adesão dos participantes do mercado, está mais próxima das atividades que propõe regular, dispondo, portanto de maior sensibilidade e destreza para avaliar as condições e normatizá-las”. Isso facilita a compreensão da regulação, aumenta a capacidade de prevenção de riscos oriundos da atividade e também diminui a possibilidade de intervenção estatal.
Logo, a autorregulação possui vantagens sobre a regulação direta do governo, como, por exemplo, a (i) capacidade superior de acesso e avaliação econômica e a (ii) capacidade para vigiar e regular suas próprias operações. (OMOROVA 2010, p. 668)
Vital Moreira (2001, p. 92) descreve que a autorregulação possui as seguintes vantagens para o estado (i) desoneração da carga excessiva, tanto de política como administrativa e financeira, (ii) maior eficácia da regulação, derivada da aceitabilidade e observância menos litigiosa por parte dos regulados, (iii) maior flexibilidade e mais fácil adequação às mudanças de circunstâncias, (iv) distanciamento e preservação da legitimidade estatal, (v) substituição do instrumentário penal, por via de regra moroso e oneroso, pela autodisciplina profissional, (vi) melhor adequação da regulação à crescente diferenciação e complexidade das esferas reguladoras, (vii) única via disponível para a regulação de certas áreas onde a cooperação dos regulados é condição indispensável.
De outro lado, a articulação de um sistema misto de implantação de regime de autorregulação se mostra eficaz na medida em que evidências empíricas mostram que, geralmente, as organizações que desenvolvem suas atividades em um marco jurídico estritamente dissuasório demonstram cometer maior quantidade de infrações legais. Ao contrário, aquelas que se comprometem voluntariamente a autorregular-se alcançam melhores resultados observando o regramento normativo. (GOZALES; BERRINI, 2013, p. 101)
Acrescente-se a tudo isso o fato de que a autorregulação atua como forma de recuperar a confiança dos investidores, baseado na reiterada demonstração de cumprimento dos requisitos regulatórios. Calado (2009, p. 40) observa que o termo confiança define de forma muito precisa em que consiste o mercado financeiro. Como os contratos são realizados envolvendo direitos e obrigações a serem exercidos em data posterior, a confiança de que serão honrados no futuro é fator primordial para os consumidores e pequenos investidores.
Também, importante destacar que autorregulação não está adstrita a foros, podendo conferir eficácia internacionalmente, sendo assim o resultado indeclinável da necessária evolução do modo como os Estado regula o mundo empresarial
5. Políticas de Prevenção e gerenciamento do risco: Os programas de compliance e o reforço da autorregulação
Conforme observado ao longo do presente trabalho, o contexto da autorregulação utilizado se refere globalmente a um regime regulatório e normativo que abrange todo um setor sujeito a um determinado sistema de autorregulação. Gonzales e Berrini (2013, p. 83) ao fazerem referência ao trabalho de Saule Omarova, Rethinking the future of self-regulation in the financial industry, aduzem que a amplitude deste conceito é superior a qualquer sistema interno de gestão de risco de uma determinada corporação, pois individualmente esta possuiria um poder muito limitado de identificação dos riscos.
No entanto, os próprios autores sustentam que os dois sistemas podem coexistir e se complementar bem como a discussão acerca da adoção de políticas internas de prevenção e de gerenciamento do risco através de sistemas autorreferenciais de autorregulação regulada têm ganhado espaço para discussão.
Entre os conceitos mais usados para nominar esses programas estão risk management, value managemant and corporate governance, business ethics, inegrity codes, codes of conduct and corporate social responsability, ou como mais utilizado, simplesmente chamados de programas de compliance., cujo termo advém do verbo inglês to comply, que significa estar em conformidade, adequar-se ou realizar algo imposto.
Ulrich Sieber (2013, p. 66) aponta que todos esses programas de cumprimento estão, em primeiro plano, atrelados ao conceito de ética empresarial, em uma cultura empresarial cuja ética normativa se manifesta em deveres de atuar conforme regras de conduta previamente definidas, em especial regras de cumprimento da Lei, que obviamente pode estar em colisão com as mais diversas situações quotidianas da atividade empresarial. (BACIGALUPO, 2013, p.33).
Segundo Nuria Pastor (2005, p. 11), as empresas que seguem esses programas, que já são muitas, têm introduzido diretrizes éticas de comportamento seguindo as recomendações da Lei com o fim de adotar as condutas daquilo que se revela juridicamente permitido bem como de agir conforme o direito.
Exemplo de exigência de programas internos de cumprimento normativo é o Dodd- Frank Wall Street Reform and Consumer Protection Act, norma federal dos Estados Unidos, promulgada em 21 de julho de 2010, que põe em prática a regulação financeira após a crise, como resposta drástica à grave recessão econômica. A citada Lei implementou uma série de mudanças no que tange à vigilância e supervisão de instituições que operam com recursos financeiros para evitar o risco sistêmico, proteger a economia e os consumidores. No campo da autorregulação, há a atribuição de novas funções e a previsão whistleblowers, espécie de denunciantes internos que tem o dever de informar às agencias governamentais possíveis infrações normativas. Portanto, exige-se um programa de cumprimento das entidades financeiras. (GONZALES; BERINI, 2013, p.141)
No Brasil, ao discorrer sobre essas denominadas políticas de gerenciamento do risco e de conformidade com a Lei, podemos citar como exemplo o Código de autorregulação bancária editado pela FEBRABAN - Federação Brasileira dos Bancos, que foi criado no intuito de harmonizar normas e fortalecer regras de controle já existentes. De acordo com o seu conteúdo, os signatários, dentre diversos preceitos, deverão observar princípios de ética e legalidade, respeito ao consumidor, comunicação eficiente, melhoria contínua bem como respeitar regras normativas específicas da atividade bancária.
