Overcharging: Quais os limites para a imputação penal?
Por Pablo Domingues Ferreira de Castro[1]
Ao tratar sobre a expansão da Justiça Negociada em matéria penal, em contexto internacional, incluindo-se o Brasil como adepto futuro (e já em fase de implementação avançada)[2] deste modelo consensual de Justiça, Marcella Alves Mascarenhas Nardelli[3], no artigo "A Expansão da Justiça Negociada e as perspectivas para o processo justo: a plea bargaining norte-americana e suas traduções no âmbito da civil law", adotou a expressão overcharging para explicar o método de sobreimputação utilizado, em alguns casos, pelo Ministério Público quando oferece denúncia que exaspera os acontecimentos existentes passíveis de enquadramento jurídico-penal, seja por meio de uma pluralidade indevida de condutas penais (horizontal overcherging), seja através de um evidente exagero na cominação da aplicação das penas (vertical overcharging).
Aquele contexto, todavia, reconstrói um cenário de utilização dessa força acusatória do Ministério Público levada ao extremo, como uma verdadeira tática de guerrilha, com objetivo, ao final, de obter-se a tão desejada justiça negociada penal.
Aqui, a pertinência temática é outra. Eis o problema que se busca esclarecer no presente artigo: a prática do overcharging pode provocar consequências para o acusador na esfera da improbidade administrativa, com as implicações próprias da lei 8.429/92? Estaria este acusador agindo em improbidade administrativa?
Preponderantemente, é o Ministério. Público o titular da ação penal (desde que seja pública incondicionada à representação ou pública condicionada à representação). É o ordinário. A ação penal privada é exceção.
Ocorre, não invariáveis vezes, um detectável excesso no direito constitucional de acusar, regulamentado, igualmente, pela lei 8.625/93, na qual, em capítulo próprio (IV), indica-se, a partir do art. 25, uma série de funções típicas do órgão de acusação. Dentre elas não há, por óbvio, uma ampla e irrestrita liberdade de se acusar de acordo com convicções pessoais ou de forma descriteriosa e o que pior: acusar para causar temor, intimidação ou algo que o valha, buscando-se, como feedback um acordo negociado penal, em suas mais nova modalidades (suprimida, aqui propositalmente, a expressão "justiça negociada" - nestes moldes não é justo ou não é justiça).
As regras que autorizam e legitimam o ajuizamento de uma ação penal precisam ser interpretadas em conjunto com as regras próprias do Código de Processo Penal, em especial a presença indelével da Justa Causa (art. 395, inciso III do CPP) que, quando inexistente, é hipótese, inclusive, de considerar-se uma coação ilegal (art. 648, inciso I do CPP) autorizadora de uma concessão de ordem de habeas corpus. E quem promove esta coação? O Ministério Público. E, sim, repita-se, a partir de uma coação ilegal.
Portanto, deve-se - e se faz necessário - desconstruir uma ideia imaginária de imunidade do órgão de acusação quando atua pautado em excessos. E não se confunda, aqui, "excessos" com "alto rigor", "dureza", "firmeza" no ato de acusar que, críticas à parte a animosidades moderadas em peças processuais, podem ser toleradas. Em alguns casos os fatos são até mesmo atípicos.[4] Excessos devem ser compreendidos, ao menos para os fins desse ensaio, como aquilo que ultrapassa os padrões da legalidade.
Há enquadramento típico, nestas situações, e há, por sua vez, consequências jurídicas por estes atos. Nada mais natural quando se espera que fiscais da lei, agente públicos em sentido amplo (ou políticos, de modo mais específico[5]) por essência, devam militar (e limitar) suas atuações em conformidade com desígnios democráticos: ninguém deve ser acusado a mais ou a menos pelos supostos delitos praticados. Deve-se funcionar, em contornos jurídicos, a mediana aristotélica, a virtude ao invés dos vícios.
Sobejam exemplos: porque acusar-se alguém por concurso material de delitos quando sabe-se que o caso impõe o reconhecimento de continuidade delitiva (vertical overcharging)?; porque inserir fatos com tipificações criminais alienígenas (fora daquilo que a investigação apurou e constatou) para incrementar uma ação penal recheada de condutas penalmente relevantes (horizontal overcherging)?
