Súmula vinculante 24 e o início do prazo prescricional: uma necessária reavaliação.
Súmula vinculante 24 e o início do prazo prescricional: uma necessária reavaliação.
Por Daniel Zalewski
A súmula vinculante 24 foi muito celebrada por todos aqueles que militam no direito penal empresarial, mais especificamente por aqueles que atuam nos crimes contra a ordem tributária. E não poderia deixar de ser, pois, por uma questão simples, tal súmula impediu diversas persecuções criminais, colocando um limite claro entre o poder do Estado e o direito do cidadão.
In verbis, a súmula reproduz que: Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei 8.137/1990, antes do lançamento definitivo do tributo.
Criou-se assim, talvez, uma das principais súmulas com estrutura “defensiva”, a qual passou a integrar o rol de súmulas preferidas pela advocacia criminal, como a súmula nº 11 e nº 14, por exemplo.
Todavia, “nem tudo são rosas nas terras da Dinamarca[i]”, a presente Súmula traz algumas problemáticas, travestidas de garantias, que necessitam de uma nova discussão sobre a sua aplicabilidade nos casos concretos.
Uma das mais emblemáticas, porém, já adormecida nos debates acadêmicos, doutrinários e jurisprudenciais, mas que necessita de uma nova discussão, é sobre o início da contagem do prazo de prescrição. O atual entendimento é de que o prazo prescricional começa a ser contado a partir do lançamento definitivo do tributo.
Todavia, o entendimento que deve permanecer é de que o delito se consuma no momento da efetiva suspensão ou redução do tributo pago. O processo administrativo nada mais é do que um meio de se chegar a um mero indício do que já ocorreu no mundo dos fatos. Dessa forma, o prazo de contagem para fins de prescrição deveria começar a correr no momento do efetivo cometimento do delito (suspensão ou redução do tributo), não após o término do processo administrativo.
Ainda, o contribuinte deve ser responsabilizado pela sua conduta e não mais do que isso. Frise-se que o lançamento definitivo não é feito pelas mãos do contribuinte, e sim pelo fisco. Nesse sentido, o Código Penal estabelece em seu artigo 4°: “Considera-se praticado o crime no momento da ação ou omissão, ainda que outro seja o momento do resultado”.
O resultado ocorre tão somente após o lançamento definitivo. Contudo, o crime, para fins prescricionais, começa na ação ou omissão do contribuinte.
Como lembra o pesquisador André Vinícius Monteiro[ii]:
“Em interessante paralelo com o delito de homicídio, Janaína Conceição Paschoal e Jorge Coutinho Paschoal afirmam estar o lançamento definitivo relacionado à tipicidade, mas não sob o enfoque da consumação, e sim sob o da materialidade. Tal qual o exame necroscópico realizado dias após o homicídio não modifica o instante de consumação do delito, mas apenas constata a materialidade delitiva, assim o é a decisão do processo fiscal. “Da mesma forma, o fato de o fisco atestar a existência do tributo devido apenas quando da prolação da decisão administrativa não altera o momento da consumação do crime. A decisão definitiva funcionaria como um exame de corpo de delito.[iii]”
Sendo assim, o prazo prescricional deveria ser contado a partir da efetiva suspensão ou redução do tributo.
Novamente e por fim reitera-se que o atual entendimento (que a prescrição começa a partir do lançamento definitivo) causa uma enorme insegurança jurídica, tendo em vista que torna o prazo prescricional muito distante do ato praticado, criando uma espécie de supra prazo, munindo o Estado da possibilidade de aplicação de uma sanção penal desarrazoada, pelo tempo já passado.
Desta forma, vimos que a Súmula Vinculante 24, não obstante tenha colocado um limite bem estabelecido entre o poder do Estado e o direito do cidadão, pondo fim a inconsequentes persecuções penais, também acabou por trazer certas problemáticas, travestidas de garantias, que necessitam de uma nova discussão sobre a sua aplicabilidade aos casos concretos, intuito do presente artigo.
[i] Referencia à citação de Hamlet: “Há algo de podre no reino da Dinamarca” - William Shakespeare
[ii] (Publicado em Revista Criminal vol. 16, p. 29-41) que pode ser lido pelo link https://www.pucsp.br/cienciascriminais/agenda/ordem_tributaria_consumacao_prescricao_andre_monteiro.pdf
[iii] Paschoal, Janaína Conceição; Paschoal, Jorge Coutinho. A Constituição do crédito tributário, a consumação do crime tributário e a extinção da punibilidade pela prescrição. In Boletim IBCCRIM, São Paulo, n. 194, p. 2-3.
Este artigo reflete a opinião de seus autores e não necessariamente a opinião do IBDPE.
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POR QUE NÃO FAZER ATA NOTARIAL DAS PROVAS DIGITAIS
POR QUE NÃO FAZER ATA NOTARIAL DAS PROVAS DIGITAIS
Ferramentas eletrônicas e a blockchain como forma de registro de dados
Por Eduardo Titão Motta
O código de processo civil estabelece, em seu Art. 384 que “a existência e o modo de existir de algum fato podem ser atestados ou documentados, a requerimento do interessado, mediante ata lavrada por tabelião”. O documento produzido, a ata notarial, serviria, portanto, como prova de que algo efetivamente existiu e foi constatado pelo tabelião. Contudo, essa definitivamente não é a melhor estratégia no que diz respeito às provas digitais.
Isso porque o registro de um tabelião se trata de uma constatação visual dos fatos, apenas. Dotado de fé pública, esse servidor público serve como “testemunha” de um fato, o descrevendo num documento, inclusive com capturas de tela ou imagens, e registrando sua existência. Um dossiê do que foi observado. E só.
O serviço é, por essência, jurídico. Mas a prova não.
Nos cartórios, não se registram metadados técnicos, códigos HASH[i] ou registros de origem do material, integridade ou indicadores de falsidade, o que pode eventualmente vir a prejudicar a validade das provas em eventual processo judicial (seja ele cível ou criminal). Há, ainda, problemas relacionados à auditoria da prova, que pode acabar se perdendo ou sendo retirada da internet, editada ou apagada de servidores de arquivos, o que prejudica a narrativa processual como um todo.
Outra questão que diz respeito ao registro de provas digitais por meio de ata notarial diz respeito à disponibilidade da prova, que só pode ser feita no cartório durante seu horário de funcionamento e a altos custos (no Paraná, um registro notarial de uma página custa caros R$630,00, podendo chegar aos milhares de reais nos casos de registros de conversas de WhatsApp, de conteúdo de vídeos, logs de IPs, etc). Tudo para inviabilizar ainda mais o emprego dessa técnica.
Para solucionar problemas digitais, soluções digitais.
Resta clara, portanto, a demanda de instrumentos e ferramentas capazes de garantir a autenticidade e integridade dos dados relativos às provas digitais[ii].
A partir da ideia de blockchains[iii], surgiram, pelo mundo todo, ferramentas de verificação e registro de provas digitais de forma rápida e automatizada, como as brasileiras Uniproof e Verifact. São programas que prometem o registro fiel da prova, em conformidade com normas internacionais como a ABNT NBR ISO/IEC 27037:2013, navegação em ambiente controlado e sem interferências, com detalhes técnicos auditáveis e preservação da integridade do conteúdo de forma confiável e regulamentada, tudo de maneira integrada, com segurança, credibilidade tecnológica e, o melhor – a custos baixos. A Verifact, por exemplo, cobra R$89 por sessão de registrada de 30 minutos de análise de prova.
As plataformas podem ser acessadas por qualquer computador com internet, a qualquer momento do dia e já são atestadas e utilizadas por vários órgãos de Polícia e de Justiça pelo país, como a Polícia Civil do Paraná, o MPSP e o MPBA. Tudo de acordo com as boas práticas na Cadeia de Custódia da Prova (lei 13.964/2019) e recomendações forenses aderentes à ISO 27037/2013.
Esse tipo de ferramenta está sendo cada vez mais aceita e é uma boa alternativa para os hiperconectados[iv]. Uma novidade pra ficar de olho!
[i] Códigos HASH ou Hashes são cadeias alfanuméricas geradas matematicamente e constituem como que a “identidade” dos arquivos digitais. São registradas com a finalidade de documentar a manutenção da integridade dos arquivos, ou seja, registrar que eles não foram alterados.
[ii] Leia mais em https://www.hindawi.com/journals/complexity/2021/5536326/
[iii] A blockchain (também conhecido como “o protocolo da confiança”)é uma tecnologia de registro distribuído que visa a descentralização como medida de segurança.São bases de registros e dados distribuídos e compartilhados que têm a função de criar um índice global para todas as transações que ocorrem em determinado setor. Funciona como um livro-razão, só que de forma pública, compartilhada e universal, que cria consenso e confiança na comunicação direta entre duas partes, ou seja, sem o intermédio de terceiros.
[iv] AgRg no HABEAS CORPUS Nº 683483 - PR (2021/0240089-1), Agravo de Instrumento nº 2237253-77.2018.8.26.0000
Eduardo Titão Motta é Advogado Criminalista. Doutorando e Mestre em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Bacharel em ciências policiais e especialista em investigação policial (APMG/PMPR); Capitão da reserva não remunerada da Polícia Militar do Paraná, tendo prestado mais de 15 anos de serviços ao Órgão. Foi membro do Setor de Polícia Judiciária e Investigação Criminal da Corregedoria-Geral da PMPR (2012-2016 e 2019-2021) e Diretor Administrativo e de compras públicas da Secretaria de Estado da Segurança Pública - SESP/PR (2019). Professor de processo penal e de Investigação Defensiva.
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O habeas corpus e as medidas assecuratórias patrimoniais: uma análise do julgamento do RHC 147.043/STJ
Por Pedro Ivo Velloso e Vinícius Arouck
Nos últimos anos, verificou-se um considerável aumento do número de habeas corpus impetrados no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal, o que se deve, em boa parte, à recalcitrância de órgãos judiciais de primeira e de segunda instância em aplicar precedentes favoráveis aos réus. Ocorre que esse aumento do número de habeas corpus acabou por gerar uma certa banalização do writ, contribuindo para o abarrotamento dos tribunais, que passaram a restringir suas hipóteses de cabimento[1].
Atualmente, apesar das inúmeras restrições existentes à admissão do writ, tem-se um consenso, pelo menos na jurisprudência pátria, que a garantia constitucional do habeas corpus demanda, ainda que indiretamente, a existência de ameaça ou coação ilegal à liberdade de ir e vir[2].
Assim, a jurisprudência das cortes superiores entendia não ser possível a impetração de HC para fins de sanar ilegalidades ou abusos de poder que afetassem o patrimônio, como para questionar medidas assecuratórias de arresto, sequestro ou indisponibilidade de bens, por exemplo. Segundo esse entendimento, por expressa disposição legal, as insurgências em face dessas medidas deveriam ser realizadas por meio do recurso próprio de apelação e, excepcionalmente, quando houvesse violação a direito líquido e certo, por meio de mandado de segurança.
Ocorre que, em 23 de março de 2022, a 6ª Turma do STJ deu provimento a um recurso ordinário em habeas corpus, de nº 147.043/SP, para o fim de determinar o levantamento do bloqueio de bens e valores do então recorrente. Na ocasião, questionava-se o excesso de prazo na tramitação do processo em que foram decretadas as medidas assecuratórias patrimoniais e pedia-se a revogação, no todo ou em parte, dessas medidas.
A 6ª Turma, por maioria, entendeu pelo cabimento do writ e deu provimento ao recurso. No ponto, faz-se necessário analisar os debates travados durante o julgamento, a fim de demonstrar a ratio decidendi da Turma, de forma a oportunizar uma análise crítica da decisão.
Pois bem. O ministro Antônio Saldanha, acompanhando o voto do relator, ministro Sebastião Reis, demonstrou preocupação com os casos em que ocorre o bloqueio integral do patrimônio do cidadão, uma vez que, em última análise, isso restringiria a liberdade de ir e vir. “Com o bloqueio de todo o patrimônio de uma pessoa não tem como ela sair, viajar. Não é preciso colocar alguém atrás das grades para prendê-la. Você bloqueia sua conta bancária, bloqueia seu patrimônio, tira seu automóvel… acabou, ele não pode se deslocar”. O ministro ainda lembrou que o mandado de segurança não tem a mesma celeridade e efetividade do que o HC. Assim, o ministro reviu seu posicionamento e flexibilizou o cabimento do writ para abranger situações em que há uma ilegal e integral constrição patrimonial.
