O Acordo de Não Persecução Penal e a ampliação do alcance da justiça negociada: Agiu bem o legislador ao adequar as tendências internacionais àqueles submetidos à justiça criminal
Por PEDRO IVO VELLOSO e NINA NERY
A adoção de mecanismos consensuais para resolução de conflitos na esfera penal não é um tema novo. Os institutos de barganha têm origem anglo-saxônica que, através do plea bargaining, consolidou a possibilidade de negociação direta entre acusação e defesa. A influência da justiça negociada nos ordenamentos jurídicos pelo próprio aprimoramento das garantias do réu que, inevitavelmente, fizeram com que os processos se prolongassem no tempo.
A justiça negociada no ordenamento jurídico brasileiro
No Brasil, a Constituição Federal tratou da criação dos juizados especiais para julgamento das infrações penais de menor potencial e estabeleceu a possibilidade de transação penal, que foi regulada anos mais tarde com a edição da Lei 9.099/1995, que também incluiu a possibilidade de suspensão condicional do processo.
A iniciativa viabilizou a adoção de critérios mais simples para a resolução de casos que tratam delitos de pequena e média gravidade. Além de desafogar o Judiciário e aprimorar o ius puniedi, o consenso possibilitou a redução dos prejuízos causados pela prática criminosa, já que a reparação de danos uma das condições para a homologação do acordo.
O ANPP e a aplicação do consenso para além dos crimes de menor potencial ofensivo
A transação e a suspensão marcaram o advento da justiça penal negociada no Brasil e se caracterizaram como o teste dessa nova via reativa ao delito, que depois seria expandida para outras práticas, como a colaboração premiada, prevista na Lei 12.850/2013, e o acordo de n o persecução penal, inserido no artigo 28-A do C digo de Processo Penal (CPP) pela reforma promovida pela Lei 13.964/2019.
Enquanto colaboração pressupõe a utilidade e o interesse públicos, e está essencialmente voltada à obtenção de provas, o ANPP busca a resolução da demanda com relação ao próprio investigado, que não precisa contribuir com a identificação dos demais coautores ou das circunstâncias do crime.
Para fazer jus ao ANPP, o investigado deverá confessar a prática da infração penal, sendo que, apesar do reconhecimento da culpa, a celebração e o cumprimento do acordo não constarão de seus antecedentes criminais. O ANPP configurou uma inovação bastante relevante e ampliou aplicabilidade dos mecanismos consensuais de resolução de conflitos na esfera penal, que passaram a alcançar crimes que antes não eram abrangidos pela justiça consensual.
Enquanto a transação e a suspensão estão adstritas aos crimes de menor potencial ofensivo, o ANPP pode ser aplicado aos delitos que, desde que não praticados mediante violência ou grave ameaça, sejam apenados com pena mínima inferior a quatro anos, sem qualquer restrição quanto pena máxima cominada em lei. A previsão abriu margem para a utilização do consenso em outros delitos, dentre os quais se incluem os crimes de corrupção, peculato, fraude à licitação, tributários, contra a ordem econômica mica e contra a ordem financeira – infrações que, em sua maioria, estão caracterizadas pela ocorrência de danos materiais, que podem ser mensurados e, consequentemente, reparados.
A confissão e o direito subjetivo do réu à celebração do ANPP
No caso dos instrumentos previstos na Lei 9.099/1995, o oferecimento da proposta constitui poder-dever do Ministério Público, ou seja, presentes os requisitos e não havendo causas impeditivas, o representante ministerial deverá propor o benefício, prevalecendo o entendimento de que a celebração do acordo não constitui direito subjetivo do réu, cabendo ao órgão acusatório analisar a aplicação do instituto no caso concreto.
O ANPP reacendeu essas discussões, sendo possível encontrar vozes dissonantes quanto à natureza do instituto. É possível encontrar precedentes que reconhecem que, embora o oferecimento do ANPP seja um poder-dever do Ministério Público, também deixam claro que não se trata de um poder absoluto, discricionário e livre de qualquer controle judicial.
Por outro lado, é preciso dizer que a redação do artigo 28-A passível de críticas, notadamente no que diz respeito à necessidade de confissão do investigado para a formalização do acordo, requisito que não é exigido pelos instrumentos previstos na Lei 9.099/1995. O direito ao silêncio é princípio basilar do Estado democrático de Direito e, embora não haja proibição de renunciabilidade, surge aqui a primeira reflexão crítica na redação conferida ao dispositivo legal: a lei exige a confissão formal do crime, no entanto, renunciar ao silêncio não é o mesmo que confessar a prática do crime.
A obrigação de confessar a prática do crime gera complexos desdobramentos: a lei não traz limites para o uso dessa confissão e, diante da ausência de parâmetros legais, não é possível mensurar como seriam as consequências em caso de rescisão do acordo, ou ainda, se essa confissão poderia ser aplicada em outras searas do direito.
É possível perceber que, conquanto o ANPP revele avanços na forma como o Estado lida com a prática criminosa, tem-se que, ao exigir a confissão do acusado, o legislador dá um passo para trás, aproximando o instrumento da lógica inquisitorial, especialmente porque, nesses casos, a confissão e a fixação das condições ocorrem perante o Ministério Público, sem a intermediação do Poder Judiciário e sem a prolação de uma decisão fundamentada, preceitos basilares do processo penal garantista, que traz, dentre os seus axiomas, o princípio da jurisdicionalidade.
Conclusão
Agiu bem o legislador ao se adequar às tendências internacionais no tratamento conferido pelo Estado àqueles que são submetidos à justiça criminal, de modo que o ANPP é uma inovação salutar inserida no Código de Processo Penal brasileiro. Mais do que apenas reprimir a prática criminosa, o consenso permite a reparação dos danos, sem que, em contrapartida, sejam aumentados os riscos da estigmatização decorrente da colocação de mais um indivíduo no sistema carcerário.
A abertura do consenso para os crimes que não se enquadram no rol de delitos de menor potencial ofensivo, mas que, por outro lado, não envolvem violência ou grave ameaça, permite a resolução do caso com maior efetividade, gerando benefícios tanto para o réu, que não sofre os prejuízos decorrentes da própria submissão ao processo e de eventual condenação, quanto para o Estado e para a vítima, que têm os danos reparados já no momento incipiente do feito.
Apesar disso, a celebração dos acordos de não persecução penal deve ser sempre acompanhada da defesa, a quem cabe avaliar o cabimento desse tipo de estratégia no caso concreto, especialmente diante da previsão legal que impõe a imputado o dever de confessar para fazer jus aos benefícios da negociação. O acordo também está sujeito ao controle do Judiciário, a quem cabe avaliar o exercício desse poder-dever pelo Ministério Público que, embora detenha certa discricionariedade no exercício dessa prerrogativa, não pode se negar a oferecer a proposta de acordo de maneira injustificada.
[1] LANGER, Maximo. Plea Bargaining, Trial-Avoiding Conviction and the Global Administratization of Criminal Convictions. LANGER, Maximo. Plea Bargaining, Trial-Avoiding Conviction and the Global Administratization of Criminal Convictions. Annu. Rev. Criminol. DOI: 10.1146/annurev-criminol-032317-092255 (2019) UCLA School of Law, Public Law Research Paper No. 19-35.
[2] JUNIOR, Aury Celso. Lima. L. Direito processual penal. São Paulo: Editora Saraiva, 2021. 9786555590005. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786555590005/. Acesso em: 10 jan. 2022.
[3] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.
PEDRO IVO VELLOSO – Sócio do Figueiredo & Velloso Advogados e doutorando pela Universidade de São Paulo em Processo Penal
NINA NERY – Advogada do Figueiredo & Velloso Advogados e mestranda em direito processual penal pela Universidade de São Paulo
Este artigo reflete a opinião de seus autores e não necessariamente a opinião do IBDPE.
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Há crime na captação de clientela em anúncios virtuais e ferramentas de busca?
Por: Guilherme Brenner Lucchesi e Ivan Navarro Zonta
A competitividade do livre mercado é a força motriz do sucesso comercial. A própria Constituição da República erige a livre concorrência como princípio da ordem econômica pátria, fundada também na livre iniciativa (art. 170, IV, CR). A liberdade para concorrência, contudo, não pode ser exercida sem limites: a liberdade conferida pela Constituição não significa chancela para abuso. Por isso, no mesmo Título em que a Constituição indica a livre concorrência como princípio da ordem econômica, estão previstos também o princípio da defesa do consumidor (art. 170, V, CR) e a repressão ao "abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros" (art. 173, § 4.º, CR). Existe um equilíbrio que deve ser visado no cenário da livre concorrência comercial.
Justamente por isso, e num contexto de competitividade que se desenrola cada vez mais no plano virtual, tem-se dado atenção aos casos de aparentes abusos da liberdade de concorrência por meio da manipulação seletiva de anúncios e termos de pesquisas virtuais. Como já indicado em diversos escritos que abordaram o tema1, essa estratégia consiste na criação de anúncios "clonados" e/ou utilização seletiva de termos de pesquisa - em sistemas de consulta como o Google, Yahoo e Bing - que vinculam palavras-chave comumente associadas a determinadas marcas a anúncios publicados justamente por seus concorrentes. Em resumo, uma marca compra/cria anúncios virtuais que se assemelham e/ou utilizam palavras-chave relacionadas a uma outra marca concorrente. Assim, quando o consumidor realiza consulta de termos que normalmente remeteriam a uma determinada marca, ele se depara com anúncios de marca que compete diretamente com aquela primeira. Essa estratégia tem sido identificada como "brand bidding" ou "sequestro de anúncios".2
Como exemplos já julgados pelos Tribunais Pátrios, temos: (i) ação movida pela Empreendimentos Quetzal Comércio de Brinquedos e Papelaria Ltda. (detentora do domínio virtual "www.saciperere.com.br") contra as rés Microsoft Ltda. e Americanas.com S.A., no qual as rés foram civilmente condenadas por atos de concorrência desleal e desvio de clientela por terem vinculado o domínio da autora ao domínio da segunda ré, permitindo o acesso ao site da autora apenas por meio do domínio da segunda ré, sua concorrente direta no segmento comercial3; e (ii) a condenação da 123 Viagens e Turismo Ltda. (123 Milhas) pela utilização do termo "decolar" por meio da ferramenta Google Ads, desviando em seu favor as consultas relacionadas à concorrente Decolar.com Ltda.4
Parece haver consenso quanto à natureza abusiva de tais práticas e quanto às cabíveis consequências de natureza cível e patrimonial. Há, contudo, que se indagar acerca da possibilidade de tais fatos também constituírem crimes, sujeitando seus autores a penas criminais. Recente publicação no Migalhas indicou o possível enquadramento dessas condutas nos crimes previstos nos arts. 1895 e 1956 da lei 9.279/96, que tutelam direitos e obrigações relativos à propriedade industrial. A pergunta, porém, é mais complexa do que pode parecer em princípio, e a resposta demanda cuidados.