Sem obtemperar, porque não faz parte do desígnio deste artigo, tratar de medidas outras tais quais o excesso no uso de medidas coercitivas (buscas e apreensões extemporâneas, prisões preventivas intermináveis, interrogatórios alongados, etc).
E ao ensejo, também por opção de corte temático, não se abordará os crimes de Abuso de Autoridade da lei 13.869/19, o que demandará, oportunamente, um escrito próprio, à luz da dogmática penal.
Contudo, retornando-se à ode das acusações hiperbólicas, essas sim merecem especial atenção. Afinal, como diria Fernando Facury Scaff, "Quem controla o controlador?"[6]. É preciso haver limites. Sem "açaimos" no direito-dever de punir do Estado, porém limites.
Há inclusive, precedentes do STJ de perda da função de promotor pela prática de ato de improbidade administrativa (STJ - REsp: 1.298.092/SP)[7].
Daí partem-se três considerações que são consequências lógicas para eventuais excessos acusatórios: (I) é ato de improbidade administrativa qualquer ação que atente contra os princípios da administração pública e que "viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições"[8]; (II), também é ato de improbidade administrativa "praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência"[9]; (III) também é ato de improbidade administrativa causar lesão ao erário[10].
Foque-se, primeiramente, no ponto (I): acusar valendo-se de uma "técnica" de utilizar aglomerados de fatos destituídos de lastro mínimo probatório para intimidar um acusado para que sofra os efeitos próprios e psicológicos de uma ação penal atenta, ao menos, o dever de honestidade, legalidade e lealdade às instituições. O fim é espúrio, portanto, desonesto com a própria instituição que é permanente e essencial à função jurisdicional do Estado.
Em outra perspectiva, ao que se nomeou ponto (II), tem-se que não se pode acusar sem justa causa penal que o autorize, portanto, trata-se de ato que visa fim proibido em lei. Clara ofensa aos art. 395, inciso III do CPP e art. 648, inciso I do CPP.
Por derradeiro, no ponto (III), essas ações penais excessivas causam lesão ao erário, porque, ao movimentarem a máquina estatal inutilmente, ensejam perda patrimonial, com mobilização de equipes em operações altamente paramentadas, com deslocamento de corpo técnico em larga extensão. Os custos são altíssimos (estima-se em 2,5 milhões anuais em operações, apenas da Lava Jato).[11] É preciso, pois, parcimônia e zelo com a coisa pública.
Nada obstante, não se nota um esforço persecutório para se investigar, se for o caso, e preservado o devido processo legal com ampla defesa e contraditório, punir-se aqueles que, investidos na moldura de parquet valendo-se de um permissivo constitucional, acoima-se em denúncias com fins não conciliáveis com o desígnio de um fiscal da lei.
A propósito, valioso salientar as lições de Antonio Vieira[12]:
"En el contexto de la operación Lava Jato, algunas tácticas utilizadas marcaran la gran diferencia, en el sentido de tornar casi insuportable el preciso del silencio y, para algunos, irrecusable el caminho de la delación. Algunas de estas estratégias se pueden enumerar: a) el uso masivo de prisión provisional, con prologando tempo de duración; b) el uso de técnicas de overcharging em las imputaciones; c) gran numero de registros domiciliários; d) uso de conducciones coercitivas para interrogatório incluso contra investigados que podrían, em teoria, invocar nem tenetur; e) bloqueo de biens e valores, a tornar más difícil el pago da la própria defensa; f) la interlocución de los investigadores com los medios de comunicación - haciendo que los temas de la operación estén en los telediarios todos os los dias (trial by media), em uma evidente estrategia de oppressive publicity - g) presión popular sobre las otras instancias del judiciário, que pasaron confirmar casi la totalidade de las decisiones tomadas em primeira instancia, tornando remota la perspectiva de excarcelacíon, em eseos casos; h) el uso de las informaciones adquiridas com las primeiras delaciones, a favorecer la condición negocial de Ministerio Publico, colocando los fiscales ; i) deflagración de nuevas etapas de la operación em cortos intervalos de tempo, a fin de inculcar em los investigados la creencia de que estaban a punto de ser presos, y j) por fin, las penas altíssimas impuestas as los primeiros condenados y que siguieron este parâmetro a lo largo de los primeiros cuartos años de la operación (con um promedio alrededor de diez años de prisíon em cada condena), etcétera.