Inaugurando a divergência, o ministro Rogério Schietti asseverou a necessidade de se observar “o objetivo e o cabimento de cada tipo de ação ou impugnação”, alegando que o pedido de restituição deve ser feito ao juiz prolator da decisão e, “quando muito, havendo clara ofensa a direito líquido e certo, poderá haver a impetração de mandado de segurança”. Com isso, assentou que “o pedido de restituição de bens refoge do alcance do habeas corpus”, para negar conhecimento ao recurso. O ministro Olindo Menezes acompanhou a divergência.
O relator voltou a defender sua posição. “Sem dinheiro, não tem como viver”, disse ele. Segundo o ministro, existem hipóteses de admissibilidade em que a ofensa à liberdade é ainda mais remota e indireta do que naquele caso. Para o ministro relator, ao se verificar a ilegalidade da constrição, não seria razoável não reconhecê-la unicamente em razão do instrumento processual adotado.
O desempate do julgamento ficou a cargo da presidente da Turma, ministra Laurita Vaz. Para a ministra, o uso indiscriminado do HC deve ser combatido. No entanto, valendo-se de precedente favorável da 5ª Turma do STJ[3], que dispõe que as medidas assecuratórias, como medidas cautelares que são, “sujeitam-se aos requisitos e ao equilíbrio que lhes são inerentes”, entendeu haver ofensa ao princípio da razoabilidade quando a manutenção da constrição se mantém por tempo indeterminado. Assim, a ministra concluiu que “o excesso de prazo para formação da culpa desautoriza a cautelar assecuratória” e, com isso, acompanhou o voto do relator.
O precedente representa um marco importante em matéria de habeas corpus já que, verdadeiramente, foi aplicado a uma hipótese extrema de medida assecuratória patrimonial. Não se entenda, porém, que o citado precedente deve ampliar o cabimento de habeas corpus para qualquer questionamento de medida cautelar patrimonial. A Turma se fundou em certos fatores excepcionais para conhecer o writ e fez questão de deixar claro que não deve haver uma ampliação indiscriminada do cabimento do habeas corpus.
Primeiramente, o órgão colegiado considerou que a medida patrimonial deve atingir, ainda que indiretamente, a liberdade de ir e vir do cidadão. Para tanto, é necessária a demonstração de que a privação do patrimônio seja integral ou, pelo menos, suficiente para afetar a liberdade de locomoção. Em segundo lugar, o acórdão considerou a necessidade de que a constrição dure por tempo desproporcional ou desarrazoado, evidenciando-se, assim, o requisito do excesso de prazo para o afastamento da medida.
O que não está claro, contudo, é se qualquer ilegalidade — que não o excesso de prazo — autorizaria o manejo da medida. Sobre essa questão, defendemos que sim, pois qualquer ilegalidade estaria abrangida pelo dispositivo do art. 5º, LXVIII, da CF, que demanda que a ameaça ou coação à liberdade de ir e vir se dê por ilegalidade ou abuso de poder, sem qualquer distinção.
Inobstante, a verdade é que o referido entendimento representa um marco importante, sobretudo diante das inovações legislativas, que ampliaram a abrangência das medidas assecuratórias, e da mudança de postura dos órgãos persecutórios, que têm passado a utilizar as cautelares patrimoniais com muito mais frequência ante a sua alegada efetividade e da existência de uma certa tolerância para o preenchimento de seus requisitos.
Ocorre que, conforme se tem verificado no âmbito das grandes operações, as medidas constritivas patrimoniais, por vezes, revelam-se arbitrárias e desproporcionais, porquanto voltadas — às vezes intencionalmente — a constranger o alvo, asfixiando-o financeiramente, de modo que este ceda às pressões acusatórias e realize acordos com os órgãos de persecução. É inequívoco, nestes casos, a influência da medida constritiva patrimonial na liberdade de ir e vir do acusado ou do investigado. Dessa forma, não há dúvidas de que “enquanto não houver outro meio processual igualmente eficaz e célere para afastar ilegalidades que possam, ainda que indireta e futuramente, atingir a liberdade, o emprego do habeas corpus não pode ser tolhido”[4].
É sob essa perspectiva que a decisão proferida pelo STJ representou um marco importante em matéria de liberdade, pois permitiu a utilização do HC para os casos em que a liberdade é atingida pela via transversa da constrição patrimonial, desde que ela padeça de ilegalidade ou abuso de poder[5].
Os aludidos precedentes do STJ evidenciam o caráter de indivisibilidade e interdependência dos direitos fundamentais na medida em que demonstram o quanto o patrimônio — ou a ausência dele — pode interferir diretamente na liberdade, além de atribuírem uma relevância ainda maior à garantia constitucional do habeas corpus como instrumento de tutela de direitos fundamentais.
Frise-se, contudo, que o acórdão proferido será revisto pelo Supremo Tribunal Federal, uma vez que foi alvo de recurso extraordinário interposto pelo Parquet. Assim, a palavra final sobre o tema, ao que parece, ficará a cargo da Suprema Corte.
Ainda que não subsista, o referido precedente constituiu uma importante lufada de liberdade, que deixará marcas pela engenhosidade do raciocínio e, sobretudo, pela perspectiva de visualizar os direitos fundamentais como indivisíveis e interdependentes.
[1] Nesse sentido, NUNES, Mariana Madera. Habeas Corpus no Supremo Tribunal Federal. O cabimento de Habeas Corpus e jurisprudência defensiva do Supremo. Editora RT, 2019, pag. 65.
[2] Nesse sentido, entende-se que “a liberdade de locomoção há de ser entendida de forma ampla, não se limitando a sua proteção à liberdade de ir e vir diretamente ameaçada, como também toda e qualquer medida de autoridade que possa afetá-la, ainda que indiretamente”. MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 12. Ed. São Paulo: Saraiva, 2017. P. 433.
[3] EDcl nos EDcl no AgRg no AREsp 1792372/PR, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, QUINTA TURMA, julgado em 08/03/2022, DJe 11/03/2022
[4] TORON, Alberto Z. Habeas Corpus. Controle do devido processo legal: questões controvertidas e de processamento do writ. 1 ed. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 51.
[5] O entendimento firmado pelo STJ se aproxima, em termos de cabimento do habeas corpus, àquele contido na Constituição de 1891, idealizada por Ruy Barbosa, pois o writ passa a ter maior amplitude, amparando inclusive situações nas quais não necessariamente se discute o direito de locomoção. À época, o elastério interpretativo para o cabimento do writ deu origem à assim chamada “doutrina brasileira do habeas corpus”. Nesse sentido, TORON, Alberto Z. Habeas Corpus. Controle do devido processo legal: questões controvertidas e de processamento do writ. 1 ed. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 42.
Pedro Ivo Velloso é sócio do Figueiredo & Velloso Advogados e doutorando pela Universidade de São Paulo em Processo Penal.
Vinícius Arouck é advogado no escritório Figueiredo & Velloso e especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pelo Instituto de Direito Público de Brasília (IDP).
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O crime antecedente de sonegação fiscal na lavagem de dinheiro
Por Marcelo Augusto Rodrigues de Lemos e Marina Brentano Colombo
Discute-se, atualmente, a (im)possibilidade da tipificação do crime de lavagem de dinheiro, na hipótese em que bens, direitos ou valores são adquiridos com recursos oriundos do crime de sonegação fiscal. Malgrado existam correntes doutrinárias que decretam que é atípica a conduta de lavagem de dinheiro em casos de supressão ou redução de tributos, por inexistência de crime antecedente, há, nessa problemática, relevantes desdobramentos.
Sabe-se, nessa quadra argumentativa, que, desde a edição da Lei n.º 12.683/2012, a lavagem de capitais passou a admitir, como crime antecedente, qualquer infração de temática penal. A alteração legislativa veio a derrubar a taxatividade dos delitos que antecediam o cometimento do branqueamento de capitais, expandindo o espectro de abrangência do tipo penal cotejado, trazendo ao cenário jurídico discussões bastante intrigantes em relação à estrutura típica do delito. Veja-se que a existência de uma infração penal, seja ela uma simples contravenção penal até um vultoso caso de tráfico de entorpecentes, é indispensável para a tipicidade, inobstante não necessitar, sequer, da existência de ação penal tendente a apurar, julgar e condenar o acusado pelo delito prévio (art. 2.º, inc. II, da Lei n.º 9.613/98). Assim, a partir do advento da nova lei, tem-se, por certo, um nebuloso alcance da lavagem de capitais, pois, grosso modo, qualquer crime ou contravenção penal que gere algum tipo de lucro, ou seja, conversão de dinheiro ilícito em idôneo, é suficiente para consumar a lavagem de dinheiro[1].
O crime antecedente, contudo, é autônomo em relação ao branqueamento de capitais, de sorte que, mesmo havendo absolvição no primeiro em razão, por exemplo, de inexistência de provas ou dúvidas quanto à autoria, a lavagem de dinheiro, mesmo assim, se perfectibiliza. Nesse aspecto, avulta-se a seguinte questão: considerando que a configuração do crime de sonegação fiscal depende do prévio esgotamento da via administrativa, enquanto que o crime de lavagem de capitais se consuma assim que os bens, direitos ou valores voltam a circular na economia lícita[2], é possível ter-se um crime de lavagem de capitais cujo delito antecedente seja a supressão ou redução de tributos?
A priori, é de rigor destacar-se que o crime tipificado no art. 1.º da Lei n.º 8.137/90 é um crime material e de dano, cujos elementos objetivos do tipo consistem na efetiva supressão ou redução de tributos ou contribuições sociais. Ainda, o elemento subjetivo é o dolo. À base dessas ponderações, interessa-nos, nos limites desta exposição, o dado momento de consumação do crime, havendo, para tanto, duas possibilidades: quando da conjuntura de todos os elementos normativos do tipo (supressão ou redução de tributos ou contribuições sociais, somado ao não-pagamento) ou após a constituição definitiva do crédito tributário.
Não há se olvidar-se, nesse cenário, a existência da Súmula Vinculante n.º 24, a qual estipula que não há tipificação material do crime de sonegação fiscal antes do lançamento definitivo do crédito tributário. Ou seja, será necessário o prévio esgotamento da esfera administrativa, para, finalmente, se iniciar a persecução penal. Nesse ponto, o Supremo Tribunal Federal, no habeas corpus n.º 81611, de lavra do ex-Ministro Sepúlveda Pertence, reconheceu que não há condição objetiva de punibilidade, no delito em análise, enquanto não houver o lançamento definitivo do tributo. Em outras palavras, não se consuma o crime quando ainda há discussão sobre a existência (ou não) da exigibilidade do imposto, em tese, devido[3].
Sucede, no entanto, que nem sempre foi assim: o julgado alhures representou uma mudança no entendimento do Pretório Excelso, pois, conforme bem elucida José Paulo Baltazar Júnior¸ antigamente, o crime de sonegação fiscal se consumava quando existentes todos os elementos normativos do tipo, a partir do vencimento do prazo para pagamento do débito tributário:
Ao contrário do que se dava no regime da Lei 4.729/65, os crimes do art. 1.º da Lei 8.137, com exceção daquele previsto em seu parágrafo único, são materiais e de dano, consumando-se quando todos os elementos do tipo estão reunidos. Exige-se, então, para a consumação, a efetiva supressão ou redução de tributo ou contribuição social (STF, HC 75.945, Pertence, 1.ª T., u., DJ 13.2.98) (...) Tradicionalmente, entendia-se, então, consumado o crime por ocasião do vencimento do prazo para pagamento[4].
Indubitável, pois, pela existência dos precedentes do Supremo Tribunal Federal no sentido de considerar-se, especialmente por conta da fluência do prazo prescricional do crime do art. 1.º da Lei n.º 8.137/90, em razão do óbice da Súmula Vinculante n.º 24, que o momento da consumação do delito é “no dia seguinte ao término do prazo para recurso voluntário no processo administrativo fiscal[5]”.
À base desse cenário, temos duas linhas de entendimento, prevalecendo-se a primeira: 1. o crime de sonegação fiscal se consuma a partir da constituição definitiva do crédito tributário, vale dizer, após o esgotamento da via administrativa e; 2. o delito contido no se consuma quando da conjunção de todos os elementos normativos do tipo, isto é, quando há a efetiva supressão ou redução de tributos ou contribuições sociais e, por via de consequência, a ausência de adimplemento do tributo, ainda que pendente discussão administrativa[6].