De fato, a lei 9.279/96 criminaliza condutas praticadas contra marcas registradas, de concorrência desleal e de desvio de clientela. Ainda, atos de "brand bidding" e "sequestro de anúncios" têm realmente sido reconhecidos como atos de concorrência desleal e desvio de clientela.7 Os casos, contudo, possuem natureza cível, de modo a ensejar consequências patrimoniais e obrigacionais, mas não responsabilidade penal. Reconhecer a ocorrência de concorrência desleal e desvio de clientela, portanto, não pressupõe afirmar a ocorrência de crime de concorrência desleal ou captação de clientela.8
Do ponto de vista do Direito Civil e Empresarial, na acirrada competição entre marcas e grandes empresas no cenário de livre concorrência, é interessante aos concorrentes/litigantes que possam contar com advertências de natureza criminal. Por vezes, a ameaça de aplicação de penas criminais surtirá mais efeitos do que a ameaça de condenação à reparação de danos na esfera cível. Por isso, grandes empresas e bancas altamente qualificadas de advocacia empresarial podem enxergar vantagens em tentar submeter essas práticas comerciais potencialmente abusivas ao campo do Direito Penal. Sendo os delitos da lei 9.279/96 crimes de iniciativa privada por via de queixa-crime (art. 199), pode-se cogitar tentativas de utilizar indevidamente o direito penal como instrumento de coação para discussões que devem permanecer na seara cível.
Assim como a livre concorrência, a proteção ao consumidor e a repressão ao abuso do poder econômico dependem de cuidadoso equilíbrio, a aplicação do Direito Penal também deve se equilibrar com os direitos fundamentais, as garantias do indivíduo e os limites ao exercício do poder punitivo estatal. A mera previsão legal de imputação de crimes de concorrência desleal e de captação de clientela, no âmbito de disputas de mercado, não deve justificar a mitigação dos limites impostos ao poder punitivo, que vinculam a responsabilização criminal à demonstração de ocorrência de conduta humana típica, antijurídica e culpável.
Salvo em casos de delitos ambientais9 - e mesmo nesses casos, sob alvo de críticas doutrinárias -, pessoas jurídicas não podem ser sujeitos ativos de crimes. Essa primeira premissa já deve ser levada em conta a fim de mitigar eventual utilização oportunista do aparato criminal em disputas comerciais: uma empresa não pode ser acusada por outra pela prática de crime de concorrência desleal.
Eventual queixa-crime deverá demonstrar, portanto, quais teriam sido as pessoas naturais que, de forma consciente e voluntária, praticaram condutas que resultaram em "brand bidding" ou "sequestro de anúncios". E mais: a peça acusatória deverá demonstrar que tais pessoas tinham ciência quanto ao método específico utilizado - v.g. associação de palavras-chave com remissão a empresas/marcas concorrentes e/ou criação de anúncios "clonados" - para realização de tais atos, sob pena de ausência de elemento subjetivo do delito. Por fim, a queixa-crime deverá demonstrar a materialidade de tais atos, com provas documentais sólidas quanto à utilização desses subterfúgios a fim de manipular anúncios digitais e resultados de pesquisas virtuais.
Obedecer a esses requisitos, que insculpem alguns dos limites mínimos aplicáveis na seara penal, não é algo fácil. Em casos de empresas cuja hierarquia interna é estratificada e que terceirizam serviços de publicidade, especialmente a virtual, não se pode simplesmente imputar genericamente a prática de tais crimes aos dirigentes e sócios-proprietários. Isso consistiria em tentativa de responsabilização objetiva absolutamente vedada na seara criminal.
Não se nega em absoluto a possibilidade de ocorrência de condutas efetivamente criminosas no âmbito da atividade empresarial competitiva. É claro que efetivas fraudes que maculem intencionalmente a reputação objetiva de marca rival e/ou fraudes deliberadamente empregadas para induzir o consumidor em erro, a título exemplificativo, podem vir a ensejar punição na seara criminal.
O que se argumenta, contudo, é que a disputa comercial entre empresas concorrentes não pode "sequestrar" as ferramentas específicas da seara penal a fim de avançar seus interesses primordialmente econômicos e de mercado. E mais: a disputa de rivais comerciais, principalmente entre aqueles que detêm alto poder econômico, não pode resultar no elastecimento dos requisitos e limites ao poder punitivo estatal. Dentro da lógica própria ao sistema penal, os direitos fundamentais do acusado frente ao poder punitivo prevalecem sobre a livre concorrência e a proteção ao consumidor, principalmente por haver sistema de proteção próprio da lei 9.279/96 mais adequado à tutela de tais interesses.
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1 Ver, por exemplo: MIGALHAS, Usar nome de concorrente no Google Ads tem consequência Civil e Penal. Migalhas, 15 fev. 2022; COSTA. Amanda Resende; BURNETT, Thaís Gladys. RIBEIRO. Ana Carolina Spina de Campos. Marcas imitativas: concorrência desleal ou mera coincidência? Migalhas, 5 out. 2021; MIGALHAS, Empresas não podem usar marca de concorrente em palavras-chave ao anunciar na internet. Migalhas, 28 mai. 2019.
2 Brand-bidding é considerada prática de concorrência desleal. Brunner Digital, set. 2021.
3 TJ/RJ, 3.ª Câmara Cível, Apelação Cível n.º 2008.001.60797, Rel. Des. Mario Assis Gonçalves, j. 7 abr. 2009.
4 TJ/SP, 2.ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Apelação Cível n.º 1014930-35.2019.8.26.0068, Rel. Des. Grava Brazil, j. 20 jul. 2021. O caso já foi comentado no Migalhas: 123 Milhas não pode usar "decolar" no Google: "carona no prestígio". Migalhas, 29 jul. 2021.
5 "Art. 189. Comete crime contra registro de marca quem: I - reproduz, sem autorização do titular, no todo ou em parte, marca registrada, ou imita-a de modo que possa induzir confusão; ou II - altera marca registrada de outrem já aposta em produto colocado no mercado. Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa."
6 "Art. 195. Comete crime de concorrência desleal quem: [...] III - emprega meio fraudulento, para desviar, em proveito próprio ou alheio, clientela de outrem; IV - usa expressão ou sinal de propaganda alheios, ou os imita, de modo a criar confusão entre os produtos ou estabelecimentos; V - usa, indevidamente, nome comercial, título de estabelecimento ou insígnia alheios ou vende, expõe ou oferece à venda ou tem em estoque produto com essas referências;"
7 A título exemplificativo, em adição aos casos já citados anteriormente: TJ/SP, 1.ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Agravo de Instrumento n.º 2066080-48.2019.8.26.0000, Rel. Des. Cesar Ciampolini, j. 22 mai. 2019; TJ/SP, 1.ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Apelação Cível n.º 1016104-20.2018.8.26.0196, Rel. Des. Fortes Barbosa, j. 22 mai. 2019.
8 Nesse sentido, os arts. 207 e 209 da Lei n.º 9.279/1996: "Art. 207. Independentemente da ação criminal, o prejudicado poderá intentar as ações cíveis que considerar cabíveis na forma do Código de Processo Civil. [...]" "Art. 209. Fica ressalvado ao prejudicado o direito de haver perdas e danos em ressarcimento de prejuízos causados por atos de violação de direitos de propriedade industrial e atos de concorrência desleal não previstos nesta Lei, tendentes a prejudicar a reputação ou os negócios alheios, a criar confusão entre estabelecimentos comerciais, industriais ou prestadores de serviço, ou entre os produtos e serviços postos no comércio."
9 Cf. arts. 2.º e 3.º da Lei n.º 9.605, de 1998.
Publicado em: https://www.migalhas.com.br/depeso/360676/ha-crime-na-captacao-de-clientela-em-anuncios-virtuais
Guilherme Brenner Lucchesi
Advogado sócio da banca Lucchesi Advocacia. Professor da Faculdade de Direito da UFPR. Doutor em Direito pela UFPR. Diretor do Instituto dos Advogados do Paraná.
Ivan Navarro Zonta
Mestrando em Direito pela UFPR. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela ABDConst. Graduado em Direito pela UFPR. Advogado sócio da Lucchesi Advocacia.
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A Dupla Imputação ao Crime de Sonegação Fiscal (e Lavagem de Dinheiro)
Por: João Vieira Neto
Os tipos penais integrantes do plexo dos delitos de sonegação fiscal praticados contra a ordem tributária e alinhavados na Lei nº 8.137/90, à guisa de mera classificação quanto ao resultado naturalístico e consumação, têm natureza distinta, ao passo que os previstos no rol de incisos do Art. 1º perfectibilizam-se tão somente empós exaurimento das vias administrativas sancionadoras[1], portanto de essência material e com maior rigor de apenação. Já os condensados no Art. 2º descrevem resultado prescindível e a sua consumação é meramente declaratória, sendo, portanto, de natureza formal.
Tal distinção desvela nodal relevância em linha à possibilidade do advento da persecução penal; é dizer: enquanto a subsunção casuística aos previstos nos incisos do Art. 1º não se poderá ajuizar ação punitiva até o esvaziamento dos recursos fiscais, os compactados no Art. 2ª há condição de imediata judicialização da lide processual penal, inobstante abarcarem uma série de medidas despenalizadoras previstas no sistema processual pátrio, a exemplo do sursis e da transação penal, nos moldes dos artigos 76 e 89 da Lei nº 9099/95.
Ainda sob esse enfoque desjudicialização, notadamente à vigência da Lei nº 13.964/2019, o acordo de não persecução penal representa um avanço no direito penal dialogal e será plenamente aplicável nos crimes elencados no artigo primário da Lei nº 8137/90, como forma de, sem tautologia, composição entre as partes e ter uma resolução consensual sem, com isto, precisar ensejar à hodierna litigância, além de minorar os impactos, custos e excesso de ações penais propostas com viés secundário de se pressionar o contribuinte a acordar (em parcelamentos por programas de refinanciamentos) ou quitar o crédito tributário, ambos no sentido de extinguir a punibilidade.
Como forma de pacificar o entendimento jurisprudencial, o Superior Tribunal de Justiça tem um papel de excelência na interpretação das normas infraconstitucionais à luz de decisões sensíveis ao contexto legislativo, estabelecendo vinculação e norte às demais Cortes de Justiça e Regionais.
Assim, a parametrização da aplicação da norma penal-tributária reside na importância de se estabelecer limites à acusação, freios processuais e, sobretudo, criar um sentimento de segurança jurídica na aplicação da lei, à mercê do arbítrio de acusações excessivas (overchanging). Pois, como é consabido, qualquer decisão suspensiva da higidez do crédito tributário afetará diretamente a tramitação de feitos criminais (STJ - RHC 113.294/MG, 5ª T., Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, j. 13/08/2019, p. DJe 30/08/2019), se exige a individualização da conduta, com a vedação do consequencialismo persecutório e da responsabilidade objetiva (STJ – HC 243450/SP, 6ªT., Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, j. 20/06/2013, p. DJe 04/09/2013), além de divisar que a extinção da punibilidade do crime funcional precedente não tornará o delito parasitário de lavagem de dinheiro atípico (STJ – HC 207936/MG, 5ª T., Ministro JORGE MUSSI, j. 27/03/2012, p. DJe 12/04/2012), em dicção ao art. 2º, §1º, da Lei nº 9613/98, nem tampouco é necessária a condenação daquele para a configuração do delito circunscrito no art. 1º da Lei n. 9.613/98, justamente por ser autônomo (STJ - RHC 94.233/RN, 6ª T., Ministro NEFI CORDEIRO, j. 21/08/2018, p. DJe 03/09/2018).
Nessa observação orgânica, muito há de se debater e vetorizar alguns aspectos contemplativos das estruturas criminais independentes, em especial a conduta de lavagem de dinheiro em consequência ao delito de sonegação fiscal – do tributo declarado e não pago - , quase sempre indexados excessivamente nas incoativas em concurso material.