Basicamente, o autor deixa evidente uma deturpação no dever de acusar e é preciso que a isto atribua-se um enquadramento jurídico. E lógico: consequências jurídicas. Não caberia, aqui, numa adaptação canhestra do unvereinbarkeitser klärung, muito bem retratada na obra de Gilmar Mendes ao abordar este fenômeno na jurisprudência da corte constitucional alemã[13], que é capaz de declarar a inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade da lei. É uma comparação desajeitada, para se dizer que, nas hipóteses de que se cuidam este ensaio, é preciso reconhecer-se o ato ilegal e aplicar-lhe a devida sanção. Ou seja, pronunciar e efetivar a consequência jurídica.
A jurisprudência, principalmente em Tribunais Superiores, ainda não tem enfrentado a matéria sob esta ótica do excesso de acusação e os efeitos a ela correlatos, salvo alguns Julgados insipientes sobre aplicação de litigância de má fé nestas situações (veja-se aqui[14] e aqui[15]). É, nestes termos, ainda muito tímida.
Mas, com as licenças de estilos, não são suficientes.
É preciso, por ser norma cogente e dever legal daqueles que zelam pelo patrimônio público e mantém hígidos os princípios da administração pública, que adotem as providências necessárias pela punição de seus pares que, no exercício do múnus persecutório, valem-se de prática de overcharging para fins não democráticos, respondam, após os tramites investigatórios e processuais regulares, por ação civil por improbidade (vale-se aqui o trabalho hermenêutico de subsunção dos fatos às diversas normais de tipicidade administrativa elencadas acima).
Ministério Público, mais até que o agente público comum, é conhecedor dos seus deveres e, principalmente, de suas limitações. Quem exerce poder sem limites, não os prestigia e nem quer controle, prefere o livre arbítrio de suas próprias convicções, muitas vezes não constitucionais. Acuse-se, na medida da legalidade. Ou, arque-se pelo excesso, igualmente violadores de princípios da administração pública e violência ao seu erário. Não se quer, antes que se cogitem, generalizar as atuações. Adaptando-se a frase de Nelson Hungria, para quem "toda unanimidade é burra", se diria: "toda generalização também o é". Menos vícios e mais virtudes.
[1] Doutorando pelo IDP(DF). Mestre e especialista. Professor de cursos de pós-graduação, coordenador adjunto da pós-graduação em Ciências Criminais. Advogado criminalista do escritório Ana Paula Gordilho Pessoa e Advogados Associados.
[2] Lei. 13.964/19 que acresce o art. 28-A - "Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente:"
[3] Revista Eletrônica de Direito Processual - REDP. Volume XIV. ISSN 1982-7636. Periódico da Pós-graduação Stricto Sensu em Direito Processual da UERJ. Patrono: José Carlos Barbosa Moreira pp.331-365. Clique aqui
[4] Art. 142 - Não constituem injúria ou difamação punível:I - a ofensa irrogada em juízo, na discussão da causa, pela parte ou por seu procurador; II - a opinião desfavorável da crítica literária, artística ou científica, salvo quando inequívoca a intenção de injuriar ou difamar; III - o conceito desfavorável emitido por funcionário público, em apreciação ou informação que preste no cumprimento de dever do ofício. Parágrafo único - Nos casos dos ns. I e III, responde pela injúria ou pela difamação quem lhe dá publicidade.
[5] "o Ministério Público também é um agente político. "Cada uma daquelas sete câmaras [de coordenação] elege anualmente as suas prioridades. A 3ª, que é a da ordem econômica do consumidor, tem 17 prioridades. Cada câmara tem sua prioridade porque nós somos agentes políticos. Qual é a diferença de um agente político para um servidor público? O agente político é aquele que pode escolher os meios para atingir o fim que há de ser sempre do interesse público." ARAS, Augusto. O MP é agente político que escolhe meios para atingir o interesse público, diz Aras.