Dentre essas normas específicas, em especial, podemos citar o normativo 11/2003, disponível para consulta pública pelo sítio eletrônico www.febraban.org.br, que institui normas de combate à lavagem de dinheiro, ao financiamento ao terrorismo e estabelece diretrizes que traduzem as melhores práticas de combate a esses delitos por suas signatárias por entender que se constituem em um objetivo para um sistema financeiro saudável, ético e eficiente, em conformidade com a lei, considerado como condição essencial para o desenvolvimento econômico e social do Brasil.
Da análise do referido normativo podemos observar que o seu parágrafo 2º materializa os preceitos de uma autorregulação regulada atrelados à assunção do compromisso de estabelecimento de políticas internas de gerenciamento do risco tratados ao longo do presente trabalho, eis que estabelece que na elaboração das diretrizes considerar-se-ão (i) as leis e regulamentos do Sistema Financeiro Nacional; (ii) as normas do Sistema de Autorregulação Bancária; (iii) os usos e costumes em matéria comercial e bancária.
No ano de 2012, entrou em vigor no Brasil a Lei 12.683/2012, que alterou a Lei 9613/1998, de Lavagem de Capitais, e estabeleceu diversos deveres de controle, dentre eles de identificação de operações suspeitas e sua comunicação às autoridade competentes. O art. 5º do normativo que estabelece a adesão das instituições financeiras signatárias aos compromissos ali descritos prescreve o compromisso de autorregulação a partir da lei bem como estabelece a necessidade de desenvolvimento de políticas de controle internos como instrumento de prevenção à lavagem de capitais.†
Essas regras de controle interno são compostas por um conjunto de ações descritas no artigo 6º que devem ser adotadas, como, por exemplo, a de necessidade de conhecimento e obtenção de informações de clientes, funcionários, fornecedores, parceiros, correspondentes, avaliação de produtos e serviços, monitoramento de operações, comunicação de operações suspeitas, treinamento e estruturação institucional da área de prevenção à lavagem de dinheiro, atreladas ao compromisso descrito no artigo de número 39 de criar áreas de prevenção que terão atribuições de instituir políticas de compliance para prevenir qualquer colaboração ou contato com o delito, tendo por base as normas legais, regulamentares.
Da mesma forma, entrou em vigor no mês de fevereiro de 2014, a Lei 12846/2013, chamada de Lei Anticorrupção, que estabelece a responsabilização no âmbito civil e administrativo de forma objetiva pelos atos lesivos praticados contra a administração pública nacional ou estrangeira disposto no artigo 5º da mesma Lei, tais como a promessa de vantagem indevida a agente público, o que reforça a idéia de prevenção e adoção de programas de autorregulação e gerenciamento do risco.
Por fim, Adam Nieto (2013, p. 12) identifica que as características dessa forma de autorregulação regulada, com o reforço de programas internos de prevenção e gerenciamento do risco, se mostram eficazes, eis que é melhor incentivar e confiar na capacidade de adoção e implementação de regras internas. Essa postura contribui para o afastamento de condutas lesivas à atividade econômica bem como, em um primeira momento, diminui o risco sistêmico e a adoção de medidas repressivas pelo Estado.
6. Conclusão
As idéias expostas ao longo do presente artigo identificaram que o modelo intervencionista do pós-guerra, baseado no providencialismo e no Estado de bem-estar social, se mostrou ineficiente ante a realidade econômica a partir da década de 70. Tal realidade motivou o retorno de tendências marcadamente liberais, baseadas na liberalização, desregulamentação e privatização, características essas denominadas de neoliberais.
A crise financeira ocorrida no de 2008, nos Estados Unidos da América, demonstrou o risco sistêmico e a fragilidade dos pressupostos desregularizadores que marcaram as décadas precedentes. Tais fatos geraram a necessidade de um debate público acerca da necessidade de reforma dos sistemas de regulação e fiscalização dos mecanismos financeiros como forma de proteção e prevenção do sistema financeiro global, surgindo assim, a questão da autorregulação.
Entretanto, verificou-se que o debate público sobre o tema regulação é contraditória e desconetxtualizada visto que, em geral, trazem a idéia de que a solução para prevenir riscos futuros de uma crise financeira passa pela necessidade de incremento de maior regulação do Estado, eis que a discussão é comumente travada sob um viés maniqueísta e puramente ideológico
Rompendo esse obstáculo, qualquer reforma significativa de regulamentação a longo prazo no setor financeiro, deve considerar seriamente o papel potencial que a autorregulação tem como mecanismo fundamental para controlar e minimizar o risco. Quando se fala em autorregulação, não se está dizendo que esta decorre de normas oriundas do próprio mercado sem a necessidade de interferência do Estado, até porque a finalidade do presente estudo
cingiu-se à análise daquela como atribuição, a partir de um processo de regulação pelo Estado. Ou seja, atribuição de deveres de autodisciplina aos agentes econômicos na condução de sua atividade adaptadas à realidade que norteia o mercado e as relações econômicas.
A autorregulação é uma espécie de sistema misto e possui diversas vantagens sobre a regulação direta do governo, como, por exemplo, a (i) capacidade superior de acesso e avaliação econômica; (ii) capacidade para vigiar e regular suas próprias operações; e (iii) atuar como forma de recuperar a confiança dos investidores, baseado na reiterada demonstração de cumprimento dos requisitos regulatórios, bem como não está adstrita a foros, podendo conferir eficácia internacionalmente. Assim, a autorregulação é o resultado indeclinável da necessária evolução do modo como os Estado regula o mundo empresarial
Ao final, foi demonstrado que a discussão acerca da adoção de políticas internas de prevenção e de gerenciamento do risco na atividade empresarial, através de sistemas autorreferenciais de autorregulação regulada, denominados de compliance, tem ganhado espaço para discussão a fim de incentivar a adoção e a implementação de regras internas. Essa postura contribui para o afastamento de condutas lesivas à atividade econômica bem como, em um primeiro momento, diminui o risco sistêmico e a adoção de medidas repressivas pelo Estado
7. Referências
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CALADO, Luiz Roberto. Regulação e Autorregulação do Mercado Financeiro. São Paulo: Saint Paul, 2009.