Por linha de raciocínio fundante à estrutura dessa reflexão textual, com apego à interpretação literal da regra e sem contorcionismos hermenêuticos, vê-se a hipótese conjugada do art. 2º da Lei nº 8137/90, em especial ao inciso II[2], face à modulação da conduta àquele quem dolosamente e de forma contumaz declara (o ICMS) e não quita a dívida tributária (STF – RHC 163334/SC, Pleno, Min. ROBERTO BARROSO, j. 18/09/2019, p. DJe 13.11/2020), comumente atrelada ao delito de branqueamento de capital – produto decorrente de atividade lícita empresarial – pelo órgão de acusação.
Em brilhante exposição[3], fazendo um recorte e deixar de lado o expansionismo penal, Helios Moyano e Marcelo Salomão chamaram a atenção quanto à mudança da compreensão jurisprudencial e sua aplicação no espaço/tempo, que até então era uma conduta atípica, no sentido de firmar posicionamento doutrinário em prol de impossibilitar tal aplicação retroativamente in pejus dada as “alterações jurisprudências”, com fundamento na “existência de erro de proibição”, nos moldes do art. 21 do CP.
Quanto à persecução penal, via de regra por fishing expedition[4], ressoa empós uma série de medidas invasivas (dentre elas a quebra de sigilo bancário e fiscal), a contemplação de valores creditados em conta corrente de empresa-alvo ou pessoa física-sócio, cuja predisposição ministerial é de se reportar a esses numerários como “guardados” até se criar a ficção jurídico-punitivista de sê-los “ocultados” e decorrentes do crime antecedente (da apropriação e não pagamento do tributo). Aqui enverga a celeuma.
Com respeito às regras processuais e em sinergia à impossibilidade do nen bis in idem material, a mera conservação de valores provenientes de exercício empresarial lícito, a despeito da declaração do tributo e o seu não pagamento, com a conservação em conta corrente, portanto, em tese, sob a lupa do sistema financeiro-bancário, ainda que seja com intenção de não saldar e de forma contumaz, decerto, não poderia caracterizar (também) o delito de lavagem de dinheiro na modalidade de ocultação.
Com maestria, os Professores Pierpaolo Bottini e Gustavo Badaró[5], dentro de uma lógica estruturante da interpretação do crime de lavagem de dinheiro, sinalizam a sua não consumação com o “mero usufruir do produto infracional”, sendo assim atípico.
Em verdade, a manutenção de valor decorrente de atividade lícita empresarial, ainda que parte dele viesse a servir para saldar débitos tributários (não quitados), por si só, não constitui proveito aferido pelo agente com a prática do fato típico, antijurídico e culpável (por digressão jurisprudencial) a desaguar na hipótese de enquadramento ao crime de lavagem de dinheiro.
[1] Súmula Vinculante n.º 24 STF: Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo.
[2] II - deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos;
[3] MOYANO, Helios Nógues; SALOMÃO, Marcelo Viana. In: https://www.conjur.com.br/2021-out-01/opiniao-entendimento-stf-icms-declarado-nao-pago
[4] DA ROSA, Alexandre Morais. In: https://www.conjur.com.br/2021-jul-02/limite-penal-pratica-fishing-expedition-processo-penal
[5] BOTTINI, Pierpaolo Cruz; BADARÓ, Gustavo Henrique. Lavagem de Dinheiro: aspectos penais e processuais penais. 4. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2019, p. 116.
João Vieira Neto é advogado criminalista e sócio do escritório João Vieira Neto Advocacia Criminal.
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ANPP indeferido por demora no exame deve ser reanalisado, decide STF
Para a turma, o condenado apresentou o pedido dentro do prazo estabelecido no CPP, mas não teve o direito efetivado em razão da demora na análise do pedido.
A 2ª turma do STF anulou a condenação de um homem pelo crime de falso testemunho após o arquivamento de seu pedido de Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) pela Justiça Federal de primeiro grau. A decisão foi tomada nesta terça-feira, 22, no julgamento do HC 199.180.
Acordo
No caso em análise, um homem foi condenado à pena de um ano e dois meses de reclusão, em regime inicial aberto. Após a sentença, ele requereu designação de audiência de proposta de acordo de não persecução penal, dentro do prazo estabelecido no artigo 28-A do Código de Processo Penal. O pedido foi deferido pela Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, que condicionou a realização do acordo à ausência de trânsito em julgado da condenação. Durante o andamento, contudo, a sentença transitou em julgado, e a magistrada de origem, ao constatar o ocorrido, determinou o arquivamento do pedido.
A defesa recorreu ao TRF da 4ª região e, após ter o pedido negado, acionou o STJ, que também negou o recurso. No STF, o relator, ministro Gilmar Mendes, concedeu a liminar para suspender o trânsito em julgado da condenação.
Dentro do prazo
O colegiado seguiu entendimento do relator de que o condenado apresentou o pedido de acordo dentro do prazo estabelecido no Código de Processo Penal e teve o direito reconhecido, mas a medida só não foi efetivada em razão da demora na prestação jurisdicional.
"A demora no transcorrer procedimental foi inerente ao próprio desenrolar do mecanismo de revisão decorrente dos atos estatais", observou Mendes.
Ainda segundo o relator, se o procurador tivesse oferecido o acordo quando solicitado pela defesa, não haveria ocorrido o trânsito em julgado da condenação.
"O trânsito em julgado não pode obstar a efetividade do direito do réu reconhecida pelo órgão revisional ministerial."
A turma foi unânime em anular o trânsito em julgado da condenação, suspender eventual execução da pena e determinar o retorno dos autos ao Ministério Público para consideração do entendimento firmado pela Câmara de Coordenação e Revisão e a análise dos demais requisitos exigidos para a celebração do acordo.
Processo: HC 199.180
fonte: https://www.migalhas.com.br/quentes/360300/anpp-indeferido-por-demora-no-exame-deve-ser-reanalisado-decide-stf
DA NECESSÁRIA POSSIBILIDADE DA INTIMAÇÃO JUDICIAL DAS TESTEMUNHAS DEFENSIVAS
Por: Nicole Trauczynski[1] eWanessa Assunção Ramos[2]
A partir da Constituição da República de 1988, o processo penal, cujo diploma principal é datado de 1941, deveria ter passado por uma reformulação ou ao menos por uma interpretação sistemática que fizesse efetivas as previsões ali previstas. Contudo, passados mais de trinta anos da promulgação da Constituição da República, a jurisprudência ainda apresenta dificuldades em integrar às persecuções penais as garantias que asseguram ao acusado um Processo Penal Constitucional.
Dentre diversos problemas que a doutrina tem se debruçado a tentar apresentar soluções, encontra-se a negativa de intimação judicial das testemunhas arroladas pela defesa em sede de resposta à acusação, a partir de interpretação equivocada do artigo 396-A do Código de Processo Penal. É nesse sentido que o presente artigo visa explicitar as previsões em tratados internacionais, os princípios constitucionais e demais motivos que evidenciam diferentes violações a partir da referida aplicação legal.
- O CONTRADITÓRIO E A AMPLA DEFESA NOS TRATADOS INTERNACIONAIS E NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA.
O direito de ouvir testemunhas é pautado em tratados internacionais e em previsões constitucionais. É nesse exato sentido que a Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. XI[3]), Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (art. 6, 3, ‘b’ e ‘d’[4]) e a Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 8, 2, ‘c’ e ‘f’[5]) dispõem. Ademais, a Constituição da República, especialmente em seu artigo 5º, caput e incisos LIV e LV[6], por meio dos princípios da igualdade, devido processo legal e contraditório e ampla defesa, também integram as previsões que tratam sobre a matéria.
Da mesma sorte, a doutrina é bastante enfática e clara ao afirmar que a o direito integral de defesa do acusado é parte indissolúvel do Processo Penal Constitucional. BADARÓ[7] leciona acerca da necessidade de um contraditório efetivo e pleno, com a real participação das partes (acusado e órgão acusador), concluindo que “é o que se denominou contraditório efetivo e equilibrado”. De igual forma, leciona MALAN, ensinando:
Nesse sentido, o acusado (na acepção ampla, abrangente do investigado, indiciado etc.) tem legítimo interesse em amealhar, já na fase de investigação preliminar do delito, elementos informativos que lhe sejam favoráveis – seja por ensejarem juízo de inadmissibilidade da acusação seja por influenciarem favoravelmente o convencimento do juiz na sentença[8].
Nesta toada, qualquer interpretação acerca do Código de Processo Penal, especialmente acerca do artigo 396-A do Código de Processo Penal, deve considerar as previsões amealhadas em tratados internacionais e na Constituição da República. Contudo, não é nesse sentido que a jurisprudência do Tribunal Federal Regional da 4ª Região encontra-se decidindo, conforme se pode depreender do recorte metodológico de pesquisa adotado neste estudo.
- A INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 396-A DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL PELO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO
O artigo 396-A do Código de Processo Penal prevê o conteúdo da resposta à acusação e dispõe sobre o depoimento testemunhal que nessa etapa é possível “arrolar testemunhas, qualificando-as e requerendo sua intimação, quando necessário”.
Da leitura básica do artigo, evidencia-se que é necessário arrolar as testemunhas, isto é, indicar a necessidade de ouvi-las sobre aqueles fatos, qualifica-las, ou seja, apresentar os dados que são necessários para expedição do mandado de intimação[9], e requerer a intimação quando for necessário. Também é possível constatar que não é obrigatório apresentar nenhuma justificativa (eis que não há obrigação legal da defesa técnica de justificar a necessidade de uma prova que requereu tempestivamente) para requerer a intimação, basta realizar o pedido de maneira expressa na peça de resposta à acusação. O Código de Processo Penal faculta (não impõe um ônus) à defesa em requerer ou não a intimação das testemunhas arroladas. É nesse sentido que leciona LOPES JR.: “testemunha arrolada por qualquer das partes deverá ser intimada, exceto se expressamente for dispensada a intimação”[10]. Ora, não cabe ao d. juízo, nesta etapa, valorar o referido pedido, devendo apenas operacionaliza-lo.
Importante ainda rememorar que o dispositivo analisado entrou em vigor no ano de 2008, quando ainda estava vigente o Código de Processo Civil de 1973, que previa a intimação judicial das testemunhas, independente de frustração da convocação do advogado da parte. Desta forma, os princípios constitucionais que pautam o Processo Penal Democrático estariam preservados.
Contudo, em que pese toda a argumentação acima dispendida, não são nestes moldes que está ocorrendo a interpretação do dispositivo legal pelo Tribunal Regional Federal da 4º Região, o qual, reiteradamente, tem se manifestado que as testemunhas arroladas pela defesa devem comparecer à audiência independentemente de intimação, observando-se o princípio da celeridade processual, ou que a necessidade de intimação deve ser justificada e analisada a critério do juízo competente[11].
As violações dos tratados internacionais, dispositivos constitucionais e previsão infraconstitucionais são mais latentes quando mesmo após a justificativa da necessidade de intimação o juízo competente não considera crível e indefere a intimação judicial.
É de se considerar que os princípios da ampla defesa e contraditório podem ser violados em caso de não comparecimento das testemunhas (isto porque a defesa não teria outra oportunidade de inquiri-la), tendo em vista que a prova testemunhal advinda de seus depoimentos pode ser imprescindível. Ademais, não há como sobrepor economicidade, celeridade e eficiência da administração da Justiça aos princípios constitucionais que asseguram a defesa do acusado, violando-se o princípio constitucional do devido processo legal. Ainda, os particulares não possuem meios coercitivos eficazes que obrigam as testemunhas a comparecerem perante o juízo. Destaca-se, também, o princípio da paridade de armas, que deve ser preconizado, considerando que o órgão acusador pode se utilizar a intimação judicial das testemunhas.