[6] Quem controla o controlador? Considerações sobre as alterações na Lindb
[7] STJ - REsp: 1.298.092/SP 2011/0295559-5, Relator: ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, Data de Julgamento: 9/8/16, T1 - PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 15/9/16
[8] Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente:
[9] Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente: I - praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência;
[10] Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei, e notadamente:
[11] Em média, o custo anual da força-tarefa em Curitiba é de quase R$ 2,5 milhões por ano, isto é R$ 206 mil por mês. O montante não inclui os salários dos integrantes, nem o custo da força-tarefa da Polícia Federal, que atuou até 2017 em Curitiba, e nem os gastos com as forças-tarefa de outros estados. Leia mais clicando aqui Copyright © 2021, Gazeta do Povo. Todos os direitos reservados.
[12] (VIERIA, Antonio. Riesgos y Controles Epistémicos em la delacíon premiada: aportaciones a partir de la experiência em Brasil Fls. 56/57).
[15] Promotora é condenada por litigância de má-fé no Distrito Federal
Este artigo reflete a opinião de seus autores e não necessariamente a opinião do IBDPE.
Este espaço é aberto aos Associados do IBDPE! Para submeter seu artigo, envie uma mensagem para contato@ibdpe.com.br.
POR QUE EXCLUIR A PROVA ILÍCITA?
Por: Sérgio Rebouças[1]
É corriqueira, entre muitos, a dificuldade de entender a lógica de inadmissibilidade e de exclusão de provas obtidas por meios ilícitos (art. 5º, LVI, Constituição Federal; art. 157, Código de Processo Penal). Afinal, não seria demais excluir – e até inutilizar – uma prova independentemente de seu conteúdo e de sua relevância material? Qual o sentido de se desprezar o conteúdo inequívoco de uma prova, por mais que sua obtenção tenha ocorrido de forma contrária ao direito? Ora, se um investigador público, sem autorização judicial, invadiu um dispositivo informático e ali obteve dados relevantes sobre a prática de crimes, que se puna o sujeito pelo emprego desse meio ilícito (e até criminoso), mas que não se chegue ao ponto de desprezo do próprio conteúdo evidenciado pela prova! Isso, a propósito, corresponde à lógica de um princípio contraposto ao da exclusão: o da veracidade da prova, que já vigorou no Brasil, segundo o qual não interessa o modo de obtenção da prova, mas só o seu conteúdo. Por que não é assim? Por que o Estado chega a renunciar ao próprio resultado probatório, quando alcançado ilicitamente?
No recente episódio da divulgação de conversas e ajustes entre um juiz e um acusador público, curiosamente, viu-se uma inversão dessa tendência comum de incômodo frente à regra de inadmissibilidade: de repente, muitos passaram a afirmar que, apesar de seu conteúdo (na verdade, antes mesmo de se chegar a uma discussão sobre ele), as gravações constituem produto de ato ilícito (até criminoso) e, portanto, devem ser desprezadas e excluídas, para qualquer efeito.
Nesse cenário todo, é importante entender a lógica da exclusão da prova ilícita. Não é só uma questão de respeito às regras do jogo, de imperativo moral ou de necessidade de reafirmação do direito violado na obtenção da prova. A exclusão da prova obedece a um sentido bem particular, assumindo até um viés pragmático.
Retorne-se, então, ao ponto inicial: por que o Estado renuncia ao resultado da prova ilícita como mecanismo incriminador dotado de eficácia? O fundamento tem suas origens em dois casos paradigmáticos julgados pela Suprema Corte norte-americana: o caso Boyd v. United States, de 1886[2]; e, principalmente, o caso Weeks v. United States, de 1914[3].
No último desses casos, foi reconhecida a ineficácia das sanções penais, civis e administrativas para desestimular agentes estatais investigativos quanto ao emprego de práticas ilícitas na obtenção da prova. Para bem cumprir esse efeito dissuasório, o próprio resultado da prova deve ser declarado imprestável e excluído. Só a eliminação do resultado do trabalho ilícito será capaz de desestimular o agente público: a mera ameaça de responsabilidade não é suficiente para enfrentar eventual pendor do sujeito em, na sua atividade rotineira, buscar o meio mais fácil de chegar à prova. Vale a pena mencionar este trecho do julgado da Suprema Corte norte-americana (Weeks v. US, 1914): “A tendência daqueles que executam as leis penais do país de obter elementos de convicção por meio de apreensões ilegais e de confissões forçadas, as últimas com frequência obtidas depois da sujeição de acusados a injustificáveis práticas destrutivas de direitos assegurados pela Constituição Federal, provavelmente não encontram nenhuma sanção nos julgamentos das cortes, encarregadas a todo tempo da defesa da Constituição, e às quais pessoas de todas as condições têm o direito de recorrer para a proteção de tais direitos fundamentais”. Considere-se a ideia comum de que o crime só deixa de compensar quando o agente, além da punição, é privado do produto ou do proveito da prática criminosa. Algumas leis da República têm por base esse parâmetro.