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* Advogado, Mestrando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Estado do Paraná, Professor de Direito Processual Penal da Faculdade Metropolitana de Curitiba – PR.
BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A EXIGÊNCIA DA CONFISSÃO FORMAL E CIRCUNSTANCIADA NO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL.
Por: Gabriel Andrade de Santana[1]
O acordo de não persecução penal, sem dúvidas, representa um marco em nosso sistema de Justiça Criminal. Se, por um lado, atende às expectativas de eficiência e celeridade na resolução dos casos, é possível sustentar, noutro giro verbal, que a sua incidência torna contingencial à conformidade do resultado à realidade dos fatos enunciados.
Sem adentrar no mérito da sua importância, fato é que ao se firmar um acordo de não persecução penal, jamais haverá a comprovação segura de que a norma de conduta foi realmente violada[2], pois é plenamente possível que o acusado, mesmo quando inocente, lance mão deste direito que lhe assiste apenas para evitar o desgaste no enfrentamento de um processo penal. Decerto, é a atividade probatória desenvolvida no curso de um processo que têm o condão de reconstruir os fatos e revelar se o enunciado dos autos corresponde verdadeiramente, ainda que de forma aproximada, a realidade do mundo exterior[3].
Porém este não é o objetivo do modelo de justiça premial inaugurado em nosso ordenamento pátrio com a Lei n.º 9.099/95. Nos institutos da composição civil, transação penal e suspensão condicional do processo, o ponto de convergência é a mera concordância do réu em renunciar a sua posição de resistência, e, assim, consentir com a realização das obrigações pactuadas. Não há, em absoluto, necessidade de incursão no mérito da causa.
Conquanto a finalidade destes mecanismos negociais corresponda a uma lógica utilitarista e pragmatista, sem maiores preocupações com a sua validade epistêmica, causa espécie, no acordo de não persecução penal, a exigência da confissão formal e circunstanciada da prática da infração penal, consoante disposto no texto do art.28-A do Código de Processo Penal.
Ou seja, se não é do propósito do mecanismo de consenso alcançar ou, ao menos, buscar a verdade da controvérsia penal, qual a razão de se exigir a declaração de culpa do réu como requisito objetivo à avença?
Equivocou-se, portanto, o legislador ao estabelecer este pressuposto ao acordo de não persecução penal. O que, todavia, não impossibilita que a jurisprudência compreenda o fenômeno de forma holística, interpretando e aplicando este instituto na sua essência. Mesmo porque, o dinamismo e a complexidade da vida social, bem como as lacunas, obscuridades e antinomia das leis, são fatores que já evidenciaram a necessidade de distinção entre texto e norma – há muito superada no pós-positivismo.
Para além de todo o imbróglio que a exigência da confissão traz à prática na formalização de acordo de não persecução penal, considerando a sua natureza e fim, entende-se ser dispensável qualquer formalidade e rigorosidade na declaração de culpa, bastando a mera manifestação defensiva no sentido direcionada à pactuação da avença, desde que, óbvio, respeitado os demais requisitos legais.
REFERÊNCIAS
SCHUNEMANN, Bernd. Um olhar crítico ao modelo processual penal norte-americano. Schünemann, Bernd; Greco, Luís (coord.). Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito. São Paulo: Marcial Pons, 2013.
TARUFFO, Michele. Uma simples verdade: o juiz e a construção dos fatos. São Paulo: Marcial Pons, 2016.
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[1] Mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público-IDP (2019). Pós-Graduado em Ciências Criminais pelo Juspodivm (2014). Graduado pela Universidade Federal da Bahia - UFBA (2012). Advogado.
CPF n.º 033.254.195-93. Rua Ewerton Visco, 290, Ed. Boulevard Side Empresarial, sala 603, Caminho das Árvores, Salvador-BA. CEP 41.820-022. Tel: (71) 98112-6349. gabriel@gabrielandrade.adv.br
Orcid 0000-0003-1255-3297
http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K8707348E5
[2] SCHUNEMANN, Bernd. Um olhar crítico ao modelo processual penal norte-americano. Schünemann, Bernd; Greco, Luís (coord.). Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito. São Paulo: Marcial Pons, 2013, p.243.
[3] TARUFFO, Michele. Uma simples verdade: o juiz e a construção dos fatos. São Paulo: Marcial Pons, 201, p.101.
Direito penal e direito administrativo sancionador: Paralelos e incongruências
Por: Monique Pena Kelles[1]
A aproximação entre a sanção do Direito Administrativo Sancionador (DAS) e do Direito Penal (DP) vêm gerando debates em torno dos limites punitivos a cada área do direito. O diagnóstico do presente texto é que há um problema em se imiscuir áreas tão diversas como se fossem um só assunto, especialmente quando a direção que se observa é para o uso excessivo da função repressiva das sanções.
Iniciando o debate, partimos da ideia de que o direito é um só, portanto, também é a aplicação da sanção. Sobre isso, esclarece Nelson Hungria:
A única solução lógica está em fixar-se a premissa de que ilicitude e penas administrativas e ilicitude e penas criminas são substancialmente análogas, não passando a separação entre o poder penal administrativo e o poder penal comum de um critério meramente oportunístico ou político.