Por fim, destaca-se que não é possível a utilização de dispositivos do Código de Processo Civil para fundamentação da decisão que indefere o pedido de intimação judicial das testemunhas arroladas pela defesa, eis que o diploma processual civil somente pode ser aplicado subsidiariamente ao Código de Processo Penal e estas devem, ainda, serem analisadas sob o prisma constitucional, não podendo limitar o direito de defesa.
- CONCLUSÕES
O ato de arrolar testemunhas é visto como um direito do acusado[12], especialmente porque visa combater os supostos indícios de conduta delitiva que foram apontados pelo órgão acusador. Neste sentido, qualquer tentativa de supressão deste direito viola tratados internacionais, princípios constitucionais e previsões infraconstitucionais, não podendo o entendimento jurisprudencial, por mais sábio que seja e o é, limitar um direito legal amparado por outras normas de maior hierarquia, tampouco criar ônus ao exercício da ampla defesa e do contraditório representados pela advocacia criminal.
- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm, acesso em 29 ago 2021.
BRASIL. Código de Processo Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm, acesso em 29 ago 2021.
LOPES JUNIOR, Aury Celso Lima. Direito Processo Penal. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2020.
BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 7ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019
MALAN, Diogo. Investigação defensiva no processo penal. Revista Brasileira de Ciência Criminais. Vol. 96/212, p. 279-309
BRASIL. Decreto nº 678. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm, acesso em 29 ago 2021.
ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos, acesso em 29 ago 2021.
OAS. Convenção para Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Individuais. Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/expresion/showarticle.asp?artID=536&lID=4, acesso em 29 ago 2021.
PORTO ALEGRE. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Correição Parcial nº 5051844-85.2019.4.04.0000.
BRASÍLIA. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus nº 419.394/CE.
[1] Mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Direito Penal Econômico e Empresarial pela Universidad Castilla-La Mancha, Toledo/Espanha. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora de pós-graduação em diversas universidades. Coordenadora Regional do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM/PR) e do Grupo de Estudos Avançados de Direito Penal Econômico do mesmo instituto. Conselheira do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico. Organizadora da atualização da obra "Crimes contra o sistema financeiro nacional", de Manoel Pedro Pimentel. Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e das Comissões da Mulher Advogada e de Advogados Criminalistas da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção Paraná. E-mail: nicole@tkiadvogados.com.br
[2] Mestra em Direitos Humanos e Políticas Públicas pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). Vencedora do Prêmio Marcelino Champagnat por melhor desempenho acadêmico no curso de Direito em 2018. Coordenadora adjunta do Grupo de Estudos Avançados (GEA) em Crimes, Gênero e Diversidade do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Membro da Comissão da Mulher Advogada da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção Paraná. E-mail: wanessa@tkiadvogados.com.br
[3] Todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir seus direitos e deveres ou fundamento de qualquer acusação criminal contra ele.
[4] 3. O acusado tem, como mínimo, os seguintes direitos:
- b) Dispor do tempo e dos meios necessários para a preparação da sua defesa;
- d) Interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação e obter a convocação e o interrogatório as
testemunhas de defesa nas mesmas condições que as testemunhas de acusação;
[5] 2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:
- concessão ao acusado do tempo e dos meios adequados para a preparação de sua defesa;
- direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos;
[6] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
[7] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 7ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019
[8] MALAN, Diogo. Investigação defensiva no processo penal. Revista Brasileira de Ciência Criminais. Vol. 96/212, p. 279-309
[9] Como por exemplo, nome completo e endereço completo. Vide-se que não é necessário, pela previsão legal, indicar telefone ou e-mail, costume que foi adotado a partir da pandemia do coronavírus considerando a adoção da intimação por meio aplicativos de mensagens instantâneas e e-mail.
[10] LOPES JUNIOR, Aury Celso Lima. Direito Processo Penal. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2020.
[11] Como exemplo, TRF4 5051844-85.2019.4.04.0000, SÉTIMA TURMA, Relatora SALISE MONTEIRO SANCHOTENE, juntado aos autos em 18/02/2020
[12] Nesse sentido, vide-se habeas corpus nº 419.394/CE julgado pelo Superior Tribunal de Justiça.
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Overcharging em crimes tributários e a burla à súmula vinculante 24 do STF
Por: Guilherme Brenner Lucchesi e Maria Victoria Costa Nogari
A edição da súmula vinculante 24 pelo STF1 constituiu um marco importante no campo do direito penal econômico, especificamente dos delitos tributários. A partir dela, passou a ser pressuposto para a tipificação dos crimes materiais contra a ordem tributária (incisos I a IV do art. 1 da lei 8.137/90) a constituição definitiva do crédito tributário.
Até a edição da súmula vinculante, o exaurimento da esfera administrativa, culminada no lançamento definitivo do tributo, era tido por necessário para o oferecimento de denúncia ou mesmo a instauração de inquérito, discutindo-se a possibilidade de suspensão do prazo prescricional até o seu termo. Não havia entendimento consolidado a respeito de sua natureza jurídica, se condição de procedibilidade, condição objetiva de punibilidade ou hipótese sui generis de impedimento do lapso prescricional.2
A partir da aprovação da SV 24, a tipicidade dos crimes materiais contra a ordem tributária passou a depender do lançamento definitivo do tributo, de modo que qualquer conduta do agente até este momento é penalmente irrelevante. Deste modo, antes da constituição definitiva do crédito tributário é ilegal a autorização de buscas e apreensões, interceptações telefônicas, quebras de sigilos e medidas cautelares pessoais ou patrimoniais.
A inviabilidade da prática de qualquer ato da persecução penal antes do término do processo administrativo fiscal levou a Procuradoria-Geral da República a requerer a revisão da redação do preceito sumular no bojo da Reclamação 16.087/SP3. Nesta ação, o reclamante sustentava a ilegalidade da abertura de inquérito para apuração do crime de sonegação fiscal ante a ausência de lançamento definitivo do tributo. O relator, ministro Celso de Mello, não propôs a revisão da SV 24, mas deixou de aplicá-la no caso, invocando entendimento da Corte quanto à legalidade de atos de investigação praticados antes da constituição definitiva do tributo quando há a apuração de prática concomitante de outros crimes de natureza não tributária.
Antes do julgamento da Reclamação 16.087, a incidência da SV 24 também foi relativizada no HC 96.324/SP4, em que a Corte decidiu pela não concessão da ordem, tendo em vista que se apurava, além de crimes tributários, a prática de crimes de integrar organização criminosa, falsidade ideológica e lavagem de dinheiro.
Do mesmo modo, no Agravo Regimental na Reclamação 32.656/AM5, o STF decidiu pela possibilidade de instauração de persecução penal de crime contra a ordem tributária nos casos em que houver conexão com outros delitos de natureza diversa. Destacou o relator, ministro Celso de Mello, que "a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal entende não incidir o enunciado constante da súmula vinculante 24/STF naqueles casos em que, iniciada a investigação penal de eventuais delitos contra a ordem tributária, registrar-se a possibilidade de apuração de outros ilícitos criminais".
Há vários outros precedentes em que o STF mitiga a aplicação da própria orientação sumulada6. Assim, embora a SV 24 não faça qualquer ressalva quanto à sua aplicabilidade, estabelecendo apenas a atipicidade do crime material contra a ordem tributária antes da constituição definitiva do crédito, o STF (e outras Cortes do país7) vem possibilitando a persecução penal antes mesmo do lançamento definitivo do tributo quando supostamente há a prática concomitante de outros crimes de natureza não tributária.
Diante de tais precedentes -e enquanto não houver a revisão da SV 24, pretensão manifestada pela PGR na Rcl 16.087 -, a experiência cotidiana revela expediente criativo para superar a pendência de procedimento administrativo fiscal para iniciar a persecução penal: a imputação de outros crimes, não tributários, provocando concurso aparente de normas.
Explica-se: não raras vezes, a denúncia por crime tributário vem acompanhada da imputação de crimes de falsidade (ideológica e/ou material). De modo geral, o contexto fático narrado pela acusação é a apresentação de documento falso perante a autoridade fazendária para fins de redução da base de cálculo de tributo. É evidente que, em tais casos, a conduta não poderia ser sancionada cumulativamente como delito de sonegação e de falsidade.
Trata-se de clara hipótese de aplicação do critério da consunção, uma vez que a potencialidade lesiva do falso (crime-meio) se exaure no crime de reduzir ou suprimir tributo devido (crime-fim). De tal modo, a imposição de ambas as sanções culminaria na valoração repetida de um mesmo fato e consequente violação à garantia ne bis in idem. Este entendimento, aliás, é pacífico nos Tribunais Superiores8, que reiteradas vezes aplicaram o princípio da consunção entre crimes de falsidade e contra a ordem tributária, a despeito de protegerem bens jurídicos diversos - fé pública e ordem tributária, respectivamente.
Assim sendo, não há dúvida que se está diante de um desvio acusatório9 na hipótese em que se inicia a apuração da suposta prática de crimes contra a ordem tributária antes do fim do procedimento fiscal e - conferindo "verniz de legitimidade" à diametral violação da SV 24 - oferece denúncia imputando a prática de delitos de falsidade material/ideológica e de uso de documento falso, em concurso material, enquanto se aguarda o lançamento definitivo para posteriormente incluir o crime tributário.
A utilização de acusações infladas como estratégia persecutória há tempos desperta preocupação no ordenamento jurídico anglo-americano10. Esse fenômeno, denominado overcharging, consiste na prática de exasperar os fatos passíveis de enquadramento jurídico-penal, seja por meio de uma imputação com indevida pluralidade de condutas penais (horizontal overcharging), seja por meio da imputação de penas mais graves do que as que seriam cabíveis no caso (vertical overcharging)11.
Além da imputação dos delitos de falsidade e de sonegação em evidente concurso aparente de normas, nota-se que, nas hipóteses em que a persecução penal de crimes contra a ordem tributária se inicia antes do término do procedimento fiscal, comumente há também a imputação cumulativa de crimes de organização criminosa e de lavagem de dinheiro, incorrendo também em horizontal overcharging.
Em tais casos, a suspeita da prática de crimes tributários pelos sócios-administradores de determinada pessoa jurídica é tomada como indício suficiente para a imputação do crime de organização criminosa. Contudo, não se pode confundir criminalidade de empresa com empresa ilícita. Na primeira, há reunião de pessoas com finalidade lícita (exercício de atividade econômica), malgrado eventual crime seja praticado no âmbito do ente corporativo; ao passo que, na segunda, a associação de pessoas é constituída justamente para auferir lucro pela prática de infrações penais12.
Por sua vez, em relação à imputação cumulativa de crimes contra a ordem tributária e lavagem de dinheiro, tem-se que este, por si só, não autorizaria a persecução criminal antes do fim do procedimento administrativo fiscal. Isso porque, antes do lançamento definitivo do tributo, o comportamento do agente será penalmente irrelevante em razão da atipicidade do delito antecedente sem o qual o crime de lavagem de dinheiro não se consuma.