Nessa ordem de ideias, as reiteradas decisões do Supremo Tribunal Federal tendentes a afirmar que o momento da consumação do crime de sonegação fiscal é a partir do lançamento definitivo do crédito tributário é, sem dúvida, uma providência plausível para evitar que a sonegação fiscal, enquanto tipo penal, se torne inócua. Explico: uma representação fiscal, assim como um processo judicial, pode demorar muitos anos, face a todos os recursos que o contribuinte tem a sua disposição. Nesse contexto, se, porventura, a consumação do delito se desse, para esses fins, na data da conjuntura de todos os elementos normativos do tipo e, consequente, vencimento do prazo para pagamento do débito tributário (não esqueçamos que o pagamento integral do tributo extingue a punibilidade do agente), o crime de sonegação fiscal, em sua extensa maioria, na prática, poderia estar prescrito, pois, com o advento da Súmula Vinculante n.º 24, é necessário o prévio esgotamento da via administrativa para, então, iniciar-se a persecutio criminis in judicio. Vale dizer, a contagem do prazo prescricional se inicia a partir da consumação do crime. Então, o Pretório Excelso tomou a (necessária) medida para fazer valer o jus puniendi estatal, evitando, deste modo, que o crime de sonegação fiscal se tornasse “letra morta” no ordenamento jurídico brasileiro.
Em outro cenário, muito embora o crime de lavagem de dinheiro seja autônomo em relação aquele que o originou, certo é que há de existir, ao menos, indícios da prática delitiva. Uma ponderada reflexão e imediata conclusão no tocante à sonegação fiscal como crime prévio ao branqueamento de capitais, nos leva a crer ser impossível a tipicidade nesses casos, pois a data de consumação do crime antecedente será posterior ao delito de lavagem de capitais. Portanto, em tese, não haverá crime antecedente.
Não se desconhece, igualmente o entendimento segundo o qual haverá tipicidade de lavagem de dinheiro oriunda de sonegação fiscal, pois, o art. 2.º, inc. II, da Lei n.º 9.613/98 estipula que a ação penal do crime de lavagem de dinheiro “independe do processo e julgamento das infrações penais antecedentes”, nos mesmos moldes do delito do art. 180 do Código Penal, o qual, na conclusão de Vladimir Aras “nem mesmo a Súmula Vinculante 24 impede a acusação por lavagem de dinheiro decorrente de sonegação fiscal”[7].
Entretanto, apesar disso, a questão redunda sobre a seguinte assertiva: deverá existir o crime antecedente (ou indícios) para tipificar o branqueamento de capitais. Nesse passo, as ações penais que visam a apurar a lavagem de capitais provenientes de ilícitos fiscais penais pode, sobremaneira, após impulsionamento da persecução penal em juízo perder o seu objeto. Isso porque as discussões acerca da exigibilidade do crédito tributário perduram por anos, de modo que, na existência de ação penal paralela, das duas uma: ou o processo criminal de apuração da responsabilidade pelo branqueamento de capitais será levado a efeito, sem qualquer problema, ou, na hipótese de reconhecimento, no processo fiscal, da inexigibilidade do tributo ou, até mesmo, outros aspectos que sejam relevantes ao processo penal (como o dolo, por exemplo), a ação penal deverá ser arquivada, trazendo um severo prejuízo ao acusado e ao Estado.
Portanto, em nossa concepção, levar a efeito uma persecução criminal em juízo que pode, ao fim e ao cabo, se tornar inócua é, sem sombra de dúvida, um ônus que o Estado não pode suportar. Não só isso, o próprio acusado em processo penal, não pode ser processado, julgado e condenado sem ter certeza quanto à existência de elemento normativo do tipo. Isto é, não compactua com os preceitos republicanos de um Estado Democrático de Direito, a marcha de um processo criminal no qual haja, desde sempre, a bem da verdade, dúvida quanto à existência de tipicidade. Destarte, em que pese a prescindibilidade de condenação quanto ao crime antecedente, no âmbito da lavagem de dinheiro, certo é que deverá haver o delito prévio. A norma não exclui essa indispensabilidade de os ativos ilícitos serem oriundos de infração penal.
Por conta disso, pela consumação do crime de sonegação fiscal se perfectibilizar na data em que é constituído o crédito tributário e, em sendo o branqueamento de capitais consumado em momento anterior a isso, não há se falar em lavagem de dinheiro proveniente da supressão ou redução de tributos. Somando-se a problemática posta em debate é preciso, ainda, trazer a baila outro posicionamento que corrobora a impossibilidade da sonegação fiscal como crime antecedente, isto é, da ausência, neste tipo penal, de inserção de recursos inidôneos aos seus proventos lícitos.
Sabe-se que o objetivo do agente ‘’lavador’’ é conferir origem lícita aos proventos ilícitos, a fim de que os mesmos sejam incorporados em seu patrimônio, havendo, desse modo, um acréscimo nesse. A conduta criminosa da lavagem de dinheiro é, portanto, naturalmente traduzida e vinculada à evolução do capital financeiro do agente, na medida em que ‘’o delito antecedente deve estar relacionado a um proveito econômico, redutível em valores ou direitos imobiliários.’’[8]. Nessa perspectiva, pontua-se, ab initio, que a figura do delito de sonegação fiscal, em realidade, possui uma diferenciação na sua estrutura típica frente aos demais delitos que comumente ocupam a posição de delito antecedente do branqueamento de capitais (p.ex: tráfico, roubo, estelionato e outros). Note-se que as infrações penais corriqueiras conduzem à incorporação de bens, direitos ou valores, ditos ‘‘sujos’’ ao patrimônio do sujeito, os quais, até então, ainda não faziam parte do seu patrimônio originário, isto é, estavam - até a perfectibilização do ilícito - na posse/propriedade de terceiro.
Lado outro, no delito de sonegação fiscal, os valores sonegados pertencem, originariamente, ao próprio sujeito sonegador, de sorte que o mesmo não passa a obter um acréscimo em seu patrimônio, mas, tão somente, mantém o valor que já estava, a priori, diluído no mesmo. É dizer: os valores sonegados não são incorporados ao patrimônio do sonegador, eles existem desde sempre e, simplesmente, não são recolhidos aos cofres públicos. Assim, quando o sujeito incorre no delito do art. 1.º da Lei n.º 8.137/90, não há o aporte de valores oriundo de terceiros e nem mesmo um proveito econômico – como ocorre nos demais crimes -, mas, tão somente, a manutenção do seu status quo.
Desse modo, questiona-se se a estrutura do delito de sonegação fiscal permite a configuração do branqueamento de capitais desencadeado em decorrência daquele, uma vez que se estaria diante de um crime antecedente, que por sua composição típica não preenche os pressupostos exigidos pelo tipo penal do art. 1º da Lei n.º 9.613/98, de sorte que os valores ditos ilícitos – por não terem sido declarados e recolhidos – já pertenciam ao sujeito sonegador, e não a um terceiro, não havendo, nesse sentido, a produção de recursos que venham a aumentar o patrimônio do sonegador. Não obstante, convém ainda destacar que a Exposição de Motivos da Lei n.º 9.613/98 possui redação que aborda, sem dificuldade, a problemática posta em debate.
Item 34: Observe-se que a lavagem de dinheiro tem como característica a introdução, na economia, de bens, direitos ou valores oriundos de atividade ilícita e que representaram, no momento de seu resultado, um aumento do patrimônio do agente. Por isso que o projeto não inclui, nos crimes antecedentes, aqueles delitos que não representam agregação, ao patrimônio do agente, de novos bens, direitos ou valores, como é o caso da sonegação fiscal. Nesta, o núcleo do tipo constitui-se na conduta de deixar de satisfazer obrigação fiscal. Não há, em decorrência de sua prática, aumento de patrimônio com a agregação de valores novos. Há, isto sim, manutenção de patrimônio existente em decorrência do não pagamento de obrigação fiscal. Seria desarrazoado se o projeto viesse a incluir no novo tipo penal - lavagem de dinheiro - a compra, por quem não cumpriu obrigação fiscal, de títulos no mercado financeiro. É evidente que essa transação se constitui na utilização de recursos próprios que não têm origem em um ilícito[9].
Percebe-se, pois, que o objetivo do legislador, de fato, jamais foi o de punir como crime antecedente de lavagem de dinheiro a sonegação fiscal, porquanto ausente, nesse cenário, qualquer acréscimo patrimonial ao agente sonegador, que, em última análise, manteve o seu capital originário em detrimento do desconto pelo pagamento do tributo. Assim, entende-se que, qualquer posicionamento favorável à configuração do delito de sonegação fiscal como crime antecedente ao branqueamento de capitais, mostra-se não só irrazoável como também desproporcional, pois conduz ao raciocínio de que todo o sonegador de impostos responderá por lavagem de dinheiro, isto é, o delito de sonegação fiscal será, obrigatoriamente, combinado com o delito de lavagem de dinheiro.
E mais: superando a questão posta acima, em que a própria estrutura do delito de sonegação fiscal impossibilita a sua caracterização como crime antecedente à lavagem de dinheiro, importante frisar, a partir de uma segunda perspectiva, a impossibilidade de punir o sujeito que, tão somente, se utiliza do dinheiro ‘’sujo’’ sem que o submeta ao processo de lavagem e a sua reinserção na economia legal[10]. Nesse aspecto, Juarez Tavares e Antonio Martins pontuam que ‘’ imagine-se que se exigisse daquele que comprasse um pão, um jornal um sanduíche ou um café a demonstração de que seu dinheiro tivera origem lícita. A vida seria insuportável. ’’[11]
Da mesma forma, como admitir que o valor não declarado seja – somente em razão de tal fato - objeto de lavagem de dinheiro sendo que o mesmo sequer passou pelo processo de dissimulação e reinserção na economia legal? Como admitir que a conduta de não recolher impostos - em que não há a agregação de bens, direito ou valores ao patrimônio do sonegador - seja equiparada à conduta do sujeito que recebe proveitos ilícitos obtidos com o tráfico de drogas e faz a sua reinserção na economia, preenchendo perfeitamente os pressupostos do crime do art. 1º da Lei n.º 9.613/98? Em que momento se caracteriza o processo de lavagem do valor sonegado? Quando há a sua ocultação e reinserção a economia legal?
Por certo que a resposta para os questionamentos se encontra estampada na seguinte afirmação: não há como existir - típica e faticamente - crime de lavagem de dinheiro provocado pela sonegação fiscal, pois a conduta de deixar de recolher impostos, por si só, não é capaz de (i) aumentar o capital financeiro do sonegador e; (ii) o valor sonegado, passível de lavagem, eventualmente utilizado pelo agente, por si só, não configura o tipo penal do art. 1º da Lei n.º 9.613/98, sendo necessária a configuração do dolo da lavagem isto é, que o proveito ilícito seja efetivamente ‘’lavado’’ e reinserido na economia, o que não é o caso do delito de sonegação fiscal.
Essa é a conclusão que se perfilha nos estreitos limites deste ensaio, de modo que admitir que o delito de sonegação fiscal ocupe a posição de crime antecedente da lavagem de dinheiro conduz a um pensamento sem fundamento jurídico, de modo que a própria tipicidade do delito do art. 1º da Lei n.º 9.613/98 impede tal fenômeno, seja pelo fato de que a conduta de sonegar impostos não confere ao agente sonegador um acréscimo patrimonial – exigido pelo delito de lavagem de dinheiro – mas sim, apenas mantém o patrimônio anteriormente existente, ou pelo fato de que só existirá a perfectibilização do tipo penal de lavagem quando ocorrer o processo de dissimulação dos proveitos ilícitos acompanhado da sua consequente reinserção na economia. É dizer, portanto que, sob todos os ângulos, a lavagem de dinheiro desencadeada pela sonegação fiscal é plenamente atípica.
[1] Não obstante, há precedentes, especialmente emanado na Ação Penal n.º 470, que a simples ocultação de ativos ilícitos é suficiente para a consumação do crime de lavagem de dinheiro.
[2] Idem 1.
[3] HC 81611, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 10/12/2003, DJ 13-05-2005 PP-00006 EMENT VOL-02191-1 PP-00084.
[4] BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo. Crimes federais. – 9.º ed. rev. atual. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2014, p. 844.
[5] BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo. Crimes federais. – 9.º ed. rev. atual. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2014, p. 845.
[6] Nesse caso, por certo, a ação penal possui severo risco de se tornar inócua, uma vez que com o andamento simultâneo de ação penal e representação fiscal para fins penais é possível, ao fim e ao cabo, haver sentença administrativa favorável ao contribuinte decretando-se, por exemplo, a inexigibilidade do tributo devido. Na hipótese, inexistiria crime de sonegação fiscal, gerando, destarte, um desnecessário desgaste ao acusado em processo penal.
[7] ARAS, Vladimir. A investigação criminal na nova lei de lavagem de dinheiro. Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, boletim n.º 237, ago/2012.
[8] TAVARES, Juarez; MARTINS, Antonio. Lavagem de Capitais. 1ª ed.São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020, pg. 59.
[9] https://www.gov.br/coaf/pt-br/acesso-a-informacao/Institucional/a-atividade-de- supervisao/regulacao/supervisao/legislacao/exposicao-de-motivos-lei-9613-1.pdf/view.