(...) A separação entre um e outro atende a critério de conveniência ou de oportunidade, afeiçoados à medida do interesse da sociedade e do Estado, variável no tempo e no espaço (p. 24 - 30, 1945)
Hungria nos ensina que, escolher um ou outro ramo do direito para aplicação de uma sanção, parte, apenas e tão somente de uma escolha de conveniência e oportunidade, e não de uma obediência estrita à esfera administrativa ou penal.
Partimos aqui, da premissa de que uma das primordiais funções do direito penal (dentre tantas outras) é a proteção de bens jurídicos relevantes para o homem em sociedade, o exemplo mais palpável disso, é a proteção vida, que é, inegavelmente, um valor em comum a todos os indivíduos.
Outro ponto que merece destaque em diferença na aplicação de sanções entre as esferas, é que, no direito administrativo, por ser uma esfera ligada diretamente às atividades do Estado, é natural e compreensível que, à medida que o Estado se agiganta, deve também o direito administrativo seguir o mesmo curso.
Sobre isso, temos, ao menos desde a década de 90, um fenômeno conhecido como “agencificação do Estado”[2], entendido como um dos efeitos do crescimento do Estado, que vem se notabilizando pelo aumento de agencias autônomas e reguladoras, que, por sua vez, competem com a autonomia do Estado.
O mesmo não vale ao direito penal. Em verdade, é o contrário que se faz presente no contexto do direito penal. Ou seja, o DP não é instrumento político, e não é dado ao Estado fazer uso desse severo campo de repressão a partir do agigantamento do Estado.
Nunca é demais mencionar que o direito penal é regido por princípios básicos com vistas ao limite do poder punitivo estatal. Trata-se dos princípios da presunção de inocência e intervenção mínima, ou, ultima ratio. Claro que os princípios são vários e todos tem sua importância no ordenamento jurídico. Ocorre que esses dois princípios se sobressaem em relação a outros quando se discute a relação do DAS e DP.
Isso porque no DAS, esses princípios, por mais que também aplicados, não tem a mesma carga valorativa que no DP. Afinal, não se ocupam de privar de liberdade nenhum indivíduo, nem poderiam, mesmo que haja previsão de limitação de direito também graves, como a perda do cargo/função na Administração Pública.
O conceito de bem jurídico, conhecido em ambas as áreas, ocupa um lugar diverso em cada uma. No âmbito do DP, o bem jurídico é central no debate da função do DP numa sociedade. Nos arriscamos a dizer que sua importância se faz mais premente no DP do que no DAS, afinal, é no primeiro que inúmeros teóricos se debruçaram a delimitar o que é um bem jurídico e como protegê-lo adequadamente através do uso do direito penal. Ao passo que, no DAS, em linhas gerais, o bem jurídico é tido como um valor relevante ao interesse público, merecedor de tutela pela Administração Pública.
Entendemos que uma boa conceituação do bem jurídico é de especial importância para o presente debate. É através de um bem jurídico bem delimitado e de incontestável relevância para o homem, que o legislador, através do direito penal, e orientado pelos princípios que o rege, bem como pela Constituição, elabora normas, os tipos penais, que demarcam ações e omissões que, quando praticadas, geram ao agente uma sanção.
Por isso, nos filiamos a conceito de bem jurídico pessoal, elaborada e defendida pelo jurista alemão Winfried Hassemer, o qual estabelece que o bem jurídico no âmbito penal só é válido se for visivelmente direcionado à proteção do homem individualmente concebido, ou, mesmo que coletivamente, ainda assim, deve se afunilar para o homem em sua dignidade plena.
O mesmo grau de conceituação já não se verifica no ramo do DAS. Toda, ou quase toda direção das funções do direito administrativo estão envoltas ao interesse público, algo bem diverso da lógica da aplicação do direito penal, na medida em que, no DP, as garantias fundamentais são evidenciadas em todo ordenamento penal, inexistindo um “in dubio pro societatis”, ao contrário do que afirmam vozes esparsas e pouco informadas usando essa expressão no DP.
É importante frisar que a solução de conflitos penais por meio de acordos não é a solução primeva no processo penal, vez que escapa da lógica de garantias individuais. Caso diverso é o que ocorre na esfera administrativa, a qual tem como uma das funções, o controle da administração pública, mas não tem na sanção seu principal instrumento de controle. Por mais que o termo “sancionador” sugestione o uso de penas e medidas repressivas, mais do que o direito penal, o direito administrativo sancionador tem na resolução pacífica de conflitos um grande aliado para o aprimoramento da máquina pública.
Outra marca distintiva do âmbito penal é justamente a natureza dos acordos firmados em cada esfera. Ao praticar uma infração administrativa, o administrado, mesmo que conte com as mesmas garantias individuais previstas para o direito penal, está-se falando em uma condição de maior igualdade entre as partes acordantes. Isso se dá pela função que desempenha o administrado, afinal, o indivíduo é útil à máquina pública, e sua punição desagua também na eficácia da administração.
Aliás, o DAS não tem como epicentro a aplicação de sanção, afinal, a punição é cara e gera pouco ou nenhum incentivo ao administrado[3], exigindo assim, muito mais dispêndio de energia da administração pública do que a correção das possíveis falhas do sistema com programas que investem na prevenção de infrações pelos funcionários da administração.
Vigora em nosso ordenamento a regra da “independência entre as instâncias”, a qual determina que cada esfera do Direito é independente em sua atuação, incluído no que concerne a elaboração de ilícitos e aplicação de sanção.
Disso decorrem inúmeras consequências, da qual, a mais importante para o presente debate é a frequente incorrência no chamado bis in idem, ou seja, a dupla (ou múltipla) punição ao mesmo sujeito pelo mesmo fato.