À vista do exposto, no âmbito dos delitos tributários, tem-se observado excesso no poder de acusar (overcharging). Imputa-se cumulativamente delitos que claramente não subsistiriam face à aplicação do princípio da consunção ou quanto aos quais muitas vezes não se dispõe de elementos suficientes para fundamentar a própria imputação. Isso ocorre para que o respectivo caso se enquadre na mitigação da SV 24 admitida pelo STF - i.e. quando há a apuração concomitante de crimes de natureza não tributária -, assim legitimando início da persecução penal antes do lançamento definitivo do tributo.
É certo que a mitigação do referido preceito sumular pelo próprio STF é sintomático de seus graves defeitos, dadas importantes questões dogmáticas e práticas que não foram levadas em conta no momento de sua edição13. Por isso, a aplicação da súmula acaba por ser alvo de casuísmo, gerando insegurança jurídica. Nesse sentido, a revisão da SV 24 permitiria que sua aplicação fosse mais uniforme, racional e adequada. Ao tratar adequadamente dos efeitos do encerramento do procedimento administrativo fiscal sobre a persecução dos crimes contra a ordem tributária, o STF deixaria de desrespeitar sua própria súmula casuisticamente.
Contudo, enquanto tal revisão não é feita em procedimento próprio previsto para tanto14, ao MP cabe exercer o seu poder-dever de acusar em observância à legalidade, sem desvios de finalidade e excessos que atentem diretamente contra a garantia do acusado de que a imputação contra si formulada seja minimamente adequada aos preceitos legais (e também aos sumulados).
_____
1 "Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da lei 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo".
2 Ver PSV 29 e os precedentes constitutivos da SV 24: HC 85.185, HC 85.463, HC 83.353, HC 86.120, HC 85.428 e HC 81.611.
3 STF, Rcl 16.087/SP, relator min. Celso de Mello, julg. 30 abr. 2019.
4 STF, 1.ª T., HC 96324/SP, relator min. Marco Aurélio, julg. 14 jun. 2011.
5 STF, 2.ª T., Rcl 32656/AM AgR, relator min. Celso de Mello, julg. 4 mai. 2020.
6 Cita-se: STF, 2ª T., HC 95.443, relatora min. Ellen Gracie, julg. 2 fev. 2010; STF, 1ª T., HC 108.037, Relator min. Marco Aurelio, julg. 29 nov. 2011; STF, 1.ª T., ARE 936.653, Relator min. Roberto Barroso, julg. 24 mai, 2016; e STF, 2.ª T., HC 203.760 AgR, Relator min. Nunes Marques, julg. 23 nov. 2021.
7 Em estudo empírico publicado em 2018 sobre a eficiência da súmula vinculante 24 no sistema judicial brasileiro, Tiago Bottino concluiu que em mais da metade dos casos analisados (56%) as instâncias inferiores do país (Tribunais de Justiça e TRFs) deixaram de aplicar a orientação sumulada, identificando o Supremo Tribunal Federal como responsável por esse déficit de eficiência, na medida em que não respeita a própria Súmula Vinculante que editou, criando hipóteses de mitigação. BOTTINO, Tiago. A súmula vinculante vincula? Um estudo da eficiência da Súmula Vinculante 24. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 143, p. 177-219, mai. 2018.
8 A título exemplificativo: STJ, 5.ª T., AgRg no REsp 1.347.646/MG, Relator min. Jorge Mussi, julg. 5 fev. 2013; STJ, 5.ª T., AgRg no REsp 1363618/MG, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, julg. 15 mai. 2018; STJ, 3.ª Seção, AgRg nos EAREsp 386.863/MG, Rel. Ministro Felix Fischer, julg. 22 mar. 2017; STF, 1.ª T., HC nº 84.453/PB, Relator min. Sepúlveda Pertence, julg. 17 mai. 2005; STF, Inq. 3.102/MG, Plenário, Relator min. Gilmar Mendes, julg. 25 abr. 2013.
9 A expressão é de Fauzi Hassan Choukr (Iniciação ao processo penal. Florianópolis: Empório do Direito, 2017. p. 331-33).
10 MALAN, Diogo. Processo Penal aplicado à criminalidade econômica e financeira. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 114, p. 279-320, mai./jun., 2015, p. 25.
11 ALSCHULER, Albert. The Prosecutor's Role in Plea Bargaining. University of Chicago Law Review, vol. 36, n. 1, p. 50-112, 1968. p. 85-86. Disponível aqui.
12 MALAN, Diogo. Processo Penal aplicado à criminalidade econômica e financeira. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 114, p. 279-320, mai./jun., 2015. p. 26.
13 TAFFARELLO, Rogério Fernando. Impropriedades da súmula vinculante 24 do STF e a insegurança jurídica em matéria de crimes tributários. In: FRANCO, Alberto Silva; LIRA, Rafael de Souza. Direito Penal Econômico: questões atuais. São Paulo: RT, 2011, p. 323-325; FISCHER, Douglas. Os equívocos técnico, dogmático, sistemático e lógico da Sumula Vinculante nº 24 do STF. GenJurídico, 22 jan. 2021. Disponível aqui.
14 Sobre o procedimento de revisão das Súmulas Vinculantes, explicam José Carlos Buzanello e Graziele Mariete Buzanello: "Atualmente, a técnica de revisão dos atuais preceitos sumulados de força persuasiva está prevista no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (RISTF), desde a época da criação das súmulas (artigos 102 e 103). O quórum exigido é maior do que aquele exigido para aprovação de emendas constitucionais (três quintos), o que demonstra a dificuldade para criação, revisão e cancelamento da súmula de efeitos vinculantes, com o propósito de estabilizar os julgados no tempo. Na atualidade, a revisão e o cancelamento do enunciado de súmula com efeito vinculante estão disciplinados pela Lei no 11.417/06, com aplicação subsidiária do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal." BUZANELLO, José Carlos; BUZANELLO, Graziele Mariete. Exeqüibilidade da súmula vinculante. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 44, n. 174, p. 25-33, abr./jun., 2007. p. 29.
Guilherme Brenner Lucchesi é sócio da Lucchesi Advocacia. Professor da Faculdade de Direito da UFPR. Doutor em Direito pela UFPR. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico.
Maria Victoria Costa Nogari é acadêmica de Direito da UFPR. Associada ao Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico. Estagiária da Lucchesi Advocacia.
Publicado em: https://www.migalhas.com.br/coluna/informacao-privilegiada/357732/overcharging-em-crimes-tributarios-e-a-burla-a-sv-24-do-stf
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A teoria da cegueira deliberada e sua (in)utilidade prática no Direito Penal brasileiro
Por Milena Holz Gorges
Recentemente, muito se ouviu falar acerca da teoria da cegueira deliberada no Brasil. Essa temática ganhou relevância no âmbito do Direito Penal Econômico a partir de seu uso frequente nos julgamentos da Operação “Lava Jato”, em que foi reiteradamente aplicada em substituição ou mesmo complemento ao dolo eventual. Sob essa justificativa, ela tem sido adotada para reconhecer a existência de dolo mesmo nos casos em que ausentes os fundamentos necessários à sua configuração.
A teoria da cegueira deliberada, ou willful blindess doctrine, desenvolveu-se na doutrina e jurisprudência norte-americanas a partir da premissa de que não se poderia permitir a ignorância propositada como defesa à imputação de um crime, motivo pelo qual a auto colocação em situação de ignorância deveria ter as mesmas consequências dos casos de conhecimento efetivo acerca das circunstâncias do tipo.
Segundo Ragués i Vallés, encontra-se em estado de ignorância deliberada “todo aquele que podendo e devendo conhecer determinadas circunstâncias penalmente relevantes de sua conduta, toma deliberada ou conscientemente a decisão de manter-se na ignorância com relação a elas”[1]. Para Spencer Sydow, a teoria é uma “forma de imputação objetiva criada pelo Direito anglo-saxão para preencher lacuna jurídica da interpretação restritiva do dolo nas situações em que o sujeito de um delito alega desconhecimento de fatos por desídia em investigá-los ou por criação de estratégia de nunca adquirir consciência deles”[2].
Sem entrar no mérito da dificuldade (ou impossibilidade) de transplante dessa teoria para o Direito brasileiro, tendo em vista a incompatibilidade entre os sistemas jurídico-penais americano e pátrio, uma análise mais detida acerca da aplicação da teoria da cegueira deliberada permite chegar à conclusão de que além de incompatível, ela é também desnecessária.
Isso porque muitos dos casos em que a cegueira deliberada foi aplicada para condenar os acusados poderiam ser resolvidos a partir da teoria do dolo.
O legislador brasileiro estabeleceu, nos artigos 18 e 20 do Código Penal, algumas balizas quanto à forma de imputação subjetiva e definiu mais ou menos os conceitos de dolo e culpa. A partir da descrição genérica feita pelo legislador, costuma-se afirmar que o dolo é composto por dois elementos: o conhecimento e a vontade. Porém, essa assertiva ainda se mostra insuficiente, sendo necessária a elaboração de teorias por parte da doutrina para complementar o conceito e orientar a aplicação da lei penal.
As teorias do dolo são comumente classificadas em teorias volitivas e teorias cognitivas, a depender da ênfase dada a cada um dos elementos do dolo. Seja qual for a teoria adotada, é evidente que o conhecimento é elemento central do dolo no Direito Penal brasileiro. É justamente a partir dessa premissa que surgem alguns questionamentos importantes, como, por exemplo: de que forma poderíamos enfrentar os casos de ignorância deliberada em um Direito Penal que considera o conhecimento como um elemento básico da responsabilidade? Seria aceitável que um sujeito que busca permanecer em desconhecimento se beneficie penalmente dessa circunstância?[3]
Para responder a estas perguntas é preciso, primeiramente, estabelecer que o dolo não deve ser definido como um processo mental que ocorre dentro do intelecto do sujeito. Ainda que nenhuma teoria normativo-atributiva tenha obtido êxito em fornecer categorias seguras para a imputação de conhecimento ou vontade, entende-se que os conceitos jurídicos devem ser avaliados a partir de padrões normativos, conforme ensina Claus Roxin[4]. As construções teóricas mais contemporâneas não podem ser ignoradas, tendo em vista a impossibilidade de constatação segura do conhecimento e da vontade em um sentido psicológico-descritivo[5].
Assim, sob um ponto de vista normativo-atributivo, o conhecimento não precisaria ser efetivo ou pleno, como pretende Zaffaroni[6], mas é necessário apenas que se demonstre que o agente possui um conhecimento da situação que lhe garanta domínio ou controle da execução da ação. Ainda, o conhecimento não precisa ser completo ou verificável empiricamente, mas é atribuído a partir das circunstâncias do caso concreto.
Diante desse conceito mais amplo, tem-se que aquele que tem consciência da elevada probabilidade de ilicitude de sua conduta e, mesmo diante dessa suspeita, não aprofunda seu conhecimento, de certo modo, já sabe o que espera encontrar. Ou seja, a representação de uma situação de ilicitude pelo autor já preenche o elemento cognitivo do dolo, ainda que o conhecimento não seja pleno.
A equiparação entre os casos em que o agente tem efetiva ciência dos elementos do tipo e aqueles em que há um desconhecimento deliberado tem base na culpabilidade, segundo a ideia de que esta não pode ser menor para aquele que, podendo e devendo tomar conhecimento de determinadas circunstâncias, opta pela ignorância[7].