A renúncia estatal ao resultado probatório, porém, não deixa de ser um ato muito doloroso e extremo. Há um custo social relevante associado à exclusão da prova. Isso só deve acontecer, portanto, em situações excepcionais, quando realmente haja necessidade de desestímulo ao abuso estatal na atividade investigativa. Por esse motivo, a própria jurisprudência norte-americana foi fixando limites à regra de exclusão. A título de exemplo, no sistema norte-americano, já se reconheceu que mesmo a prova ilícita pode ser utilizada, com eficácia: (i) quando produzida por um particular, e não por um agente estatal; (ii) em processos de natureza civil. Com efeito, no caso Burdeau v. McDowell, de 1921, entendeu a Suprema Corte norte-americana, resgatando o princípio do precedente firmado em 1914, que “a proteção da Quarta Emenda contra buscas e apreensões ilegais refere-se à ação estatal”[4]. Por outro lado, no caso United States v. Janis, de 1976[5], entendeu-se que a exclusão somente é aplicável em processos criminais[6].
Só se deve inadmitir e excluir a prova, assim, quando produzida por agentes do Estado (“aqueles que executam as leis penais do país”), e isso só para efeito incriminador, em um processo de natureza penal. A necessidade é de desestímulo à conduta de quem, por função e rotina, pratica atividades investigativas oficiais, e não à ação de particulares que, casualmente, encontrem a oportunidade de executar um ato ilegal para obter a prova. No último caso, claro, o particular deve ser punido, mas não se justifica a renúncia estatal ao próprio resultado da prova. Tampouco se justifica o desprezo desse resultado em processo que não seja de natureza penal, com efeito punitivo.
A Constituição brasileira, a esse respeito, foi bem mais protetiva, ao vedar a utilização de provas ilícitas produzidas por quem quer que seja (público ou privado) e em qualquer âmbito (penal ou civil). O Supremo Tribunal Federal, a propósito, já decidiu que mesmo a prova ilícita produzida por um particular não pode ser utilizada no processo. Nessa linha, consulte-se a decisão monocrática do Ministro Celso de Mello no RE 251.445/GO (DJ de 03.08.2000[7]), em que se reconheceu a inadmissibilidade da prova, “ainda que não se revele imputável aos agentes estatais o gesto de desrespeito ao sistema normativo”, quando “vier ele a ser concretizado por ato de mero particular”. No mesmo sentido, confira-se o acórdão da Segunda Turma da Suprema Corte brasileira no HC 82.862/SP (Rel. Min. Cezar Peluso, DJ de 13.06.2008[8]).
Ora, mas há uma finalidade, também objeto de tutela constitucional, bem mais importante do que a excepcional renúncia do Estado ao resultado probatório: a ampla defesa, sobretudo em processo de natureza penal, e a liberdade que aí está em jogo. Afinal, o que justificaria o desprezo do Estado a um dado capaz de evidenciar a inocência de um acusado ou condenado, ou a invalidade de um processo criminal? No Brasil, o Estado também desestimula que um particular produza prova por meio contrário ao direito, e isso de forma reforçada, não só punindo o sujeito, mas chegando ao ponto de inadmitir o resultado probatório, para efeitos de incriminação. Cumprida a finalidade de desestímulo reforçado, nada justifica que o dado não possa ser utilizado contra o poder persecutório do Estado surpreendido, ele próprio, em um cenário de ilegalidade, tudo como mecanismo de proteção da liberdade individual.