[10] TAVARES, Juarez; MARTINS, Antonio. Lavagem de Capitais. 1ª ed.São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020, pg. 25.
[11] TAVARES, Juarez; MARTINS, Antonio. Lavagem de Capitais. 1ª ed.São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020, pg. 26.
Marcelo Augusto Rodrigues de Lemos, Doutorando em Direito pela UNISINOS/RS e Mestre em Ciências Criminais pela PUC/RS e Especialista em Direito Penal Empresarial pela PUC/RS. Advogado criminalista.
Marina Brentano Colombo, bacharela em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos; Pós-graduanda em Direito Penal Econômico pela Pontifícia Universidade Católica do Estado de Minas Gerais. Advogada criminalista.
Este artigo reflete a opinião de seus autores e não necessariamente a opinião do IBDPE.
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Cadeia de custódia da prova digital e a ilegalidade do uso de prints de tela como elementos de prova no processo penal
Por Eduardo Titão Motta
Parte da praxe policial na formação do conjunto probatório em casos criminais, as ordens de busca apreensão de materiais eletrônicos requeridas em investigações policiais e a consequente determinação acesso aos dados de celulares e outros aparelhos eletrônicos ganharam novas nuances com a aprovação da Lei Anticrime (Lei 13.964/2019) e a consequente inserção da norma dos Artigos 158-A a 158-F no Código de Processo Penal.
Trazendo os procedimentos para disciplinar a Cadeia de Custódia da prova, definida como os “procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio”[1], a norma visa à manutenção da integridade da prova, desde a coleta da evidência, dos fragmentos, da análise da cena do crime, da transferência da coleta para o laboratório, até a disciplina da identificação, controle e descarte do material coletado.
Vigorando para todos os processos já em curso, a norma complementa o já previsto nos Art. 169 e 170 do CPP (com redação de 1941) reforçando a importância do método na manipulação da prova criminal, evitando a contaminação da evidência, com a matéria pericial perpassando o processo penal e tangenciando as ciências exatas e biológicas.
Em relação à prova eletrônico-digital, informática, entendida como “toda informação de valor probatório contida ou transferida por meio eletrônico”[2] e usualmente associada às tecnologias que utilizam lógica binária, a maior preocupação que deve-se ter diz respeito à fragilidade do conjunto probatório, em face da “grande possibilidade de contaminação dos dados que se pretende coletar”[3].
Essa contaminação pode-se dar especialmente pelo manuseio inadequado dos aparelhos pelas autoridades policiais alinhadas na cadeia de custódia, comprometendo a confiabilidade da prova pela possibilidade de alteração dos dados contidos no material apreendido. Isso vai desde o acesso a registros de conversas em aplicativos de comunicação, pesquisa de histórico em mecanismos de busca, até registros de localização via GPS.
No caso do acesso a registros de mensagens em aplicativos de comunicação, a criptografia de ponta-a-ponta adotada pelos principais softwares permite que “somente o emissor e o receptor tenham as chaves que decodificam os dados”, o que inviabiliza a interceptação telemática tradicional[4], pois somente o extrato da remessa e recebimento de mensagens é acessível às autoridades legais, não seu conteúdo.
Para acessar o texto das mensagens, a saída tradicional das autoridades policiais é a requisição da quebra do sigilo dos e-mail vinculados às contas de mensagens[5], para os quais por padrão é feito o backup de mensagens regularmente (cloud storage). Quando o acesso a dados contidos na nuvem não é possível, faz-se o acesso aos dados armazenados na mídia física (aparelho celular). E é aí que a discussão sobre a cadeia de custódia se intensifica, especialmente em face da manipulação dos aparelhos a fim de apresentar a evidência em fase processual.
Com frequência o que se observa é que os dados de aparelhos apreendidos são apresentados com fotografias ou prints de tela com os dados que se deseja exibir; sejam eles o conteúdo de conversas em aplicativos, registros de histórico de navegação ou dados de trânsito por GPS. A questão reside no procedimento para coletar esses elementos visuais de prova, que pressupõe o manuseio e operação do aparelho apreendido, não garantindo a integralidade e originalidade da prova que, por isso, não pode ser admitida como válida no processo penal, por absoluta falha procedimental e metodológica.
Acerca da integralidade da prova, tem-se como necessária, para sua comprovação, que as evidências disponibilizadas estejam íntegras, com seus devidos hashes, cadeias alfanuméricas geradas matematicamente para cada evidência[6], as quais têm a finalidade de documentar a manutenção da integridade dos arquivos, ou seja, registrar que eles não foram alterados após a apreensão.
Normalmente, a hash é fornecida juntamente com a quebra disponibilizada pelos provedores no caso dedos armazenados na nuvem. No caso da mídia física, o procedimento é diferente. As medidas são normatizadas na ISO/IEC 27037:2013 (Tecnologia da Informação – Técnicas de Segurança – Diretrizes para identificação, coleta, aquisição e preservação de evidência digital) e na RFC 32271[7]. Ao receber um aparelho apreendido, a polícia científica somente faz a análise dos dados forenses após um espelhamento do aparelho por software específico, usualmente as ferramentas UFED Ultimate, UFED 4PC ou UFED Infield, da empresa israelense Cellebrite[8], com uso restrito às instituições públicas de persecução criminal.
Assim, a partir de imagens digitais (espelhamento) geradas dos aparelhos, procedendo-se a devida apresentação da prova sem alterar suas características, sem gerar novos logs e mantendo a hash, se garante a integridade dos dados no aparelho alvo com os dados que continha no momento de sua apreensão, possibilitando inclusive o refazimento da perícia.
A adoção de tais procedimentos dá a segurança que os arquivos não foram alterados por ninguém e garante a manutenção da cadeia de custódia digital, de maneira que o procedimento de manipulação dos aparelhos após sua coleta inviabiliza a prova, a tornando imprestável, por absoluta falta de confiança.
Observe-se que decisão do Superior Tribunal de Justiça, tangenciando o tema, trata justamente sobre essa confiabilidade e possibilidade de manipulação dos dados pela autoridade policial:
Esta Sexta Turma entende que é invalida a prova obtida pelo WhatsApp Web, pois "é possível, com total liberdade, o envio de novas mensagens e a exclusão de mensagens antigas (registradas antes do emparelhamento) ou recentes (registradas após), tenham elas sido enviadas pelo usuário, tenham elas sido recebidas de algum contato. Eventual exclusão de mensagem enviada (na opção "Apagar somente para Mim") ou de mensagem recebida (em qualquer caso) não deixa absolutamente nenhum vestígio, seja no aplicativo, seja no computador emparelhado, e, por conseguinte, não pode jamais ser recuperada para efeitos de prova em processo penal, tendo em vista que a própria empresa disponibilizadora do serviço, em razão da tecnologia de encriptação ponta-a-ponta, não armazena em nenhum servidor o conteúdo das conversas dos usuários" (RHC 99.735/SC, Rel. Ministra LAURITA VAZ, SEXTA TURMA, julgado em 27/11/2018, DJe 12/12/2018). 4. Agravo regimental parcialmente provido, para declarar nulas as mensagens obtidas por meio do print screen da tela da ferramenta WhatsApp Web, determinando-se o desentranhamento delas dos autos, mantendo-se as demais provas produzidas após as diligências prévias da polícia realizadas em razão da notícia anônima dos crimes. (AgRg no RHC 133.430/PE, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, 6ª Turma , DJe 26/02/2021)
Trata-se aqui de se evitar a excessiva valorização desse tipo de prova simplesmente porque apresentada, “a partir do mito da confiabilidade inquestionável das provas científicas”[9], na qual seu destinatário se convence a partir de um conteúdo técnico-científico em relação ao qual são remotas as perspectivas de erros[10].
Aqui, o método importa, sendo a “observação minuciosa de técnicas e ferramentas adequadas em todo o processo pericial fundamental para uma perícia em mídias (físicas) de armazenamento, como discos rígidos, pendrives e outros dispositivos” [11], evitando-se a seleção, supressão, ou mesmo a inserção de dados incriminadores nos aparelhos apreendidos.
Saliente-se a importância da garantia da formalidade no caso, afinal, segundo LOPES JR, esse tipo de prova acaba “por sedar os sentidos e anular o contraditório. Nestas situações, por serem obtidas ‘fora do processo’, é crucial que se demonstre de forma documentada a cadeia de custódia e toda a trajetória feita, da coleta até a inserção no processo”[12], com garantia de integralidade, higidez e método adequado.
[1] O texto é idêntico ao que trazia a Portaria nº 82/2014, do Ministério da Justiça, que disciplinava os procedimentos a serem observados acerca da cadeia de custódia da prova.
[2] DELGADO-MARTÍN, Joaquin. La prueba electrónica en el proceso penal. Diario La Ley nº 8167. Ano 34, Out. 2013.
[3] MENDES, Carlos Hélder Furtado. Tecnoinvestigação criminal: entre a proteção de dados e a infiltração por software. Salvador: JuPodivm, 2020. P.137
[4] ALVES, Gustavo André; LOURENÇO, Marcus Vinícius. Extração de Mensagens do aplicativo WhatsApp. In: JORGE, Higor Vinicius Nogueira. Tratado de Investigação Criminal Tecnológica, 2ªEd. Salvador: JusPodivum, 2021.P.164.
[5] No caso do WhatsApp, a requisição é feita por meio de sistema de solicitação próprio do Google, chamado de LERS (Law Enforcemento Request System).
[6] Hash é um identificador numérico exclusivo gerado por um algoritmo matemático para verificar se uma imagem é idêntica à mídia de origem (hash verificado). Depois que o processo de espelhamento dos dados de um aparelho apreendido é concluído, a próxima etapa é a verificação de hash para garantir que a imagem forense contenha uma cópia exata dos dados que estão sendo copiados. O primeiro hash é gerado contra a evidência e um segundo hash é gerado contra a imagem forense concluída. No final do processo de criação de imagens, as duas hashes são comparados. Se corresponderem, a imagem é verificada e garantida.
[7] BREZINSKI, Dominique; KILLALEA, Tom. RFC 3227: Guidelines for Evidence Collection and Archiving. fev. 2002. Disponível em: <https://datatracker.ietf.org/doc/html/rfc3227>.
[8] WENDT, Emerson; JORGE< Higor Nogueira. Interceptação Telemática de Contas do WhatApp (bilhetagem, extrato de mensagens) – versão 2019.4. In: JORGE, Higor Vinicius Nogueira. Tratado de Investigação Criminal Tecnológica, 2ªEd. Salvador: JusPodivum, 2021.P.164.P. 140
[9] MENDES, Carlos Hélder Furtado. Tecnoinvestigação criminal: entre a proteção de dados e a infiltração por software. Salvador: JuPodivm, 2020. P.135
[10] EBERHARDT, Marcos. Provas no Processo Penal: Análise crítica, doutrinária e jurisprudencial. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2018. P.99
[11] GALVÃO, Ricardo Kléber. Introdução à análise Forense em Redes de Computadores. São Paulo: Novatec Editora, 2019. P. 142
[12] LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal, 15ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2018. P.262
Eduardo Titão Motta é Doutorando e Mestre em Direito do Estado pela UFPR e advogado criminalista especializado em Investigação Defensiva. Sócio do Gustavo Alberine Pereira Advocacia Criminal, em Curitiba/PR.