Assim, nos casos de lavagem de dinheiro, em que o agente representa como altamente provável a ilicitude da origem dos bens, mas renuncia à tomada de conhecimento pleno, pode-se afirmar que há uma postura de conformação do sujeito com a produção do resultado.
Vale ressaltar que o desconhecimento deliberado de determinadas circunstâncias do comportamento do agente apenas pode conduzir à modalidade dolo eventual, e apenas nas situações em que o sujeito possui um conhecimento básico que seja o suficiente para permitir a imputação por dolo.
Nesse ponto, é importante destacar que há uma distinção entre os casos em que o sujeito não quer conhecer a origem delitiva dos bens, mas a representa como provável em função das circunstâncias objetivas, e os casos em que o sujeito não quer saber nada acerca dos bens, mas tampouco representa sua origem delitiva. Esse segundo caso, segundo Blanco Cordero[8], não pode estar abarcado pelo dolo, enquanto que o primeiro é um caso de dolo eventual.
A partir de relevante análise jurisprudencial realizada por Guilherme Lucchesi[9], pode-se chegar à conclusão de que há a aplicação da teoria da cegueira deliberada pelos tribunais brasileiros em, basicamente, três grupos de casos: (i) casos em que houve condenação por dolo eventual; (ii) casos em que a cegueira deliberada foi usada apenas como complemento da decisão; e (iii) casos em que houve condenação sem que estivessem presentes os requisitos para a condenação na modalidade dolosa.
Nos casos em que houve condenação por dolo eventual, aplicando-se a cegueira deliberada, verifica-se a absoluta dispensabilidade da teoria, diante da inexistência de lacunas de punibilidade a serem preenchidas. Se já estão presentes os requisitos para a imputação do crime por dolo eventual, não há necessidade de aplicação da teoria da cegueira deliberada, posto que suficientes e adequados os critérios do dolo já existentes no Direito Penal brasileiro.
Sob esse mesmo fundamento se mostra igualmente desnecessária a aplicação da teoria da cegueira deliberada apenas como reforço argumentativo.
Já o terceiro grupo de casos é o que aparenta ser mais problemático, pois cria uma nova categoria de imputação subjetiva, nunca prevista pelo legislador, que foge completamente aos parâmetros estabelecidos pelos artigos 18 e 20 do Código Penal. Pior ainda, em alguns casos, os tribunais chegaram a criar um dever de conhecimento para o autor em situações nas quais as circunstâncias não revelavam alta probabilidade de ilicitude, em absoluta distorção da teoria originária da willful blindness.
Esse uso inadequado da cegueira deliberada tem como resultado inúmeras condenações indevidas em casos de inexistência de provas suficientes a demonstrar o conhecimento mínimo exigido pela lei penal para a imputação na modalidade dolosa.
Em face da análise apresentada, pode-se perceber que o dolo tem amplo alcance como modalidade de imputação subjetiva, abrangendo desde casos de autêntica intenção, até aqueles em que o sujeito representa o risco de realização típica e se conforma com a produção do resultado. O alcance mais amplo da imputação dolosa na construção jurídico-penal brasileira permite a punibilidade de muitos dos casos que, no Direito Penal norte-americano, precisam da cegueira deliberada para que não fiquem impunes.
Portanto, em última análise, no Direito Penal brasileiro, a teoria da cegueira deliberada não parece ter nenhuma utilidade legítima, acabando por servir apenas para a punição de condutas culposas como se dolosas fossem.
Milena Holz Gorges
Acadêmica de Direito da Universidade Federal do Paraná. Membro do Grupo de Estudos Avançados em Direito Penal Econômico do IBCCrim/PR. Coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Direito Penal Econômico da UFPR.
E-mail: milenaholzgorges@hotmail.com
[1] RAGUÉS I VALLÉS, Ramón. La ignorancia deliberada en Derecho penal. Barcelona: Atelier Libros Juridicos, 2007, p. 25.
[2] SYDOW, Spencer Toth. A teoria da cegueira deliberada. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2017, p. 19
[3] RAGUÉS I VALLÈS, Ramon. Mejor no saber: sobre la doctrina de la ignorância deliberada en Derecho penal. In Revista Discusiones, v. 13, n° 2 (2013): Ignorancia deliberada y Derecho Penal, p. 12.
[4] ROXIN, Claus. Strafrecht Allgemeiner Teil. Bd. 1. Grundlagen, der Aufbau der Verbrechenslehre. – 3. Aufl. – München: Beck, 1997, p. 376-377.
[5] LUCCHESI, Guilherme Brenner. Punindo a culpa como dolo: o uso da cegueira deliberada no Brasil. 1. Ed. São Paulo: Marcial Pons, 2018, p. 144-145.
[6] Para Zaffaroni, “O dolo requer sempre conhecimento efetivo; a mera possibilidade de conhecimento (chamada “conhecimento potencial”) não pertence ao dolo. O “querer matar um homem” (dolo do tipo de homicídio do art. 121 do CP) não se confunde com a “possibilidade de conhecer que se causa a morte de um homem”, e sim com o efetivo conhecimento de que se causa a morte de um homem”. (ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. Volume 1. Parte geral. – 9. ed. rev. e atual. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 420).
[7] CALLEGARI, André Luís; WEBER, Ariel Barazzetti. Lavagem de Dinheiro. – 2. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Atlas, 2017, p. 120.
[8] BLANCO CORDERO, Isidoro. El Delito de Blanqueo de Capitales. Pamplona: Arazandi, 1997, p. 383.
[9] LUCCHESI, Guilherme Brenner. Punindo a culpa como dolo: o uso da cegueira deliberada no Brasil. 1. Ed. São Paulo: Marcial Pons, 2018, p. 174-187.
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Responsabilidade das pessoas jurídicas e a necessária implementação do sistema de compliance
Por: Gabriela Kreusch Serena[1]
Com a globalização, o advento das grandes crises econômicas e os mega escândalos financeiros, surgiu a necessidade de o Estado assumir uma função .[2] Essa nova realidade trouxe à tona o tema dos “crimes de colarinho branco”[3] ou “cifra dourada da criminalidade”[4], que agora colocam em evidência a criminalidade empresarial e corporativa enquanto núcleo do Direito Penal Econômico.
Em vista dos efeitos estrondosos que grandes escândalos financeiros causam, há um verdadeiro efeito dominó em todos os setores sociais, notadamente em decorrência da perda de credibilidade das empresas em razão da prática de crimes e a consequente perda de investimento. Os impactos que os ilícitos cometidos por empresas geraram na economia mundial impulsionaram a discussão sobre a responsabilidade penal das pessoas jurídicas, em que vigora uma pluralidade de posições acerca do tema.
Parte da doutrina, invocando o brocardo societas delinquere non potest, entende ser inadmissível a responsabilidade penal das pessoas jurídicas.[5] Por outro lado, há autores que defendem que a responsabilidade penal das pessoas jurídicas é possível e necessária[6], principalmente na proteção dos bens jurídicos difusos e supraindividuais[7]. Nesta concepção, entende-se que as condutas ilícitas praticadas pelas empresas geram uma espécie de cadeia de vitimização, em que diversos bens jurídicos são atingidos de diferentes maneiras.
No Brasil, é fundamental a análise da responsabilidade penal das pessoas jurídicas à luz da Constituição Federal de 1988, que primeiro dispôs sobre o tema. O art. 225 §3º[8] prevê a possibilidade da imposição de responsabilidade penal às pessoas jurídicas que praticarem condutas atentatórias ou lesivas aos bens jurídicos de ordem ambiental.
O art. 173, §5º, da CF, acabou por deixar uma interpretação aberta acerca dos crimes econômicos e a possibilidade de regulamentação por uma lei estrita, que até o momento não há. Segundo Salvador Netto e Souza, o sistema jurídico brasileiro possibilita a responsabilização penal das pessoas jurídicas não só pela prática de crimes ambientais, mas também pelos “atos tipificados como atentatórios à ordem econômico-financeira e nas relações de consumo”[9].
No âmbito dos crimes ambientais, a Lei n.° 9.605/98 dispõe sobre a responsabilização administrativa, civil e penal das pessoas jurídicas, quando as infrações forem cometidas por seus representantes, não excluindo a possibilidade da responsabilização das pessoas físicas enquanto coautores[10]. Em 2013, no julgamento do RE 548.181, a primeira Turma do Supremo Tribunal Federal reconheceu a possibilidade de se processar penalmente a pessoa jurídica independentemente da pessoa física. Na decisão, a Relatora Ministra Rosa Weber manifestou-se no sentido de que, para a responsabilização da pessoa jurídica, “não é necessária a demonstração de coautoria da pessoa física”[11].
A Lei n.º 12.846/2013 (Lei “Anticorrupção”) regulamenta a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a Administração Pública, nacional ou estrangeira. Apesar da ausência de responsabilização criminal, as sanções possuem caráter especialmente aflitivo[12], pouco se distinguindo de penas[13]. Dentre as severas punições estabelecidas pela Lei, cita-se a multa, a inscrição nos Cadastros Nacionais de Empresas Inidôneas e Suspensas (CEIS) e nos Cadastro Nacional de Empresas Punidas (CNEP) e a suspensão da participação de processos licitatórios.
Tais sanções administrativas podem trazer consequências nefastas às pessoas jurídicas, em razão da dificuldade na obtenção de linhas de crédito e parcelamentos tributários, além da perda de credibilidade internacional que pode incidir diretamente na queda do valor das ações da empresa (como ocorreu com a Petrobrás). Portanto, as sanções administrativas podem gerar resultados muito mais gravosos que determinadas sanções penais. Além disso, o Direito Administrativo não é regido pelas mesmas garantias que o Direito Penal e o Direito Processual Penal, o que acarreta evidente desequilíbrio na balança da equidade e justiça.
Ante as graves sanções aplicáveis às pessoas jurídicas, a Lei n.º 12.846 reafirmou a necessidade da implementação de um sistema de controle e de promoção das boas práticas empresariais. Nessa toada, ganhou destaque o compliance, concebido como “o dever de cumprir, de estar em conformidade e fazer cumprir leis, diretrizes, regulamentos internos e externos, buscando mitigar o risco atrelado à reputação e o risco legal/regulatório”[14].
A implementação do programa de compliance inclui oito pilares: (i) compromisso da alta administração; (ii) gerenciamento de risco; (iii) definição de políticas e procedimentos; (iv) treinamento e comunicação; (v) canal de denúncia; (vi) investigação; (vii) due diligence e (viii) monitoramento e auditoria. No Brasil, o “canal de denúncia” é obrigatório nas sociedades de capital aberto, as quais devem possuir meios para o recebimento de denúncias sobre questões internas ou externas. Ademais, as investigações corporativas, bem como as auditorias periódicas são mecanismos de suma relevância no exercício de averiguação dos fatos delituosos e na proteção dos interesses da companhia.
Desse modo, o compliance surge como pilar garantidor da governança corporativa para proteger a pessoa jurídica e seus acionistas contra possíveis ações lesivas perpetradas pelos executivos contratados. Além de se relacionar à criação, à implementação e à fiscalização de normas e condutas, o compliance age como uma forma de conscientização dos gestores e colaboradores a respeito dos seus deveres e obrigações legais, prevenindo riscos (o chamado compliance risk) e atribuindo a responsabilidade de vigilância a todos os integrantes das atividades empresariais.