Trata-se, portanto, não de um efeito secundário ou sem importância, e sim, de um efeito que gera rusgas no próprio Estado Democrático de Direito, vez que a possibilidade de punição, ou mesmo persecução sobre um ilícito em diversas esferas jurídicas vai na contramão da limitação ao poder punitivo.
Nas palavras de LOBO DA COSTA, “causa estranheza permitir que o Estado sancione um mesmo fato incontáveis vezes” [4]. Concordamos com a estranheza da autora bem como com sua proposta de solução da problemática, a qual passa por o princípio da proporcionalidade em destaque, vez que
(... ) impõe que o Estado, por meio de seus subprincípios, indica que se deve adotar a solução mais idônea à finalidade estritamente necessária a seu atingimento e cujos meios não se revelem desproporcionais ao atingimento de seu fim. (2013, p. 214)
O que notamos é que o movimento em direção à punição, por muito tempo (e ainda hoje), fez parte do DP, mas, agora, assume também protagonismo em outras esferas, como no DAS. Para estudiosos do DP, sabemos que a punição por si só não é mecanismo capaz de melhorar o sistema, nem mesmo a sociedade em si.
Sabemos também, que, as ditas funções da pena, como a preventiva e a retributiva, não tem aderência na realidade. Ou seja, acreditar que a penalização é instrumento de contenção da prática de ilícito, é acreditar que quanto mais severa a pena, menos delito haverá, cenário esse, sabidamente inexistente.
É nesse sentido que defendemos que a ideia de “independência entre as instancias seja revista para um sentido mitigado daquele que é aplicado hoje em nosso ordenamento. [5]
Com isso, é dever dos estudiosos estarem atentos para as causas e consequências dessas novas investidas em ambos os ramos, a fim de prevenir possíveis danos ou rusgas ao ordenamento jurídico como um todo.
Referências
COSTA, Helena Regina Lobo da. Direito Administrativo sancionador e direito penal: a necessidade de desenvolvimento de uma política sancionadora integrada. Luiz Mauricio Souza e Laerte Marzagão Júnior (coord). In: Direito Administrativo Sancionador. São Paulo. Quartier Latin, 2014.
DI PIETRO. Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 33ª edição. Forense. Rio de Janeiro. 2020
HUNGRIA, Nelson. Ilícito administrativo e ilícito penal. 1945
MENDES, Gilmar; BUONICORE, Bruno Tadeu. A vedação do ne bis in idem na relação entre Direito Penal e Direito Administrativo Sancionador e o princípio da Independência mitigada. Boletim IBCCRIM ano 29 março 2021
OSÓRIO. Fábio Medina. Direito administrativo sancionador. 7ª ed. São Paulo. Thomas Reuters Brasil. 2020
[1] Advogada e mestranda em direito pela Pontifícia Universidade Católica
[2] Termo cunhado pela professora Maria Sylvia Di Pietro. In: DI PIETRO. Inovações do Direito Administrativo Brasileiro. Revista Opinião Juridica. p.202- 222, ano 5. 2005. O termo dá conta de que há um movimento em curso no país que envolve uma crescente onda de criação de agencias reguladoras, que acabam por se incluir nas atividades típicas do Estado, como o serviço público; polícia administrativa; fomento e intervenção.
[3] Sobre isso: VORONOFF, Alice. Direito Administrativo Sancionador. Um olhar pragmático a partir das contribuições da análise econômica do direito. Revista de Direito Adm. Rio de Janeiro. V. 278, p. 107-140. Jan- abril, 2019
[4] COSTA, Helena Regina Lobo da. Direito Administrativo sancionador e direito penal: a necessidade de desenvolvimento de uma política sancionadora integrada. Luiz Mauricio Souza e Laerte Marzagão Júnior (coord). In: Direito Administrativo Sancionador. São Paulo. Quartier Latin, 2014. P. 113 - 114
[5] Sobre isso, já se pronunciou o Min. Gilmar Mendes da Suprema Corte, inclusive com decisão proferida na Reclamação 41.557/SP. Explicação In: MENDES, Gilmar e BUONICORE, Bruno. A vedação do bis in idem na relação entre direito penal e direito administrativo sancionador e o princípio da independência entre as instancias. Boletim IBCCRIM. Março 2021 p. 4-5
Reflexões sobre o confisco-alargado (art. 91-A, CP): dificuldades práticas, incongruência legislativa e necessidade de limites e controle jurisdicional.
Por: Ronaldo dos Santos Costa e Bárbara Mostachio Ferrassioli
Desde a vigência da Lei 13.964/2019 (“Lei Anticrime”), o cidadão acusado e condenado pela prática de determinadas infrações penais teve a si atribuído outro ônus, para além de todos os encargos e estigmas inerentes ao processo criminal e à sanção penal: a possibilidade de perda (=confisco) de todo o seu patrimônio, ainda que não relacionado a qualquer prática criminosa.
Trata-se da medida hoje prevista no art. 91-A do Código Penal, que se convencionou denominar “perda alargada” ou “confisco alargado” – expressões aqui utilizadas sem distinção semântica – e que permite a decretação da perda dos bens correspondentes à diferença entre o valor do patrimônio do condenado e aquele que seja compatível com o seu rendimento lícito na hipótese de condenação por infrações às quais a lei comine pena máxima superior a 6 (seis) anos de reclusão.
Ainda, referido dispositivo legal considera “patrimônio do condenado” – suscetível, portanto, de confisco penal – todos os bens “de sua titularidade ou em relação aos quais ele tenha o domínio e o benefício direto ou indireto, na data da infração penal ou recebidos posteriormente”, bem como aqueles “transferidos a terceiros a título gratuito ou mediante contraprestação irrisória, a partir do início da atividade criminal”.