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O confisco alargado e a inexistência de um “catálogo de crimes” na Lei n. 13.964/2019
Por Ana Beatriz da Luz
Passados mais de dois anos desde o início da vigência da Lei n. 13.964/2019, muitas das alterações instituídas pelo chamado “Pacote Anticrime” ainda permanecem nebulosas e são alvos de pertinentes questionamentos. Dentre as significativas mudanças trazidas pelo diploma legal, tem-se o acréscimo, ao Código Penal, do artigo 91-A, que instituiu novo efeito da condenação criminal, passando a autorizar, caso haja condenação por crime cuja pena máxima seja superior a 06 (seis) anos, “a perda, como produto ou proveito do crime, dos bens correspondentes à diferença entre o valor do patrimônio do condenado e aquele que seja compatível com o seu rendimento lícito”.[1]
Embora instituído apenas recentemente no ordenamento jurídico, não é de hoje que se tem defendido a necessidade de recrudescimento da intervenção penal no que se refere às medidas de combate à corrupção, direcionadas especialmente ao agravamento das consequências patrimoniais da prática delitiva, a fim de fazer frente aos “crimes do colarinho branco”. Foi justamente no contexto da Operação Lava Jato, a maior operação da história recente do país, que o Ministério Público Federal, no ano de 2016, apresentou as “10 medidas contra a corrupção”, sintetizadas no PL 4850/2016[2], apresentado na Câmara dos Deputados após grande adesão popular, com o recolhimento de duas milhões de assinaturas. À época, a introdução de uma “perda alargada” no ordenamento jurídico brasileiro foi uma das alterações propostas como mecanismo de combate à criminalidade econômica.[3]
Desde então, outras iniciativas surgiram com o mesmo propósito. Assim, a Lei n. 13.964/19, comumente chamada de Lei Anticrime, é resultado do Projeto de Lei n. 10.372/2018[4], que reuniu propostas da comissão coordenada pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, no ano de 2018, bem como do Ministério da Justiça e Segurança Pública, em 2019, chefiado, à época, pelo então Ministro Sergio Moro. O Ministro inclusive encaminhou à Câmara suas propostas legislativas, por meio do PL 882/2019[5], às quais foi atribuído o nome bastante difundido (e questionável) de “Pacote Anticrime”.[6]
Da leitura do recém criado artigo 91-A do Código Penal, chama atenção o critério quantitativo fixado pelo legislador para limitar a incidência da medida a determinadas figuras delitivas: fora estabelecido, como dito, o requisito de prévia condenação “por infrações às quais a lei comine pena máxima superior a 6 (seis) anos de reclusão”. Aqui reside o ponto nevrálgico e tema do presente estudo, tendo em vista a questionável redação legal e consequente ausência de correlação entre as finalidades da alteração legislativa e o texto efetivamente sancionado.
Inicialmente, nota-se que não há, na exposição de motivos do PL 882/2019[7] (que propôs referida delimitação), qualquer justificativa para a adoção do mencionado critério. Pode-se dizer, a priori, que a finalidade foi a de restringir o confisco alargado às figuras delitivas mais graves, estabelecendo, por isso, o parâmetro objetivo relacionado à pena cominada. Ainda assim, causa estranhamento o fato de que o confisco alargado não tenha sido condicionado à gravidade concretamente considerada, e não à previsão abstrata de aplicação de pena em referido patamar.
Outrossim, muito pertinentes são as observações existentes a respeito da desproporcionalidade da resposta sancionatória em relação à pena prevista para alguns delitos, tendo em vista a “incisiva distância entre o mínimo e o máximo estabelecidos”[8], como é o caso, ilustrativamente, da corrupção passiva, punida com reclusão de dois a doze anos. Referida circunstância evidencia de forma ainda mais clara a incongruência da medida. A fim de facilitar a compreensão, pode-se comparar, exemplificativamente, o delito de corrupção passiva com outro, bastante distinto, mas que igualmente gera proveito econômico ao agente: o delito de rufianismo. O artigo 230 do Código Penal tipifica a conduta daquele que tira “proveito da prostituição alheia, participando diretamente de seus lucros ou fazendo-se sustentar, no todo ou em parte, por quem a exerça.” O parágrafo primeiro, por sua vez, institui a figura qualificada, quando a vítima é menor de dezoito e maior de quatorze anos, prevendo, como sanção, a reclusão de três a seis anos. Assim, pela sistemática adotada na Lei n. 13.964/21, ainda que o agente seja condenado à pena máxima prevista ao gravíssimo crime de rufianismo qualificado, não será cabível o confisco alargado, mesmo que haja patrimônio incompatível com sua renda lícita. Por outro lado, a medida pode ser adotada em desfavor de condenado pelo crime de corrupção passiva, ainda que à pena mínima de 02 (dois) anos, uma vez que a sanção abstratamente cominada ultrapassa os 06 (seis) anos exigidos pelo novo artigo 91-A. E não é só: ainda tomando-se como base o crime de rufianismo, caso o delito seja praticado com violência ou grave ameaça, a figura qualificada prevista no parágrafo primeiro do artigo 215 comina pena máxima de oito anos, de forma que, aí sim, poder-se-ia aplicar o confisco alargado, embora a circunstância que qualifica o delito não tenha qualquer relação com aspectos patrimoniais. Não é possível identificar, portanto, qualquer racionalidade por trás do critério fixado no novo texto legal.
Além disso, analisando-se as justificativas apresentadas nos projetos de lei que originaram a Lei Anticrime, observa-se, de maneira geral, a vinculação das alterações propostas à finalidade de coibir crimes específicos. O PL n. 882/2019, subscrito por Sérgio Moro, aduz expressamente que “este projeto tem por meta estabelecer medidas contra a corrupção, o crime organizado e os crimes praticados com grave violência à pessoa”. Acrescenta ainda que as propostas de alteração legislativa enfrentam “os três aspectos, corrupção, organizações criminosas e crimes com violência, porque eles são interligados e interdependentes.”
O PL n. 10.372/18, por sua vez, deixa ainda mais evidente a finalidade específica que propõe ao confisco alargado, pois, diferentemente do texto promulgado, pretendia incluí-lo na Lei n. 12.850/2013, vinculado à prática dos crimes previstos em referida legislação e, portanto, com o claro intuito de coibir as organizações criminosas. Tanto é assim que na justificativa do projeto lê-se que “a constrição financeira das organizações criminosas é medida essencial para a eficaz persecução penal, retendo e decretando o perdimento dos bens e valores obtidos pela prática de infrações penais”.
Referidas circunstâncias tornam ainda mais questionáveis os motivos pelos quais o texto atualmente em vigor, que incluiu o confisco alargado no Código Penal (e não em lei específica como pretendia o PL n. 10.372/2018) não delimitou o cabimento da medida a determinadas práticas delitivas, mas somente à pena máxima abstratamente cominada ao crime objeto de prévia condenação.
Mas não é só. O PL n. 4850/2016, encabeçado pelo Ministério Público Federal, diferentemente dos demais, propôs a incidência do confisco alargado apenas no caso de condenação por delitos taxativamente previstos, como tráfico de drogas, peculato, corrupção ativa e passiva, etc. Ainda, a justificativa do projeto assevera que a introdução do instituto no ordenamento jurídico brasileiro cumpriria com “diretrizes de tratados dos quais o Brasil é signatário” e adequaria “o sistema jurídico pátrio a recomendações de fóruns internacionais voltados a coibir o crime organizado”.
Conforme explica Roberto D’Oliveira Avila, três são os tratados existentes a respeito do assunto. Inicialmente, tem-se a Convenção de Viena de 1988 que, ao tratar do tráfico de drogas, “mencionou em seu texto, diversas vezes, a importância da recuperação de ativos para o sucesso da repressão e prevenção desejadas”[9]. No parágrafo 7º do art. 5º, adotou uma medida próxima aos contornos atuais do confisco alargado, ao dispor que “cada parte considerará a possibilidade de inverter o ônus da prova com respeito à origem lícita do suposto produto ou outros bens sujeitos a confisco [...]”.[10] Disposições semelhantes são encontradas também nas Convenções de Palermo (2000) e de Mérida (2003).
Ocorre que, não sendo reproduzido na Lei n. 13.964/2019 o catálogo de crimes existente no referido Projeto de Lei, não se verifica também a coesão do texto legal com os objetivos assinalados nas citadas convenções internacionais, posto que não há vinculação do instituto aos crimes que estas visam coibir. A Convenção de Viena, como dito, estabelece o confisco como mecanismo de repressão ao tráfico de drogas, reconhecendo, por conseguinte, a necessidade de combate às organizações criminosas e lavagem de dinheiro. Por outro lado, as Convenções de Palermo e Mérida constituem, respectivamente, marcos legais no combate internacional das organizações criminosas e crimes de corrupção.
Além disso, o mesmo PL n. 4.850/16 também fala em harmonizar “a legislação brasileira com sistemas jurídicos de outros países que já preveem medidas similares”. Igualmente, porém, a redação atual destoa do que se observa em outros países a respeito do tema. Exemplificativamente, a legislação portuguesa, ao instituir o confisco alargado por meio da Lei 05/2002, vinculou expressamente o cabimento da medida à condenação prévia por determinados crimes taxativamente previstos na legislação, dispondo que
Em caso de condenação pela prática de crime referido no artigo 1.º, e para efeitos de perda de bens a favor do Estado, presume-se constituir vantagem de atividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito.[11]
Referido artigo 1º prevê algumas figuras delitivas às quais o confisco alargado estaria vinculado, como os crimes de corrupção ativa e passiva, peculato, tráfico de drogas, lavagem de dinheiro, entre outros. A esse respeito, vale observar que Roberto D’Oliveira Vieira, ao analisar o confisco alargado da perspectiva do direito comparado, pontuou a existência, em Portugal, de um “catálogo de crimes”, asseverando inclusive a importância de referida delimitação legislativa. Em suas palavras,
A avaliação da pertinência de determinado crime com o instituto da perda alargada evita arbitrariedades na decisão legislativa e permite aferir, com mais segurança, o respeito ao princípio da proporcionalidade.
Busca-se evitar, com tal controle, que o novo instrumento de confisco recaia, também, sobre a criminalidade em geral, quando o objetivo principal do confisco alargado – ao menos desde o surgimento nas Convenções de Viena, de Palermo e de Mérida e nos atos da União Europeia – sempre foi atingir apenas os produtos relacionados a crimes lucrativos praticados em contexto estranho à criminalidade clássica.[12]
Não se sustenta, no presente estudo, que havendo um catálogo de crimes estariam sanadas as relevantes questões levantadas pela doutrina em relação à implementação do confisco alargado no Brasil. Permaneceriam, ainda após a fixação de um rol taxativo de delitos, os problemas relacionados à própria violação da presunção de inocência e inversão do ônus da prova, além de lacunas relacionadas a aspectos práticos da medida, como a (im)possibilidade de utilização de cautelares reais para sua garantia e a inexistência de um standart probatório coerente e isonômico para acusação e defesa. Além disso, mesmo os motivos que justificariam a introdução do confisco alargado no ordenamento jurídico pátrio já denotam suas inúmeras incompatibilidades com os princípios que regem o processo penal brasileiro. Veja-se, exemplificativamente, que no PL n. 4.850/16 foi expressamente consignada a necessidade de instituição da medida pelo fato de que “nem todas as infrações podem ser investigadas e punidas, inclusive por força das garantias constitucionais e legais dos cidadãos”. Referida afirmação, por si só, já evidencia o intuito declarado de supressão das garantias individuais que limitam o confisco “tradicional” a um crime concretamente considerado.
Porém, é inegável que caso fosse observado o catálogo de crimes existente em legislações estrangeiras, seria possível ter critérios mais objetivos que permitissem, em algum grau, relacionar a natureza do delito objeto da condenação à probabilidade de proveniência criminosa do patrimônio excedente do condenado. Longe de adequar o confisco alargado ao princípio da presunção de inocência, seria ao menos uma limitação lógica e coerente na aplicação de um instituto seriamente questionável.
A inexistência de um catálogo de crimes, assim, deixa ainda mais evidente a necessidade de reflexão e aperfeiçoamento dos mecanismos de combate à criminalidade, pois denota não apenas um afastamento das finalidades precípuas da medida e dos tratados internacionais que supostamente a legitimariam, mas também o seu inegável apelo populista e pretensão declarada de superação de princípios basilares de um estado democrático de direitos, sob a justificativa de combate aos “crimes do colarinho branco”.
[1]BRASIL. Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm>. Acesso em: 11.04.2022.
[2]Convertido no PL n. 3855/2019, o qual atualmente aguarda a Constituição de Comissão Temporária pela Mesa, conforme informações obtidas junto à página da Câmara dos Deputados.
[3]BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 4.8850/2016. Brasília. Câmara dos Deputados, 2016. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1448689&filename=PL+3855/2019+%28N%C2%BA+Anterior:+PL+4850/2016%29>. Acesso em: 12.04.2022.
[4]BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 10.372/2018. Brasília. Câmara dos Deputados, 2018. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node0122p9w1pdprmwjgttgklarsqc38535653.node0?codteor=1666497&filename=PL+10372/2018>. Acesso em: 12.04.2022.
[5]BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 882/2019. Brasília. Câmara dos Deputados, 2019. Disponível em: < https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1712088&filename=PL+882/2019>. Acesso em: 12.04.2022.
[6]O PL n. 882/19 foi anexado ao PL n. 10.372/2018 e posteriormente convertido na Lei n. 13.964/19.
[7]BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Exposição de Motivos n. 00014/2019, de 31 de janeiro de 2019. Brasília, DF: Ministério da Justiça e Segurança Pública, 2019. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Projetos/ExpMotiv/MJ/2019/14.htm>. Acesso em: 10.04.2022.
[8]SOUZA, Luciano Anderson de. Direito Penal. v. 5. Parte especial: arts. 312 a 359-H do CP. 2 ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 158.