Desse modo, a prática do compliance consiste em uma estratégia para incentivar a adoção de medidas internas nas empresas a fim de preservar a integridade tanto das pessoas jurídicas[15] quando das pessoas físicas – enquanto possíveis coautoras[16]. Ademais, vale comentar que o sistema brasileiro estabelece uma série de benefícios às pessoas jurídicas que implementam o programa de compliance, não só na disputa em procedimentos licitatórios, como por meio da isenção completa de imputação de responsabilidade em determinados casos[17].
Diante do exposto, tendo-se em conta que a possibilidade de responsabilização das pessoas jurídicas é cada vez mais aceita pela doutrina e pela jurisprudência de diversos países – especialmente pela pressão dos órgãos internacionais (v.g., OCDE) – ganha especial relevância a adoção do sistema de compliance nas empresas.
O sistema vem como uma forma de hibridização entre poder público e privado em função das normas internas de empresas,[18] as quais devem seguir os ditames da legislação pátria para prevenir, não apenas os riscos às pessoas físicas, como também à própria pessoa jurídica. Assim, as formas de autorregulação por meio do compliance têm como cerne a prevenção de riscos que podem culminar na responsabilidade da pessoa jurídica, o que consequentemente garante a sua proteção no âmbito penal, cível e administrativo.
[1] Acadêmica de direito pela UFPR. Estagiária do escritório Antonietto & Guedes de Castro e Pesquisadora acadêmica do IBDPE (Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico)
[2] VÁSQUEZ, Manuel A. Abanto. Derecho Penal Económico. Consideraciones jurídicas y económicas. Lima: Idemsa, 1997. 31-47.
[3] SUTHERLAND, Edwin H. White collar crime: the uncut version. New Haven, Londres: Yale University, 1983. p. 246.
[4] SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia radical. Rio de Janeiro: Forense, 1981. p. 10.
[5] MATUS ACUÑA, Jean Pierre. Informe sobre el proyecto de lei que establece la responsabilidad legal de las personas jurídicas em los delitos de lavado de activos, financiamiento del terrorismo y delitos de cohecho que indica, mensaje nº 018-357/. Revista Ius et Praxis, ano 15, nº 2, pp. 285-316.
[6] TIEDEMANN, Klaus. Responsabilidad penal de personas jurídicas y empresas en derecho comparado. Revista Brasileira de Ciências Criminais, 1995. p. 21.
[7] BUSTOS RAMÍREZ, Juan. Los bienes jurídicos colectivos: repercusiones de la labor legislativa de Jimenez de Asúa em el Código Penal de 1932. Revista de la Facultad de Derecho de la Universidad Complutense, Madrid, n.º 11, jun. 1986. p. 153-154.
[8] Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. § 3º As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.
[9] SALVADOR NETTO, Alamiro Velludo; SOUZA, Luciano Anderson de. Comentários à Lei de Crimes Ambientais. São Paulo: Quartier Latin, 2009. p. 90-92.
[10] Art. 3º. As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente, conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade. Parágrafo único. A responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, coautoras ou partícipes do mesmo fato.
[11] STF, 1.ª T., RE 548181, Relatora Min. Rosa Weber, j. 6 ago. 2013.
[12] GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de direito administrativo. Tradução de Arnaldo Setti. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p. 87.
[13] Idem.
[14] COIMBRA, Marcelo de Aguiar; MANZI, Vanessa Alessi. Manual de compliance: preservando a boa governança e a integridade das organizações. São Paulo: Atlas, 2010. p. 2.
[15] SILVEIRA, Renato de Mello Jorge; SAAD-DINIZ, Eduardo. Compliance, direito penal e lei anticorrupção. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 132.
[16] NÍETO MARTÍN, Adán. El derecho penal económico en la era compliance. Valencia: Tirant lo Blanch, 2013, p. 10.
[17] GALÁN MUÑOZ, Alfonso. Fundamentos y límites de la responsabilidad penal de las personas jurídicas tras la reforma de la lo 1/2015. Valencia: Tirant lo Blanch, 2017. p. 119.
[18] NÍETO MARTÍN, Adán. El Derecho Penal Económico En La Era Compliance. Valencia: Tirant lo Blanch, 2013, p. 13-14
Este artigo reflete a opinião de seus autores e não necessariamente a opinião do IBDPE.
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REFLEXÕES PRÁTICAS SOBRE PROGRAMAS DE COMPLIANCE APLICADOS ÀS SOCIEDADES ANÔNIMAS DE FUTEBOL (SAF):
Por: Augusto Cesar Piaskoski* e José Laurindo de Souza Netto**
Em 9 de agosto de 2021, foi publicada a Lei n.º 14.193/2021, que permitiu que clubes de futebol constituídos a partir do modelo de associação civil sem fins lucrativos, ou sociedades empresárias dedicadas ao fomento e à prática do futebol, pudessem optar por uma nova estruturação societária, definida pela Lei como “Sociedade Anônima de Futebol” - (SAF).
A nova estrutura societária visa, entre outras finalidades, a estabelecer mecanismos de governança mais eficazes para o futebol brasileiro, sobretudo naquilo que diz respeito às medidas de transparência e regras para responsabilização de dirigentes por eventuais irregularidades praticadas no exercício de cada gestão, além de criar uma série normas gerais voltadas aos procedimentos de constituição, governança, controle e formas de financiamento da atividade futebolística[1].
Em termos de gestão, a Lei promove medidas de incentivo a reorganização e reestruturação financeira do clube, ou pessoa jurídica original, que busque aderir ao formato da SAF (Seção IV da Lei n.º 14.193/2021), além de dedicar uma seção inteira à previsão de regras de governança que deverão ser observadas pelas SAFs (Seção III).
Dentre os mecanismos de governança elencados pela Seção III da Lei n.º 14.193/2021, merecem especial destaque aquelas previsões contidas nos art. 4º, 5º, 6º e 7º da Lei, que tratam de situações de conflito de interesse envolvendo membros que integram os órgãos de vértice das SAFs (acionistas, administradores e demais integrantes da cúpula diretiva, ou pessoas jurídicas envolvidas), de modo a limitar a atuação e participação dos sujeitos que possuam qualquer relação conflituosa com a SAF.
Além disso, o art. 8º da Lei prevê uma série de disposições voltadas a políticas de transparência, que obriga a SAF a manter informações atualizadas no seu sítio eletrônico sobre estatutos sociais, atas de assembleias gerais, composição de dados biográficos dos membros da cúpula diretiva, assim como relatórios administrativos acerca dos negócios sociais da SAF.
Ainda, para além das previsões legais feitas pela Lei n.º 14.193/2021, os mecanismos de governança corporativa que serão desenvolvidos internamente pelas SAFs também deverão observar as particularidades do novo modelo jurídico de sociedade por ações, que embora seja regido subsidiariamente pela Lei n.º 6.404/76 (art. 1º, da Lei n.º 14.193/2021), possui natureza e finalidade bastante distinta dos modelos usuais de sociedades por ações.
Por isso, embora pareça adequado atribuir certa semelhança entre os modelos de programas de compliance aplicados às S.A e às SAFs, sobretudo em razão da semelhança organizacional existente entre ambas às instituições, importa ressaltar que a lógica que move o modelo de negócio de cada sociedade – e consequentemente os riscos que serão gerados - não são os mesmos, o que resultará em uma visão distinta para estruturação dos pilares e ferramentas do programa.
A título exemplificativo, em um modelo hipotético de S.A, cuja atividade tenha por principal finalidade a obtenção de lucro, o acionista não participa da administração da empresa e possui responsabilidade limitada a parcela de capital investido, enquanto a reponsabilidade pela tomada de decisões fica a cargo do administrador. Por isso, a eventual situação conflituosa gerada entre esses indivíduos que integram os órgãos de vértice da sociedade empresária no momento da tomada de decisões poderá decorrer da divergência de interesses entre detentores do capital (acionistas) e detentores do controle do capital (administradores). Nesse caso, a adoção dos mecanismos de governança corporativa servirá, dentre outras finalidades, para: (i) atenuar os chamados “conflitos de agência”[2] entre acionistas e administradores; (ii) otimizar a imagem da empresa perante seus stakeholders; e (iii) orientar a atuação da empresa na busca da obtenção do lucro.
Diferente do que ocorre nesse modelo de sociedade por ações, a atuação da Sociedade Anônima de Futebol não pode – e nem deve - servir aos interesses financeiros dos acionistas e stakeholders, mas sim à prática desportiva e a conquista de títulos para a SAF.
Além disso, para além dos interesses existentes entre acionistas e administradores, também deverão ser considerados os interesses dos torcedores do time, que não devem ser vistos como meros consumidores da empresa, mas como sujeitos interessados na boa gestão e no melhor desempenho das atividades praticadas pela SAF[3].
Por isso é que a implementação dos mecanismos de governança e dos programas de integridade e de compliance nas SAFs deverão ser pensados e desenvolvidos para o fim de atender as particularidades do novo modelo societário de sociedade por ações, que demandará da alta gestão e do setor de compliance o comprometimento em identificar e tratar os principais riscos a que a SAF está sujeita.
Para isso, é claro, deverão ser observadas algumas etapas e mecanismos indispensáveis para a efetiva implementação de um programa de compliance, quais sejam: (i) o levantamento, identificação e gestão dos riscos; (ii) a criação de um Código de Conduta interno com às diretrizes normativas e regras vigentes para a SAF e seus colaboradores; (iii) o treinamento e aperfeiçoamento da formação dos funcionários e colaboradores sobre as diretrizes estabelecidas no Código de Conduta e legislações aplicadas à SAF; (iv) a criação de canais de comunicação e de denúncias de irregularidades; (v) a criação de ferramentas de investigação interna e aplicação de sanções, quando necessárias.
Por fim, a reflexão sobre as melhores estratégias que deverão ser adotadas para o desenvolvimento dos mecanismos internos de integridade deverá considerar a postura que a SAF pretende assumir perante seus stakeholders e torcedores, especialmente naquilo que diz respeito à adoção de ferramentas que permitam alcançar o melhor desempenho da prática desportiva e a implementação de mecanismos de boa gestão baseados na ética e na cultura de integridade.
Referências bibliográficas
[1] BRASIL. Lei n.º 14.193, de 6 de agosto de 2021. Diário Oficial da União: Seção 1, Brasília/DF, Edição 149, p. 3, 09/08/2021.
[2] CHAMELETTE, Mariana. “Compliance como ferramenta para boas práticas de gestão em entidades desportivas”. Coluna Jus Desportiva do IBDD. Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD), São Paulo, 2020. Disponível em: https://ibdd.com.br/compliance-como-ferramenta-para-boas-praticas-de-gestao-em-entidades-desportivas/.
[3] JENSEN, Michael; MECKLING, Willian. Theory of the firm: managerial behavior, agency cost, and ownership structure. Journal os Financial Economics, 1976.
ANDRADE, Adriana; ROSSETTI, José Paschoal. Governança corporativa. 4. ed., São Paulo: Atlas, 2009.
CBF. Programa de Compliance da CBF recebe premiação internacional, 2019. Disponível em: < https://www.cbf.com.br/a-cbf/informes/index/programa-de-compliance-da-cbf-recebe-premiacao-internacional>.
CORITIBA FOOTBALL CLUB. Boas práticas: assim como o Coritiba com o Conduta Coxa-Branca, empresas e entidades esportivas criam rating do esporte visando boas práticas de gestão, 2021. Disponível em: < https://www.coritiba.com.br/artigo/30864/boas_praticas>.