A mesma espécie de sanção patrimonial foi recentemente introduzida, também, na Lei de Drogas (art. 63-F), pela Lei n. 13.886/2019. Contudo, embora ambos os dispositivos disciplinem o confisco alargado, o tratamento conferido à matéria na legislação extravagante é, curiosamente, distinto em termos de gestão da carga probatória, como se explicará na sequência.
O que precisa ficar claro, neste ponto de partida, é que a nova legislação equipara a produtos ou proventos do crime todo o patrimônio do condenado ou por ele transferido a terceiros que seja considerado incompatível com seu rendimento lícito (=declarado/regularmente constituído), seja ele resultado de atividade criminosa, ou não, seja ele relacionado a prática de delitos de natureza econômica, ou não, seja ele parcela legítima do exercício de seu direito de propriedade, ou não.
É bem visível que a perda alargada, um dos legados do período lavajatista[1], alinha-se a uma política criminal de direito penal do autor, a qual, a pretexto de combater a denominada macrocriminalidade[2], intensifica a patrimonialização do direito penal[3], que deixa de ser instrumento de tutela subsidiária de bens jurídicos de especial relevância para o convívio social, passando a servir de fonte arrecadatória estatal.
Muito mais com a finalidade de condecorar a bandeira de que o crime não compensa do que com o propósito de recrudescer a sanção penal do fato criminoso em si, ganhou vigência, assim, inédita (e aparentemente inconstitucional[4]) espécie de pena de caráter patrimonial: o confisco de (quaisquer) bens do condenado pela prática de (qualquer) infração penal a que a lei comine pena superior a seis anos.
Há, com efeito, notória burla de etiquetas: pretende-se fazer parecer estar-se diante de (mais um) singelo “efeito da condenação” – o que se evidencia pela própria escolha do posicionamento da nova regra no Código Penal, dentro do capítulo VI e sequencialmente ao art. 91, que trata de efeitos da condenação –, quando, na realidade, introduz-se no ordenamento jurídico brasileiro, disfarçadamente, verdadeira pena de confisco de bens, em tudo incompatível com os princípios constitucionais da personalidade e da individualização da pena[5], bem como com o direito fundamental de propriedade, cuja desapropriação, por opção do constituinte originário, está necessariamente vinculada ao descumprimento da sua função social[6].
Bitencourt[7] é quem relembra que mesmo a (dura) Constituição de 1969 –outorgada nos anos de chumbo pela junta militar – proibia expressamente a pena de confisco, também não consagrada no Código Penal de 1940, que regulamentava, até então, somente a perda de instrumentos e produtos do crime, em favor da União, como efeito da condenação (art. 91).
Sintomático de um direito penal simbólico e de um processo penal cada dia mais abraçado a ideais de eficiência – distante, portanto, de sua função primordial enquanto instrumento democrático de garantia do cidadão e limitação do poder estatal[8] –, o confisco alargado é guardião da deturpada promessa (política) de “entregar à sociedade” cifras cada vez maiores de numerários apreendidos em processos criminais, criando a ilusória sensação de que, se o Estado está cooptando recursos de “criminosos”, a “justiça está sendo feita”.
Embora de vigência recente, os (nocivos) efeitos desencadeados pelo novo instituto penalizador já são percebidos na prática processual penal. Alguns deles encontram-se elencados a seguir, observada limitação que o presente estudo permite, com o intuito de provocar reflexão e debate sobre a necessidade de se estabelecer mecanismos de controle e limites à aplicação da nova norma penal.
Tornou-se corrente, sobretudo no âmbito de investigações complexas (“operações”) e, não coincidentemente, derivadas das mais invasivas e gravosas medidas investigativas, (i) o oferecimento de denúncias contendo imputações excessivas (=overcharching), notadamente para atingir o quantum mínimo de pena disposto no art. 91-A do Código Penal[9], (ii) acompanhadas de pedido cautelar de bloqueio indiscriminado e ilimitado do patrimônio do acusado para fins de garantir a perda alargada de bens, em havendo condenação.
Como resultado, o acusado permanece privado de todos os bens que, na visão unilateral do Ministério Público, não sejam compatíveis com seu patrimônio “real” – e não mais apenas daqueles que constituem instrumento, produto ou provento do crime que lhe é imputado no caso concreto, como acontecia quando se estava diante de (verdadeiro) efeito da condenação previsto no art. 91 do CP –, experimentando, ele próprio e todos os seus dependentes, os prejuízos da constrição de seu patrimônio, lícito e desrelacionado da imputação penal (!), desde o início (e durante toda a) da ação penal – que, nem é preciso dizer, não termina rapidamente no Brasil.
Note-se, contudo, que, diferentemente do que ocorre com as tradicionais cautelares processuais penais – por exemplo, as medidas de arresto e sequestro, que encontram fundamento na necessidade de garantir a reparação do dano (patrimonial) e/ou o perdimento de proventos do crime, assegurando que se operem os efeitos extrapenais da condenação previstos no art. 91 do Código Penal –, o confisco-pena, lamentavelmente, não tem a finalidade de recompor o prejuízo causado pelo crime ou privar o condenado do provento da infração penal.
Logo, por corolário lógico, o “bloqueio cautelar” do patrimônio lícito do acusado para fins de garantir eventual perda alargada não poderia se utilizar dos fundamentos que lastreiam as medidas assecuratórias previstas em nosso Código de Processo Penal. Nasce, assim, mais uma aberração jurídica: cautelares processuais penais decretadas em desvio de finalidade, isto é, para assegurar o confisco-pena.