[9]VIEIRA, Roberto D’Oliveira. 2017. 134 f. Dissertação (Mestrado em Direito - Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2017, p. 20. Disponível em: <https://bdtd.ucb.br:8443/jspui/handle/tede/2337>. Acesso em: 11.04.2022
[10]Convenção concluída em Viena, a 20 de dezembro de 1988. Incorporada ao ordenamento pelo Decreto nº 154, de 26 de junho de 1991, após aprovação do Congresso Nacional pelo Decreto Legislativo nº 162, de 14 de junho de 1991. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decleg/1991/decretolegislativo-162-14-junho-1991-358232-textodaconvencao-pl.pdf>. Acesso em: 12.04.2022.
[11] PORTUGAL. Lei nº 5/2002. Lisboa, 11 de janeiro de 2002.Disponível em: <https://www.bportugal.pt/legislacao/lei-no-52002-de-11-de-janeiro > Acesso em: 12.04.2022.
[12]VIEIRA, Roberto D’Oliveira. op. cit., p. 97.
Ana Beatriz da Luz, advogada e especialista em Direito Penal e Processo Penal Econômico.
Este artigo reflete a opinião de seus autores e não necessariamente a opinião do IBDPE.
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Da possibilidade de realização de interrogatório virtual do réu foragido
Por Bárbara Mostachio Ferrassioli e Ronaldo dos Santos Costa
Quando a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, em data recente, declarou a impossibilidade de realização de interrogatório por videoconferência de réu foragido – o que se deu no âmbito do HC nº 640.770/SP, de relatoria do Ministro Sebastião Reis Júnior, em 15/06/2021 –, o fez de maneira excessivamente simplista e desprovida da análise criteriosa e cautelosa que o tema exige.
Isso porque se utilizou, essencialmente, do argumento rudimentar de que realizar o interrogatório virtual do acusado em situação de fuga, seria equivalente a “premiar a condição de foragido”. Limitou-se a aplicar, como se nota, o princípio geral do Direito que assinala que “ninguém pode se beneficiar da própria torpeza”, como se estivesse a solucionar simples caso de litigância de má-fé.
A partir dessa singela, e insuficiente, premissa – de estrutura muito mais política e utilitarista e muito menos técnica e democrática – concluiu-se pela inaplicabilidade do art. 220 do Código de Processo Penal, sob qualquer viés interpretativo, ao ato de interrogatório, em se tratando de réu foragido.
A decisão, contudo, parece não fornecer resposta juridicamente adequada ao debate. Talvez sirva ao propósito de agradar audiências acostumadas a festejar a supressão de garantias processuais penais daqueles que, pelo fato de responderem a uma acusação criminal, são comumente reduzidos à categoria de inimigos do Estado.
Nada obstante, a questão fulcral em torno deste debate, certamente não enfrentada pelo julgado supra referido, consiste em saber se é legítimo, ao Estado, no âmbito do processo penal, restringir a garantia constitucional da ampla defesa, condicionando o exercício do direito de autodefesa à disponibilidade da liberdade pelo cidadão. É, o direito de defesa, suscetível de barganha estatal?
A resposta a esse questionamento, desde que alinhada a um processo penal desenvolvido sobre bases democráticas e preocupado mais com as garantias do cidadão do que com a opinião pública, é, obrigatoriamente, negativa. E são várias as razões que alicerçam tal conclusão.
Por primeiro, convém rememorar que a recusa, por parte do cidadão, em dar cumprimento voluntário a uma ordem judicial de prisão contra si expedida não constitui fundamento idôneo, por si só, para considera-lo um sujeito que menospreza a aplicação da lei penal e, portanto, merece ser perseguido pelo Estado, inclusive mediante supressão de garantias fundamentais. Isso só poderia ser verdadeiro no âmbito de um direito penal de terceira velocidade, típico do funcionalismo sistêmico (em tese, inaceitável no direito penal brasileiro).
É plenamente legítima, destarte, a possibilidade de uma pessoa discutir a ordem de prisão que considera ilegal, enquanto conserva, no plano fático, o estado de liberdade que lhe foi suprimido no plano jurídico-processual. Tanto é assim que a legislação penal brasileira não tipifica a conduta de fuga (mas apenas de quem promove ou facilita a fuga de pessoa presa ou submetida a medida de segurança detentiva – art. 351, CP).
O direito de resistência à ordem de prisão, aliás, encontra-se, há muito, reconhecido no âmbito do Supremo Tribunal Federal. Recordemos, aqui, como não poderia deixar de ser, as palavras do Ministro Marco Aurélio, para quem “o simples fato de o acusado ter deixado o distrito da culpa, fugindo, não é de molde a respaldar o afastamento do direito ao relaxamento da prisão preventiva por excesso de prazo. A fuga é um direito natural dos que se sentem, por isso ou por aquilo, alvo de um ato discrepante da ordem jurídica, pouco importando a improcedência dessa visão, longe ficando de afastar o instituto do excesso de prazo” (RHC 84.851/BA. Julgado em 01/03/2005).
Nessa mesma ordem de raciocínio, mas no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, o Ministro Paulo Medina, também há longa data, afirmara que “o réu tem direito de fuga, salvo se usar de violência contra a pessoa (art. 352 do Código Penal), quando então será punido nos termos da Lei Penal e não da Lei Processual Penal. Sancionar o réu por exercer um direito é inverter o ônus da responsabilidade pela sua fuga. A responsabilidade é do Estado, que não adotou as cautelas devidas para evitar a fuga.” (HC 35997 SP, Julgado em 11/10/2005).
Significa, grosso modo, que o sujeito investigado/acusado da prática de um crime que tem sua prisão processual decretada, não possui o dever de entregar, voluntária e espontaneamente, sua liberdade ao Estado, de modo que a ausência desse comportamento ‘altruísta’ ou ‘moralmente recomendável’ não pode ser utilizada em seu desfavor, com a supressão de direitos e garantias no bojo do processo penal democrático.
Essa constatação inicial nos permite uma primeira conclusão parcial quando comparada com a questão central objeto deste escrito: se um sujeito conserva seu direito (fundamental) de impetrar ordem de habeas corpus, ou de outro modo pleitear sua liberdade, enquanto resiste ao cumprimento do mandado de prisão – e o conserva pelo simples fato de ser sujeito de direitos em um Estado Democrático de Direito –, parece certo que também conserva seu direito (fundamental) de autodefesa enquanto não efetivada a ordem de prisão, até porque pode utilizar o ato de interrogatório justamente para se apresentar ao Estado-juiz, esclarecer sua versão sobre os fatos e contestar a determinação de prisão.
Analisemos a questão, agora, sob outro importante enfoque.
É de conhecimento generalizado que, em sua redação originária, já nos idos de 1948, o Código de Processo Penal condicionava o direito de apelar ao recolhimento do réu à prisão, prevendo, em seu artigo 594 que “o réu não poderá apelar sem recolher-se à prisão, ou prestar fiança, salvo se condenado por crime de que se livre solto” e, em seu artigo 595, que “se o réu condenado fugir depois de haver apelado, será declarada deserta a apelação”.
Tais dispositivos foram revogados, respectivamente, pelo advento das Leis nº 11.719/08 e 12.403/11, que cumpriram o papel de positivar o entendimento então sedimentado no âmbito da jurisprudência dos tribunais superiores, inclusive por meio de Súmula nº 347 do Superior Tribunal de Justiça, com a seguinte redação: “o conhecimento de recurso de apelação do réu independe de sua prisão”.
A lógica motora da gradativa mudança no cenário jurisprudencial da época, que precedeu as sucessivas (e necessárias) alterações legislativas acima referidas, consistiu numa percepção, pelos integrantes das mais altas Cortes do país, tão elementar quanto cara ao processo penal: a de que a garantia, constitucional e fundamental, da ampla defesa e do contraditório – com todos os recursos e meios a ela inerentes – não pode servir de moeda de troca à efetivação da prisão processual.
Nessa ótica, condicionar o exercício do direito de defesa ao recolhimento do acusado à prisão equivale, em última análise, à criação de uma sanção, de caráter eminentemente penal, para atendimento de uma finalidade utilitarista do processo criminal. É cercear o mais, a serviço do menos.
A ratio decidendi alcançada em tal discussão, como facilmente se vê, é em tudo aplicável à questão da (im)possibilidade do interrogatório virtual do réu em estado de fuga.
Em ambas as situações, percebe-se que o Estado, no anseio de efetivar a prisão processual do indivíduo foragido – o que seria atribuição das forças policiais, não do Judiciário, diga-se – faz (indevido) uso do processo penal, coibindo o exercício de direitos que constituem a base fundante do devido processo legal, notadamente a ampla defesa e o contraditório.
Afinal, em se reconhecendo, a garantia da ampla defesa, em sua dupla face (defesa técnica e autodefesa), como uma prerrogativa jurídica essencial do devido processo legal consagrado na Constituição Federal, que ampara, indistintamente, qualquer acusado (estando ele preso, ou não) em sede de persecução penal, tem-se como inconcebível qualquer comportamento tendente a restringir o pleno exercício do direito de defesa[1], seja no plano legislativo, seja no plano judicial.
No caso do interrogatório do réu foragido, aliás, a situação é ainda mais grave, pois inexiste proibição legal do exercício do direito de autodefesa em caso de fuga do acusado. Não se trata, portanto, de conflito entre lei e Constituição, como era o caso da proibição de apelar sem recolher-se preso ou prestar fiança, mas sim de deliberada criação de óbice à efetivação de garantia constitucionalmente assegurada.
Nessa perspectiva, tudo indica que o recente, e imaturo, posicionamento do Superior Tribunal de Justiça na temática da vedação do interrogatório do réu foragido estampa verdadeiro retrocesso na seara dos direitos fundamentais alcançados com a revogação dos artigos 594 e 595 do Código de Processo Penal. É dizer, no lugar de promover meios para a materialização de princípios e garantias constitucionais, cria condições para impedir sua concretização.
Um terceiro ponto de vista é ainda possível, e recomendado, para enfrentamento da questão.
A razão de ser da proibição do interrogatório por videoconferência do réu foragido está diretamente relacionada aos efeitos da pandemia provocada pelo COVID-19, que promoveu ao status de regra os atos processuais virtuais, antes relegados à posição de exceção.
É evidente que, como toda mudança, a era da virtualização processual experimenta benefícios e, também, perdas, quando em comparação com a era dos processos físicos. Ganha-se, por exemplo, em celeridade e quantidade de julgamentos. Perde-se, por vezes, em qualidade.
O ponto é que as perdas inerentes à era digital não podem conduzir, absolutamente, à perda ou mitigação de direitos e garantias processuais penais. As formas devem, sempre, conformar-se ao direito que buscam efetivar, não o contrário.
Nessa ordem de ideias, forçoso reconhecer que a possibilidade de o réu, estando foragido, exercer regularmente seu direito de autodefesa sem ter imediatamente suprimida a sua liberdade – o que fatalmente ocorreria tivesse ele que se apresentar, pessoalmente, numa sala de audiência do edifício do fórum – é um dos tantos corolários lógicos e naturais da virtualização processual. Assim como o é a possibilidade de o Magistrado, o Promotor de Justiça e o Advogado compareceram a audiências e sessões de julgamento país afora sem saírem de suas residências.
Não se trata, pois, de avaliar se tal efeito é positivo ou negativo, pois tal análise seria meramente subjetiva e pouco produtiva. A análise neutra e imparcial da questão, como deve ser, só permite uma conclusão lógica: tecnicamente, a realização virtual das audiências, que tem sido a regra tanto em processos de réus soltos, quanto em processos de réus presos, criou condições fáticas (e físicas) para que o sujeito foragido compareça ao seu interrogatório sem ser imediatamente preso.
Vale lembrar, nessa perspectiva, que o Código de Processo Penal não veda a participação do réu foragido dos atos do processo e o artigo 185, por sua vez, preconiza o comparecimento do acusado “perante a autoridade judiciária”, na presença de seu defensor, para realização do interrogatório, nada dispondo sobre a obrigatoriedade desse comparecimento ocorrer de forma presencial.
A Constituição Federal de 1988, a seu turno, cuida de assegurar “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (art. 5º, LV). Por sua vez, a Convenção Interamericana de Direitos Humanos e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, também de envergadura constitucional (art. 5º, § 3º, CR/88), asseguram a toda pessoa acusada de um delito o direito de “dispor do tempo e dos meios necessários à preparação de sua defesa e a comunicar-se com defensor de sua escolha” (Artigo 14, 3, b). Vê-se, pois, que nenhum dos diplomas normativos promove qualquer tipo de distinção quanto ao fato de o réu encontrar-se preso, ou não.