DARNACUELLETA I GARDELLA, M. Mercè. Autorregulación y Derecho Público: la Autorregulación Regulada. Barcelona/Madrid: Marcial Pons, 2005.
ESTEVE PARDO, José. Autorregulación – Génesis y Efectos. Navarra: Arazandi, 2002.
FIFA. FIFA Code of Ethics, 2012 edition. Disponível em: < https://digitalhub.fifa.com/m/3ab4886d076e1be4/original/qyjyegahoannfhfumb1g-pdf.pdf>.
GUARAGNI, Fábio André. “Princípio da confiança no Direito Penal como argumento em favor de órgãos empresariais em posição de comando e compliance: relações e possibilidades”. In: GUARAGNI, Fábio André e BUSATO, Paulo Cesar (coord.). DAVID, Décio Franco et al. (org.). Compliance e Direito Penal. São Paulo: Atlas, 2016.
JÚNIOR, Filipa Marques; MEDEIROS, João. “A elaboração de programas de compliance”. In: SOUSA MENDES, Paulo de; PALMA, Maria Fernanda; SILVA DIAS, Augusto. Estudos sobre Law Enforcement, Compliance e Direito Penal. Lisboa: Almedina, 2018.
MILLER, Geoffrey Parsons. The Law of Governance, Risk Management and Compliance. New York: Wolters Kluwer, 2017.
PIZARRO, Sebastião Nóbrega. Manual de Compliance, Nova Causa Edições Jurídicas, 2016.
SARAIVA, Renata Machado. Criminal Compliance como instrumento de tutela ambiental: a propósito da responsabilidade penal das empresas. São Paulo: LiberArs, 2018.
[1] A exemplo das disposições contidas na Seção III, do Capítulo I e da Seção I, Capítulo II, da Lei. BRASIL. Lei n.º 14.193, de 6 de agosto de 2021. Diário Oficial da União: Seção 1, Brasília/DF, Edição 149, p. 3, 09/08/2021.
[2] Não pretendemos, neste ensaio, aprofundar a discussão sobre a “Teoria da Agência” e os conflitos de agência gerados entre acionistas e administradores. Para um estudo mais aprofundado, indicamos a obra: JENSEN, Michael; MECKLING, Willian. Theory of the firm: managerial behavior, agency cost, and ownership structure. Journal os Financial Economics, 1976.
[3] Cf. CHAMELETTE, Mariana. “Compliance como ferramenta para boas práticas de gestão em entidades desportivas”. Coluna Jus Desportiva do IBDD. Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD), São Paulo, 2020. Disponível em: https://ibdd.com.br/compliance-como-ferramenta-para-boas-praticas-de-gestao-em-entidades-desportivas/. Acesso em: 02/11/2021.
* Assessor técnico no Núcleo de Governança, Riscos e Compliance do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Aluno do Mestrado em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Bacharel em Direito pela Universidade Positivo, com parte da graduação cursada na FGV Rio. E-mail: augusto.piaskoski@gmail.com. Endereço currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/0090530005592642. Endereço ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3791-7683.
** Pós-doutor pela Faculdade de Direito da Universidade Degli Studi di Roma – La Sapienza. Estágio de Pós-doutorado em Portugal. Mestre e Doutor pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Graduado em Direito pela Universidade Católica do Paraná – PUC. Professor permanente no Mestrado da Universidade Paranaense – UNIPAR. Projeto de pesquisa Científica - Mediação Comunitária: um mecanismo para a emancipação do ser humano, registrado no CNPQ. Desembargador e Presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. E-mail: jln@tjpr.jus.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002- 6950-6128. ID Lattes: http://lattes.cnpq.br/8509259358093260
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O discurso anticorrupção no Poder Judiciário e a necessidade do devido processo penal
Por Bibiana Fontella[1]
Recentemente, em final do último ano, foi publicado pela revista Carta Capital[2] que o ex-juiz Sergio Moro teria admitido na pré-candidatura pelo Podemos que “na Lava Jato combateu o PT”. Sem adentrar às questões partidárias dessa informação, é de suma relevância analisar a politização do Poder Judiciário quando seu principal objeto é o combate à corrupção. Neste ponto há três julgados do STF e STJ que demostram a clara preocupação da Corte Constitucional com o discurso anticorrupção.
No INQ 4.506[3] o Ministro Luís Roberto Barroso proferiu voto e ao analisar a tipicidade do crime de corrupção passiva afirmou que o entendimento jurisprudencial atual rejeita a perspectiva sinalagmático da corrupção. O Ministro destaca que:
a exigência de indicação de um ato concreto para a caracterização do delito de corrupção - além de ser contrária, como visto, ao texto expresso da lei - afasta da punição as manifestações mais graves da violação à função pública: o guarda de trânsito que pode dinheiro para deixar de aplicar um multa seria punível, mas o senador que vende favores no exercício do seu mandato passaria impune.
Referenciando o entendimento do Ministro Luís Roberto Barroso, a Ministra Laurita Vaz adotada o mesmo posicionamento em voto divergente no RESP 1.745.410[4], no qual há importante alteração da interpretação jurisprudencial, pois é abandonada a exigência de nexo de causalidade entre a vantagem indevida e o feixe de atribuições do funcionário público[5]:
Afinal, como bem pontuou o Ministro LUÍS ROBERTO BARROSO por ocasião do julgamento do Inq 4.506/DF, exigir nexo de causalidade entre a vantagem e ato de ofício de funcionário público levaria à absurda consequência de admitir, por um lado, a punição de condutas menos gravosas ao bem jurídico, enquanto se nega, por outro lado, sanção criminal a manifestações muito mais graves da violação à probidade pública: “o guarda de trânsito que pede dinheiro para deixar de aplicar uma multa seria punível, mas o senador que vende favores no exercício do seu mandato passaria impune” (Voto do Ministro LUÍS ROBERTO BARROSO no Inq 4.506/DF, p. 2.052)
Outro importante julgado para o objeto do presente é o RHC 144.615[6], que apesar de não tratar especificamente do crime de corrupção, o relator Ministro Edson Fachin ao manter seu voto após a divergência, afirma a importância do combate à corrupção:
É errado equacionar luta pela responsabilização e o combate à impunidade com um aumento do “punitivismo”, assim como é errado imaginar que o programa da Constituição de 1988 foi criar amarras para a eficiência dos serviços públicos. A síntese de Ulysses Guimarães continua atual: a Constituição tem ódio e nojo da ditadura, mas “a corrupção é o cupim da República”. Dito de outro modo: é possível ao mesmo tempo ser democrático e combater a corrupção pelo aprimoramento do sistema judicial.
A politização por que têm passado os esforços por mais eficiência na justiça é, por tudo isso, lamentável. A polarização impõe um falso dilema à sociedade: ou se combate o “punitivismo”, ou retornaremos ao arbítrio, como se o estado de coisas anterior, no qual grassou por ano a ineficiência e deitou raízes o cupim da República, fosse o único apanágio da democracia. Por tudo isso, é preciso que não abandonemos os esforços por uma justiça mais eficiente e por uma democracia mais justa. É importante, em suma, não se afastar dos precedentes desta Corte que deram força e respaldo à síntese da Constituição a que se referiu Ulysses Guimarães.
No voto do Ministro Luís Roberto Barroso há importante constatação discursiva dentro do Supremo Tribunal Federal, a necessidade de punir membros do Poder Legislativo. O mesmo se repete no voto da Ministra Laurita Vaz no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, que afirmou a necessidade de afastar a exigência do nexo de causalidade entre a vantagem indevida e o ato de ofício do funcionário Público.
Crime de corrupção é tratado na legislação brasileira apenas sob duas modalidades - passiva e ativa - sem qualquer especificidade da atividade ou função pública em que ocorre. Com isso, há uma grande lacuna, pois a função desempenhada pelo guarda de trânsito não é mesmo do senador. Desta forma, não é possível analisar da mesma forma um ato de corrupção do guarda de trânsito e do representante do Poder Legislativo. Pois, enquanto aquele não trabalha com dinheiro público - sua função é tão somente fiscalizar o cumprimento ou descumprimento das regras de trânsito - o Senador ou Deputado administra diretamente o dinheiro público quando de suas campanhas políticas. Não é possível usar a mesma medida para ambos. O que o Poder Judiciário vem fazer é exatamente a tentativa de adequação do crime de corrupção passiva para os membros do Poder Legislativo e Executivo possam ser punidos, uma vez que o tipo do art. 317, CP foi pensado para o “guarda de trânsito”.
A luta contra corrupção politiza o judiciário e judicializa da política, visto que muitos conflitos que deveriam ser servidos na dialética da conjuntura política acabam sendo trazidas para o Poder Judiciário e acabam por interferir diretamente na disputa de partidos políticos. Assim é formado deslocamento de legitimidade do Estado: do poder executivo e do poder legislativo para o poder judiciário.[7]
Quando o processo penal é utilizado como instrumento para defender uma causa, seja o combate a corrupção ou qualquer outra. Infelizmente, até o presente o Código de Processo Penal não foi complementarmente alterado, nossa lei processual é de 1940 influenciado pelo Código Rocco de 1930 na Itália, e com marcas da Ditadura Vargas. Ao longo destes anos algumas reformas pontuais foram realizadas, mas não de forma estrutural, evoluímos em alguns pontos, mas é preciso que a percepção dos sujeitos processuais adote o paradigma de um processo meramente descritivo, apolítico, neutro e autossuficiente. Isso representa muito para o modelo de Estado e cultura da nossa sociedade, significa a vinculação constitucional, seja pela leitura das regras preexistentes a ela, seja pela reforma posterior, é uma necessidade condicionante do processo penal contemporâneo, de um processo penal democrático, capaz de superar vícios autoritários. [8]
Os discursos de combate a determinados crime é recorrente e cíclico no sistema penal, no momento o discurso é anticorrupção e a ampla criminalização de organizações. Da mesma forma como foi na inquisição das bruxas, com o surgimento do famoso manual de investigação Malleus Maleficarum. É necessário ter cuidado, como destacou Spee na Cauto Criminais, é preciso ter cautela e muita prudência[9] por parte dos sujeitos processuais, graves consequências aos imputados do processo penal podem ser vivenciadas e ao próprio Estado Democrático de Direito.
[1] Mestre em Ciências Jurídica-Criminais pela Faculdade de Direito em Universidade de Coimbra. Advogada Criminal e Professora. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico.
[2] https://www.cartacapital.com.br/cartaexpressa/a-lava-jato-combateu-o-pt-de-forma-eficaz-confessa-moro-em-entrevista/
[3] STF, Inq 4506, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 17/04/2018, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-183 DIVULG 03-09-2018 PUBLIC 04-09-2018.
[4] STJ, RESP 1745410, Relatora para Acórdão Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma. DJE 23 de outubro de 2018
[5] Neste sentido: LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano; GRECO, Luis. A amplitude do tipo penal da corrupção passiva. Disponível em: https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-amplitude-do-tipo-penal-da-corrupcao-passiva-26122018. Acessado em 10 de setembro de 2020.
[6] STF, RHC 144.615, Rel. Min. Edson Fachin, Rel. P/ Acórdão Min. Gilmar Mendes, 2ª Turma, julgamento 25/08/2020, publicação 27/10/2020.
[7] SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da justiça. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2011. p. 29 e 30.
[8] GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal - Abordagem conforme a CF e o Pacto de São José da Costa Rica. 3ª Ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 87 - 113.
[9] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O nascimento da criminologia crítica. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020. p. 153
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