Outrossim, por paradoxal que pareça, o “confisco-pena” – estampado na Lei Anticrime, relembre-se, para supostamente combater a criminalidade organizada e do colarinho branco –, pode ser aplicado, ao menos em tese, a delitos completamente alheios ao âmbito da macrocriminalidade ou da criminalidade econômica (a exemplo de crimes de homicídio e estupro, cuja pena máxima abstratamente prevista suplanta aos seis anos previstos no art. 91-A, do CP) – o que reforça tratar-se de instrumento de punição do autor, não do fato.
A evidenciar ainda mais a incongruência do critério objetivo adotado pelo legislador, percebem-se excluídos do âmbito de incidência da norma relevantes crimes de influência econômica. É o caso, por exemplo, dos crimes contra a ordem tributária e econômica, do delito de estelionato e de alguns crimes contra o sistema financeiro nacional com penas inferiores a seis anos.
Mas estes estão longe de ser os únicos os problemas da inovação legislativa. Percebe-se que o legislador descuidou, absolutamente, de estabelecer qualquer limite de proporcionalidade (quanto/o que confiscar) e pessoalidade (de quem confiscar). Em tese, o Estado pode confiscar em âmbito penal qualquer rendimento ou bem de qualquer natureza, não estando restrito ao prejuízo econômico eventualmente causado pela infração penal, e de qualquer pessoa (rememore-se que bens cedidos a terceiros ou sobre os quais o condenado tenha domínio ou proveito ao tempo do crime são também passíveis de confisco).
Tão ou mais grave do que isso, subvertendo a lógica própria do processo penal, o legislador anticrime desincumbiu o Ministério Público de demonstrar a ilicitude do patrimônio que se pretende confiscar. Partindo da (tenebrosa) presunção de que tudo que não é compatível com o patrimônio regularmente contabilizado é provento de crime, o § 2º do art. 91-A, conquanto não tenha especificado em que momento e de que forma poderá ser judicializada esta prova, atribuiu ao condenado o ônus de demonstrar “a inexistência da incompatibilidade ou a procedência lícita do patrimônio”. Já o § 3º do referido artigo dispõe que basta que o Ministério Público peça a perda alargada por ocasião da denúncia, indicando a diferença apurada entre o “patrimônio real” e o “patrimônio licitamente declarado”, para que incida esse “efeito” por ocasião da condenação.
Ou seja, na prática, é suficiente para privar o acusado (ou terceiros a ele relacionados) de seus bens, durante todo o processo criminal, que o órgão acusador faça o pedido de perda alargada ao oferecer a denúncia e indique um valor, sendo deliberadamente dispensada a produção de prova da ilicitude do patrimônio atingido, o que, evidentemente, torna excessivamente gravosa, senão abusiva, a medida, que pode ser embasada, como de fato tem sido, em mera análise (unilateral e extrajudicial) de quebra de sigilo bancário e fiscal do acusado.
Significa, portanto, que pouco importa se o acusado exerceu ocupação lícita e/ou construiu regularmente seu patrimônio (ou de sua família) ao longo de sua vida. Da maneira como vem sendo aplicada a nova legislação (porque a inconsequente redação assim o permite), basta que o sujeito esteja respondendo a ação penal por qualquer crime com pena superior a 6 anos de reclusão e que não tenha declarado corretamente sua renda à Receita Federal para que tenha seu patrimônio equiparado a provento ou produto de crime para fins de confisco criminal.
Aliás, aqui se encontra outra face igualmente problemática do confisco-pena. Alarga-se não somente o confisco de bens, mas também as hipóteses de devassa do sigilo bancário e fiscal do acusado para apuração de eventuais irregularidades (administrativas e, portanto, carentes de dolo) passíveis de referendar, ao final da ação penal, o confisco criminal de bens.
Outro ponto nebuloso que não passa despercebido: a Lei de Drogas, também alterada na onda das inovações legislativas “anticrime”, igualmente recebeu a previsão do confisco-alargado, introduzido em seu art. 63-F pela Lei 13.886/2019. Contudo, diferentemente da previsão contida no art. 91-A do Código Penal, a perda alargada prevista na Lei de Drogas “fica condicionada à existência de elementos probatórios que indiquem conduta criminosa habitual, reiterada ou profissional do condenado ou sua vinculação a organização criminosa[10]”.
Note-se que, a carga probatória, em se tratando de confisco-alargado decretado mediante aplicação da Lei 11.343/06, depende da comprovação, pelo autor da ação penal, da habitualidade, reiteração ou profissionalismo da conduta do condenado, ou, ainda, de sua vinculação à organização criminosa. Fica, então, o questionamento: por que prova similar é absolutamente dispensada no âmbito da legislação comum, cujo espeque de incidência é infinitamente maior do que o da legislação específica de drogas? Por que o acusado de um crime de corrupção, por exemplo, é incumbido de todo o ônus da prova quanto à (i)licitude do patrimônio a ser confiscado, enquanto o acusado do delito de tráfico de drogas divide a carga probatória com o órgão acusador?
Sabemos que, ante o exíguo tempo de vigência, o confisco-alargado ainda é tema controverso e de construção incipiente em âmbito acadêmico e jurisprudencial[11]. Não hesitemos, porém, na construção do debate necessário perante as Cortes do país para controle difuso da incidência do confisco-pena enquanto não advinda definição do Supremo Tribunal Federal sobre sua compatibilidade com o texto constitucional, inclusive tendo em conta que a nova Lei de Abuso de Autoridade (13.869/2019) criminaliza a indisponibilidade excessiva de ativos financeiros decretada em processo judicial[12].
Ronaldo dos Santos Costa, sócio em Gilson Bonato, Ronaldo Costa e Advogados.
Bárbara Mostachio Ferrassioli, advogada criminalista em Falavinha & Camilli Advogados Associados.