É inegável, destarte, que, no cenário atual, a audiência virtual é meio e recurso inerente ao exercício da autodefesa, sendo irrelevante, à luz da legislação adjetiva penal, da Constituição Federal e dos tratados internacionais assinados pelo Brasil, se o acusado se encontra detido, em liberdade ou em estado fuga.
Aliás, tanto é possível a interpretação extensiva do artigo 222 do Código de Processo Penal que os interrogatórios continuaram – e continuam – acontecendo regularmente durante a pandemia e, como regra, de modo virtual.
Todas essas reflexões permitem concluir que a negativa da realização do interrogatório virtual a pretexto de “não se premiar o réu foragido”, para além de intolerável cerceamento das garantias da ampla defesa e do contraditório e do próprio direito (legítimo) de resistência, promove tratamento processual desigual sem esteio legal e transfere ao réu o ônus de suportar a deficiência do aparato estatal (Estado-polícia) em prender ou manter preso o cidadão, tratamento em tudo incompatível com os ideais democráticos orientadores do devido processo legal brasileiro.
O exercício do direito de defesa não se defere mediante barganha. Não se trata, em absoluto, de um prêmio que o Estado-juiz pode, ou não, ofertar ao acusado, a depender de seu “bom comportamento processual”. O interrogatório, que é tanto meio de defesa, quanto meio de prova, seguramente não é instrumento de efetivação da prisão processual, nem pode ser alijado do processo penal como forma de punição do acusado que se recusa a entregar voluntariamente sua liberdade ao Estado.
[1] Convém rememorar, nessa perspectiva, as precisas palavras do Ministro Celso de Mello, “o direito de audiência, de um lado, e o direito de presença do réu, de outro, esteja ele preso ou não, traduzem prerrogativas jurídicas essenciais que derivam da garantia constitucional do "due process of law" e que asseguram, por isso mesmo, ao acusado, o direito de comparecer aos atos processuais a serem realizados perante o juízo processante, ainda que situado este em local diverso daquele em que esteja custodiado o réu (...) Essa prerrogativa processual reveste-se de caráter fundamental, pois compõe o próprio estatuto constitucional do direito de defesa, enquanto complexo de princípios e de normas que amparam qualquer acusado em sede de persecução criminal.” (STF HC 93503, Julgado em 02/06/2009).
Bárbara Mostachio Ferrassioli é advogada criminalista e coordenadora do núcleo de Direito Penal do escritório Karsptein Falavinha Advocacia.
Ronaldo dos Santos Costa é advogado criminalista e sócio do escritório Gilson Bonato, Ronaldo Costa e Advogados.
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O câmbio negro das criptomoedas
Por Josias Soares
Andando pelas ruas de Ciudad Del Este, no Paraguai, é impossível não notar a presença dos cambistas, aquelas figuras com bolsas repletas de dinheiro, à plena luz do dia, despreocupados com a própria segurança.
Com eles é possível trocar quaisquer quantias de uma moeda por outra - Dólar, Guarani, Real, em minutos. As taxas são um pouco acima das oficiais, e verdade, mas têm o benefício de não se exigir nenhuma identificação de parte a parte.
É o câmbio negro, na sua forma mais pura!
Coisa parecida só se vê com as criptomoedas (que, aliás, de moeda não tem nada). Sem o dinheiro (moeda), como o conhecemos, as criptomoedas não existem porque não será possível comprá-las ou vende-las.
Se não são moedas per si, o que são as criptomoedas? É meio de troca, tão somente.
E por que se tornaram tão atrativas?
Antes, uma analogia: já ouviu falar na deepweb? Pois é, não funciona tão bem quanto a surface web. Ainda assim, há os que preferem navegar pela deepweb. Por que? Porque as comunicações ocorrem de forma horizontal (point-to-point) e assim não são rastreadas, interceptadas ou impedidas.
A mesma lógica se aplica às criptomoedas.
No Sistema Financeiro oficial toda movimentação de moeda é controlada, ao passo que o ecossistema das criptomoedas - com suas blockchain, criptografias, token’s etc – consegue existir e atuar fora do controle do Estado.
Ideologicamente, há os que digam que as criptomoedas representam a libertação do homem do controle do Estado.
Porém, as preocupações giram em torno das possibilidades da utilização das criptomoedas para fins ilícitos que vão desde a lavagem de dinheiro ao financiamento de organizações terroristas internacionais.
Analisando algumas das características das criptomoedas, vê-se inúmeros motivos para preocupação: são facilmente cambiáveis (troca-se qualquer moeda oficial por criptomoedas numa Exchange, e vice-versa); não são (facilmente) rastreáveis dentro do ecossistema (nomes são trocados por códigos, como na deepweb); são de fácil remessa para o exterior (é possível comprá-las num País e vendê-las Noutro, e vice-versa, num click e sem nenhum controle Estatal; inclusive, são capazes de driblar embargos econômicos).
É esse conjunto de atributos que atrai o interesse das pessoas. Algumas são motivadas pelo potencial de valorização, outras para fins ilícitos - uma forte evidência disso são as cifras negras, ou seja, apesar do número crescente de golpes com criptomoedas são poucas as pessoas que acionam o sistema penal para investigar, talvez pelo receio de ter que explicar a origem do dinheiro que foi parar em criptomoedas.
É evidente que esse fenômeno vem provocando reações do Estados, que não devem abrir mão do controle sobre a moeda sob pena de malferir a própria soberania.
Algumas medidas parecem viáveis, outras são dúbias.
A iniciativa de criar uma criptomoeda oficial chega a ser risível. A um porque a moeda oficial já é virtual, afinal, o dinheiro não passa de um número contábil. A dois porque o valor das criptomoedas só existe na clandestinidade, ou seja, fora do controle Estatal, e essa “marginalização do sistema financeiro” interessa tanto quanto o câmbio negro nas ruas do Paraguai.
A regulação do mercado de criptomoedas parece ser a melhor solução (senão a única), controlando as operações junto às Exchanges - ponto de contato entre o ecossistema das criptomoedas e o sistema financeiro oficial dos Estados, por onde tudo passa.
Nota-se, no plano internacional, crescente movimentação para o controle da movimentação de capitais afim de prevenir e reprimir a lavagem de dinheiro, para assim sufocar as práticas e/ou organizações ilícitas, obrigando, inclusive, os particulares a colaborarem nesse processo, como decorre dos sistemas de compliance.
Aliás, finalizando, os sistemas de compliance deverão se debruçar sobre as criptomoedas, e aqueles, por sua vez, hão de coabitar no ecossistema dessas, cedo ou tarde.
Josias Soares, advogado, palestrante e professor.
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O Acordo de Não Persecução Penal e a ampliação do alcance da justiça negociada: Agiu bem o legislador ao adequar as tendências internacionais àqueles submetidos à justiça criminal
Por PEDRO IVO VELLOSO e NINA NERY
A adoção de mecanismos consensuais para resolução de conflitos na esfera penal não é um tema novo. Os institutos de barganha têm origem anglo-saxônica que, através do plea bargaining, consolidou a possibilidade de negociação direta entre acusação e defesa. A influência da justiça negociada nos ordenamentos jurídicos pelo próprio aprimoramento das garantias do réu que, inevitavelmente, fizeram com que os processos se prolongassem no tempo.
A justiça negociada no ordenamento jurídico brasileiro
No Brasil, a Constituição Federal tratou da criação dos juizados especiais para julgamento das infrações penais de menor potencial e estabeleceu a possibilidade de transação penal, que foi regulada anos mais tarde com a edição da Lei 9.099/1995, que também incluiu a possibilidade de suspensão condicional do processo.
A iniciativa viabilizou a adoção de critérios mais simples para a resolução de casos que tratam delitos de pequena e média gravidade. Além de desafogar o Judiciário e aprimorar o ius puniedi, o consenso possibilitou a redução dos prejuízos causados pela prática criminosa, já que a reparação de danos uma das condições para a homologação do acordo.
O ANPP e a aplicação do consenso para além dos crimes de menor potencial ofensivo
A transação e a suspensão marcaram o advento da justiça penal negociada no Brasil e se caracterizaram como o teste dessa nova via reativa ao delito, que depois seria expandida para outras práticas, como a colaboração premiada, prevista na Lei 12.850/2013, e o acordo de n o persecução penal, inserido no artigo 28-A do C digo de Processo Penal (CPP) pela reforma promovida pela Lei 13.964/2019.
Enquanto colaboração pressupõe a utilidade e o interesse públicos, e está essencialmente voltada à obtenção de provas, o ANPP busca a resolução da demanda com relação ao próprio investigado, que não precisa contribuir com a identificação dos demais coautores ou das circunstâncias do crime.
Para fazer jus ao ANPP, o investigado deverá confessar a prática da infração penal, sendo que, apesar do reconhecimento da culpa, a celebração e o cumprimento do acordo não constarão de seus antecedentes criminais. O ANPP configurou uma inovação bastante relevante e ampliou aplicabilidade dos mecanismos consensuais de resolução de conflitos na esfera penal, que passaram a alcançar crimes que antes não eram abrangidos pela justiça consensual.
Enquanto a transação e a suspensão estão adstritas aos crimes de menor potencial ofensivo, o ANPP pode ser aplicado aos delitos que, desde que não praticados mediante violência ou grave ameaça, sejam apenados com pena mínima inferior a quatro anos, sem qualquer restrição quanto pena máxima cominada em lei. A previsão abriu margem para a utilização do consenso em outros delitos, dentre os quais se incluem os crimes de corrupção, peculato, fraude à licitação, tributários, contra a ordem econômica mica e contra a ordem financeira – infrações que, em sua maioria, estão caracterizadas pela ocorrência de danos materiais, que podem ser mensurados e, consequentemente, reparados.
A confissão e o direito subjetivo do réu à celebração do ANPP
No caso dos instrumentos previstos na Lei 9.099/1995, o oferecimento da proposta constitui poder-dever do Ministério Público, ou seja, presentes os requisitos e não havendo causas impeditivas, o representante ministerial deverá propor o benefício, prevalecendo o entendimento de que a celebração do acordo não constitui direito subjetivo do réu, cabendo ao órgão acusatório analisar a aplicação do instituto no caso concreto.
O ANPP reacendeu essas discussões, sendo possível encontrar vozes dissonantes quanto à natureza do instituto. É possível encontrar precedentes que reconhecem que, embora o oferecimento do ANPP seja um poder-dever do Ministério Público, também deixam claro que não se trata de um poder absoluto, discricionário e livre de qualquer controle judicial.
Por outro lado, é preciso dizer que a redação do artigo 28-A passível de críticas, notadamente no que diz respeito à necessidade de confissão do investigado para a formalização do acordo, requisito que não é exigido pelos instrumentos previstos na Lei 9.099/1995. O direito ao silêncio é princípio basilar do Estado democrático de Direito e, embora não haja proibição de renunciabilidade, surge aqui a primeira reflexão crítica na redação conferida ao dispositivo legal: a lei exige a confissão formal do crime, no entanto, renunciar ao silêncio não é o mesmo que confessar a prática do crime.
A obrigação de confessar a prática do crime gera complexos desdobramentos: a lei não traz limites para o uso dessa confissão e, diante da ausência de parâmetros legais, não é possível mensurar como seriam as consequências em caso de rescisão do acordo, ou ainda, se essa confissão poderia ser aplicada em outras searas do direito.
É possível perceber que, conquanto o ANPP revele avanços na forma como o Estado lida com a prática criminosa, tem-se que, ao exigir a confissão do acusado, o legislador dá um passo para trás, aproximando o instrumento da lógica inquisitorial, especialmente porque, nesses casos, a confissão e a fixação das condições ocorrem perante o Ministério Público, sem a intermediação do Poder Judiciário e sem a prolação de uma decisão fundamentada, preceitos basilares do processo penal garantista, que traz, dentre os seus axiomas, o princípio da jurisdicionalidade.
Conclusão
Agiu bem o legislador ao se adequar às tendências internacionais no tratamento conferido pelo Estado àqueles que são submetidos à justiça criminal, de modo que o ANPP é uma inovação salutar inserida no Código de Processo Penal brasileiro. Mais do que apenas reprimir a prática criminosa, o consenso permite a reparação dos danos, sem que, em contrapartida, sejam aumentados os riscos da estigmatização decorrente da colocação de mais um indivíduo no sistema carcerário.
A abertura do consenso para os crimes que não se enquadram no rol de delitos de menor potencial ofensivo, mas que, por outro lado, não envolvem violência ou grave ameaça, permite a resolução do caso com maior efetividade, gerando benefícios tanto para o réu, que não sofre os prejuízos decorrentes da própria submissão ao processo e de eventual condenação, quanto para o Estado e para a vítima, que têm os danos reparados já no momento incipiente do feito.
Apesar disso, a celebração dos acordos de não persecução penal deve ser sempre acompanhada da defesa, a quem cabe avaliar o cabimento desse tipo de estratégia no caso concreto, especialmente diante da previsão legal que impõe a imputado o dever de confessar para fazer jus aos benefícios da negociação. O acordo também está sujeito ao controle do Judiciário, a quem cabe avaliar o exercício desse poder-dever pelo Ministério Público que, embora detenha certa discricionariedade no exercício dessa prerrogativa, não pode se negar a oferecer a proposta de acordo de maneira injustificada.
[1] LANGER, Maximo. Plea Bargaining, Trial-Avoiding Conviction and the Global Administratization of Criminal Convictions. LANGER, Maximo. Plea Bargaining, Trial-Avoiding Conviction and the Global Administratization of Criminal Convictions. Annu. Rev. Criminol. DOI: 10.1146/annurev-criminol-032317-092255 (2019) UCLA School of Law, Public Law Research Paper No. 19-35.
[2] JUNIOR, Aury Celso. Lima. L. Direito processual penal. São Paulo: Editora Saraiva, 2021. 9786555590005. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786555590005/. Acesso em: 10 jan. 2022.
[3] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.
PEDRO IVO VELLOSO – Sócio do Figueiredo & Velloso Advogados e doutorando pela Universidade de São Paulo em Processo Penal
NINA NERY – Advogada do Figueiredo & Velloso Advogados e mestranda em direito processual penal pela Universidade de São Paulo
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Há crime na captação de clientela em anúncios virtuais e ferramentas de busca?
Por: Guilherme Brenner Lucchesi e Ivan Navarro Zonta
A competitividade do livre mercado é a força motriz do sucesso comercial. A própria Constituição da República erige a livre concorrência como princípio da ordem econômica pátria, fundada também na livre iniciativa (art. 170, IV, CR). A liberdade para concorrência, contudo, não pode ser exercida sem limites: a liberdade conferida pela Constituição não significa chancela para abuso. Por isso, no mesmo Título em que a Constituição indica a livre concorrência como princípio da ordem econômica, estão previstos também o princípio da defesa do consumidor (art. 170, V, CR) e a repressão ao "abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros" (art. 173, § 4.º, CR). Existe um equilíbrio que deve ser visado no cenário da livre concorrência comercial.
Justamente por isso, e num contexto de competitividade que se desenrola cada vez mais no plano virtual, tem-se dado atenção aos casos de aparentes abusos da liberdade de concorrência por meio da manipulação seletiva de anúncios e termos de pesquisas virtuais. Como já indicado em diversos escritos que abordaram o tema1, essa estratégia consiste na criação de anúncios "clonados" e/ou utilização seletiva de termos de pesquisa - em sistemas de consulta como o Google, Yahoo e Bing - que vinculam palavras-chave comumente associadas a determinadas marcas a anúncios publicados justamente por seus concorrentes. Em resumo, uma marca compra/cria anúncios virtuais que se assemelham e/ou utilizam palavras-chave relacionadas a uma outra marca concorrente. Assim, quando o consumidor realiza consulta de termos que normalmente remeteriam a uma determinada marca, ele se depara com anúncios de marca que compete diretamente com aquela primeira. Essa estratégia tem sido identificada como "brand bidding" ou "sequestro de anúncios".2
Como exemplos já julgados pelos Tribunais Pátrios, temos: (i) ação movida pela Empreendimentos Quetzal Comércio de Brinquedos e Papelaria Ltda. (detentora do domínio virtual "www.saciperere.com.br") contra as rés Microsoft Ltda. e Americanas.com S.A., no qual as rés foram civilmente condenadas por atos de concorrência desleal e desvio de clientela por terem vinculado o domínio da autora ao domínio da segunda ré, permitindo o acesso ao site da autora apenas por meio do domínio da segunda ré, sua concorrente direta no segmento comercial3; e (ii) a condenação da 123 Viagens e Turismo Ltda. (123 Milhas) pela utilização do termo "decolar" por meio da ferramenta Google Ads, desviando em seu favor as consultas relacionadas à concorrente Decolar.com Ltda.4
Parece haver consenso quanto à natureza abusiva de tais práticas e quanto às cabíveis consequências de natureza cível e patrimonial. Há, contudo, que se indagar acerca da possibilidade de tais fatos também constituírem crimes, sujeitando seus autores a penas criminais. Recente publicação no Migalhas indicou o possível enquadramento dessas condutas nos crimes previstos nos arts. 1895 e 1956 da lei 9.279/96, que tutelam direitos e obrigações relativos à propriedade industrial. A pergunta, porém, é mais complexa do que pode parecer em princípio, e a resposta demanda cuidados.
De fato, a lei 9.279/96 criminaliza condutas praticadas contra marcas registradas, de concorrência desleal e de desvio de clientela. Ainda, atos de "brand bidding" e "sequestro de anúncios" têm realmente sido reconhecidos como atos de concorrência desleal e desvio de clientela.7 Os casos, contudo, possuem natureza cível, de modo a ensejar consequências patrimoniais e obrigacionais, mas não responsabilidade penal. Reconhecer a ocorrência de concorrência desleal e desvio de clientela, portanto, não pressupõe afirmar a ocorrência de crime de concorrência desleal ou captação de clientela.8
Do ponto de vista do Direito Civil e Empresarial, na acirrada competição entre marcas e grandes empresas no cenário de livre concorrência, é interessante aos concorrentes/litigantes que possam contar com advertências de natureza criminal. Por vezes, a ameaça de aplicação de penas criminais surtirá mais efeitos do que a ameaça de condenação à reparação de danos na esfera cível. Por isso, grandes empresas e bancas altamente qualificadas de advocacia empresarial podem enxergar vantagens em tentar submeter essas práticas comerciais potencialmente abusivas ao campo do Direito Penal. Sendo os delitos da lei 9.279/96 crimes de iniciativa privada por via de queixa-crime (art. 199), pode-se cogitar tentativas de utilizar indevidamente o direito penal como instrumento de coação para discussões que devem permanecer na seara cível.
Assim como a livre concorrência, a proteção ao consumidor e a repressão ao abuso do poder econômico dependem de cuidadoso equilíbrio, a aplicação do Direito Penal também deve se equilibrar com os direitos fundamentais, as garantias do indivíduo e os limites ao exercício do poder punitivo estatal. A mera previsão legal de imputação de crimes de concorrência desleal e de captação de clientela, no âmbito de disputas de mercado, não deve justificar a mitigação dos limites impostos ao poder punitivo, que vinculam a responsabilização criminal à demonstração de ocorrência de conduta humana típica, antijurídica e culpável.
Salvo em casos de delitos ambientais9 - e mesmo nesses casos, sob alvo de críticas doutrinárias -, pessoas jurídicas não podem ser sujeitos ativos de crimes. Essa primeira premissa já deve ser levada em conta a fim de mitigar eventual utilização oportunista do aparato criminal em disputas comerciais: uma empresa não pode ser acusada por outra pela prática de crime de concorrência desleal.
Eventual queixa-crime deverá demonstrar, portanto, quais teriam sido as pessoas naturais que, de forma consciente e voluntária, praticaram condutas que resultaram em "brand bidding" ou "sequestro de anúncios". E mais: a peça acusatória deverá demonstrar que tais pessoas tinham ciência quanto ao método específico utilizado - v.g. associação de palavras-chave com remissão a empresas/marcas concorrentes e/ou criação de anúncios "clonados" - para realização de tais atos, sob pena de ausência de elemento subjetivo do delito. Por fim, a queixa-crime deverá demonstrar a materialidade de tais atos, com provas documentais sólidas quanto à utilização desses subterfúgios a fim de manipular anúncios digitais e resultados de pesquisas virtuais.
Obedecer a esses requisitos, que insculpem alguns dos limites mínimos aplicáveis na seara penal, não é algo fácil. Em casos de empresas cuja hierarquia interna é estratificada e que terceirizam serviços de publicidade, especialmente a virtual, não se pode simplesmente imputar genericamente a prática de tais crimes aos dirigentes e sócios-proprietários. Isso consistiria em tentativa de responsabilização objetiva absolutamente vedada na seara criminal.
Não se nega em absoluto a possibilidade de ocorrência de condutas efetivamente criminosas no âmbito da atividade empresarial competitiva. É claro que efetivas fraudes que maculem intencionalmente a reputação objetiva de marca rival e/ou fraudes deliberadamente empregadas para induzir o consumidor em erro, a título exemplificativo, podem vir a ensejar punição na seara criminal.
O que se argumenta, contudo, é que a disputa comercial entre empresas concorrentes não pode "sequestrar" as ferramentas específicas da seara penal a fim de avançar seus interesses primordialmente econômicos e de mercado. E mais: a disputa de rivais comerciais, principalmente entre aqueles que detêm alto poder econômico, não pode resultar no elastecimento dos requisitos e limites ao poder punitivo estatal. Dentro da lógica própria ao sistema penal, os direitos fundamentais do acusado frente ao poder punitivo prevalecem sobre a livre concorrência e a proteção ao consumidor, principalmente por haver sistema de proteção próprio da lei 9.279/96 mais adequado à tutela de tais interesses.
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1 Ver, por exemplo: MIGALHAS, Usar nome de concorrente no Google Ads tem consequência Civil e Penal. Migalhas, 15 fev. 2022; COSTA. Amanda Resende; BURNETT, Thaís Gladys. RIBEIRO. Ana Carolina Spina de Campos. Marcas imitativas: concorrência desleal ou mera coincidência? Migalhas, 5 out. 2021; MIGALHAS, Empresas não podem usar marca de concorrente em palavras-chave ao anunciar na internet. Migalhas, 28 mai. 2019.
2 Brand-bidding é considerada prática de concorrência desleal. Brunner Digital, set. 2021.
3 TJ/RJ, 3.ª Câmara Cível, Apelação Cível n.º 2008.001.60797, Rel. Des. Mario Assis Gonçalves, j. 7 abr. 2009.
4 TJ/SP, 2.ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Apelação Cível n.º 1014930-35.2019.8.26.0068, Rel. Des. Grava Brazil, j. 20 jul. 2021. O caso já foi comentado no Migalhas: 123 Milhas não pode usar "decolar" no Google: "carona no prestígio". Migalhas, 29 jul. 2021.
5 "Art. 189. Comete crime contra registro de marca quem: I - reproduz, sem autorização do titular, no todo ou em parte, marca registrada, ou imita-a de modo que possa induzir confusão; ou II - altera marca registrada de outrem já aposta em produto colocado no mercado. Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa."
6 "Art. 195. Comete crime de concorrência desleal quem: [...] III - emprega meio fraudulento, para desviar, em proveito próprio ou alheio, clientela de outrem; IV - usa expressão ou sinal de propaganda alheios, ou os imita, de modo a criar confusão entre os produtos ou estabelecimentos; V - usa, indevidamente, nome comercial, título de estabelecimento ou insígnia alheios ou vende, expõe ou oferece à venda ou tem em estoque produto com essas referências;"
7 A título exemplificativo, em adição aos casos já citados anteriormente: TJ/SP, 1.ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Agravo de Instrumento n.º 2066080-48.2019.8.26.0000, Rel. Des. Cesar Ciampolini, j. 22 mai. 2019; TJ/SP, 1.ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Apelação Cível n.º 1016104-20.2018.8.26.0196, Rel. Des. Fortes Barbosa, j. 22 mai. 2019.
8 Nesse sentido, os arts. 207 e 209 da Lei n.º 9.279/1996: "Art. 207. Independentemente da ação criminal, o prejudicado poderá intentar as ações cíveis que considerar cabíveis na forma do Código de Processo Civil. [...]" "Art. 209. Fica ressalvado ao prejudicado o direito de haver perdas e danos em ressarcimento de prejuízos causados por atos de violação de direitos de propriedade industrial e atos de concorrência desleal não previstos nesta Lei, tendentes a prejudicar a reputação ou os negócios alheios, a criar confusão entre estabelecimentos comerciais, industriais ou prestadores de serviço, ou entre os produtos e serviços postos no comércio."
9 Cf. arts. 2.º e 3.º da Lei n.º 9.605, de 1998.
Publicado em: https://www.migalhas.com.br/depeso/360676/ha-crime-na-captacao-de-clientela-em-anuncios-virtuais
Guilherme Brenner Lucchesi
Advogado sócio da banca Lucchesi Advocacia. Professor da Faculdade de Direito da UFPR. Doutor em Direito pela UFPR. Diretor do Instituto dos Advogados do Paraná.
Ivan Navarro Zonta
Mestrando em Direito pela UFPR. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela ABDConst. Graduado em Direito pela UFPR. Advogado sócio da Lucchesi Advocacia.
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