[1] Rememore-se que, antes de ser inserida na famigerada Lei Anticrime pelo ex-ministro da Justiça e ex-juiz da Operação Lava-Jato, Sr. Sérgio Moro, a perda alargada, conquanto com redação ligeiramente diversa, protagonizava o projeto de lei capitaneado pelo Ministério Público Federal (PL 4850/2016) e derrotado em âmbito parlamentar, popularmente conhecido como “Dez Medidas Contra a Corrupção”.
[2] “Diversamente da microcriminalidade que figura como a soma dos delitos individuais, a macrocriminalidade nada mais é do que a delinquência em bloco conexo e compacto, incluída no contexto social de modo pouco transparente (crime organizado) ou sob rotulagem económica lícita (crime de colarinho branco). Alicerçada na certeza, ou quase-certeza, da impunidade, a macrocriminalidade visa exclusivamente o lucro. Via de regra, o macrocriminoso lucra e fica impune. São dois, portanto, os fatores da macrocriminalidade: o lucro e a impunidade”. (FERNANDES, Newton; FERNANDES, Valter. Criminologia integrada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 440).
[3] A (precisa e coerente) crítica feita por LUCHESI e ZONTA à utilização indiscriminada da medida de sequestro de bens na era pós lava-jato é, no contexto aqui abordado, igualmente pertinente: “o sequestro, medida assecuratória utilizada com frequência crescente no paradigma atual de patrimonialização do direito penal, deve se ater ao limite do efetivo enriquecimento ilícito que o sujeito alvo obteve. Não se pode perverter tal modalidade cautelar patrimonial, por ser ela aparentemente mais célere e simples que a hipoteca legal e o arresto (que pressupõe posterior especialização de hipoteca), a fim de alcançar patrimônio desrelacionado à prática delituosa e/ou para punir um agente pelo enriquecimento ilícito de outros.” (LUCCHESI, Guilherme Brenner; ZONTA, Ivan Navarro. Sequestro dos proventos do crime: limites à solidariedade na decretação de medidas assecuratórias. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, vol. 6, n. 2, p. 735-764, maio/ago. 2020. https://doi.org/10.22197/rbdpp.v6i2.353).
[4] Não à toa, a (in)constitucionalidade do art. 91-A e seus parágrafos é hoje questionada perante o Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 6304, ajuizada pela Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (ABRACRIM), ainda pendente de julgamento.
[5]Art. 5º, XLV. Nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido.
[6] Art. 5º, XXII - é garantido o direito de propriedade. XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;
[7] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral. 24. ed. p. 689.
[8] Nesse sentido, é sempre oportuna e atual a lição de José Frederico Marques: “o processo é instrumento de atuação estatal vinculado, quase sempre, às diretrizes políticas que plasmam a estrutura do Estado. Impossível, por isso, subtrair a norma processual dos princípios que constituem a substância ética do Direito e a exteriorização de seus ideais de justiça. No processo penal, então, em que as formas processuais se destinam a garantir direitos imediatamente tutelados pela Constituição, das diretrizes políticas desta é que partem os postulados informadores da legislação e da sistematização doutrinária” MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. V. I. 1. ed., São Paulo: Bookseller, 1998., p. 37.
[9] Exemplo disso é a imputação quase sempre irrefletida e carente de justa causa do delito de organização criminosa previsto na Lei 12.850/13 para forçar o deferimento de medidas investigativas de notória gravidade e caráter excepcional (p. ex. interceptação telefônica), bem como a imputação dúplice, isto é, em bis in idem, dos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro a agentes públicos, prática bastante comum no âmbito do Mensalão e, depois, da Lava-jato, a despeito do posicionamento contrário do Supremo Tribunal Federal. Para compreensão rápida e precisa do tema, vide Pierpaolo Cruz Bottini em: < https://www.conjur.com.br/2018-dez-03/direito-defesa-nem-sempre-correta-dupla-imputacao-corrupcao-lavagem#sdfootnote1sym>.
[10] Curiosamente – e mais um indicativo de que a legislação não veio para reforçar a tutela penal de bens jurídicos especialmente relevantes à sociedade, mas sim punir criminosos selecionados – a nova regra disposta no art. 61-F, § 1º, da Lei de Drogas cuidou de superar o entendimento até então consolidado pelo STF no julgamento do Recurso Extraordinário 638491/PR (Tema 647), sob a sistemática dos recursos repetitivos, no sentido de que “É possível o confisco de todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico de drogas, sem a necessidade de se perquirir a habitualidade, reiteração do uso do bem para tal finalidade, a sua modificação para dificultar a descoberta do local do acondicionamento da droga ou qualquer outro requisito além daqueles previstos expressamente no art. 243, parágrafo único, da Constituição Federal ".
[11] Em recente decisão monocrática no RMS 64559, o então Ministro Nefi Cordeiro considerou legítima a manutenção da apreensão de veículo encontrado na residência de sujeito acusado de integrar organização criminosa voltada ao tráfico de drogas, para fins de assegurar confisco-alargado, fazendo menção ao art. 243, parágrafo único da Constituição Federal, bem como à (superada) tese firmada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Tema 647. Na decisão, o ex-Ministro consignou que “O confisco criminal é uma ação voltada contra a pessoa do acusado (in personam – against the person), de modo a atingir seus bens, quando utilizados ou derivados de uma prática criminosa, exigindo a condenação criminal prévia. Trata-se de uma pena aplicada em decorrência de uma condenação criminal, depois de transcorrido o processo e ter sido afirmada a responsabilidade penal do acusado e durante a execução da pena.”.
[12] Art. 36. Decretar, em processo judicial, a indisponibilidade de ativos financeiros em quantia que extrapole exacerbadamente o valor estimado para a satisfação da dívida da parte e, ante a demonstração, pela parte, da excessividade da medida, deixar de corrigi-la: Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.