Uma nota emerge do que foi dito acima: considerando determinados precedentes da jurisprudência norte-americana, ali a situação de prova ilícita produzida por agentes particulares não levaria à exclusão do dado sequer para efeito incriminador. Vale dizer: a prova ilícita produzida por um particular pode ser utilizada até mesmo para incriminar. O particular, por seu turno, fica sujeito a responsabilidade, inclusive a penal, decorrente de sua conduta ilícita. Aplique-se essa lógica ao recente caso das conversas entre acusador e juiz, em que a prova foi supostamente obtida – de forma ilícita – por particulares, e não por agentes públicos... No Brasil, diversamente, considerando a amplitude da tutela constitucional, veda-se o uso dessa prova para incriminação, ficando admitida, porém, sua eficácia como instrumento de defesa.
[1] Advogado criminalista, sócio do escritório Cândido Albuquerque Advogados Associados, doutor em Direito Penal pela Universidade de Sevilha e professor de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará
[2] Boyd v. United States, United States Supreme Court, 116. US. 616, 1886.
[3] Weeks v. United States, United States Supreme Court, 232. U.S. 383, 1914.
[4] Burdeau v. McDowell, United States Supreme Court, 256 U.S. 465, 1921.
[5] United States v. Janis, United States Supreme Court, 428 U.S. 433, 1976. Com o mesmo sentido, há ainda, na jurisprudência norte-americana, o precedente do famoso caso O. J. Simpson, de 1995.
[6] Para mais casos de limitações à regra de exclusão, consulte-se: REBOUÇAS, Sérgio. Curso de Direito Processual Penal. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 542-549.
[7] STF, RE 251.445/GO, Rel. Min. CELSO DE MELLO, julgamento em 21.06.2000, DJ de 03.08.2000.
[8] STF, 2ª Turma, HC 82.862/SP, Rel. Min. CEZAR PELUSO, julgamento em 19.02.2008, DJ de 13.06.2008.
Este artigo reflete a opinião de seus autores e não necessariamente a opinião do IBDPE.
Este espaço é aberto aos Associados do IBDPE! Para submeter seu artigo, envie uma mensagem para contato@ibdpe.com.br.
Aspectos Penais da Nova Lei de Licitações
Por: Francisco Monteiro Rocha Júnior[1]
Se acrescentado o fato de que nenhuma pena foi diminuída, todos os demais tipos penais receberam majorações em suas reprimendas.
Foi promulgada pela Presidência da República, em 01º de abril último, a nova regulação jurídica das licitações e contratos administrativos, qual seja, a lei 14.133. Nada obstante seus 194 artigos, o singelo objetivo esse artigo é o de debater somente o art. 178, que trata das alterações nos ilícitos penais cometidos no bojo de licitações. Se anteriormente os assim denominados "crimes licitatórios" compunham o próprio texto da revogada lei 8.666/93 (respectivos artigos 89 a 98), doravante passam a integrar o texto do Código Penal, integrando o capítulo referente aos "crimes praticados por particular contra a administração em geral".
A introdução dos crimes licitatórios no Código Penal deve ser louvada. É lícito ao legislador, como se sabe, inserir disposições penais em quaisquer leis que sejam debatidas no congresso. Isso tem redundado em exemplos pitorescos, como a existência de tipos penais no Estatuto do Torcedor (Capítulo XI-A da lei 10.671/03) ou um novo regime de punibilidade dos crimes tributários na Lei que regula o salário mínimo (art. 6º da lei 12.382/11). Evidentemente isso tem representado ataques à segurança jurídica (como saber o que é crime e o que não é, se sequer sabemos em quais diplomas legislativos devemos procurá-los?) e à proporcionalidade das penas (quem consegue compreender a razão pela qual a lesão culposa no trânsito - art. 303 da lei 9.503/97 - recebe a pena de 6 meses a 2 anos enquanto que a pena da lesão dolosa "fora do trânsito" - art. 129 do Código Penal - ostenta a metade daquela - 3 meses a 1 ano?). O desejável, é claro, é que todas as leis incriminadoras em nosso país estivessem dispostas no mesmo e único diploma legal, qual seja, o Código Penal. Mas enquanto isso não ocorre, a disposição do legislador de inserir os crimes licitatórios nesse código deve ser exaltada. A segurança jurídica, a previsibilidade e a proporcionalidade entre as penas agradecem.
Relativamente às mudanças propriamente ditas e que já se encontram em vigor desde a data da promulgação da lei, pode-se apontar para ao menos dois pontos, sem prejuízo de outros que não serão debatidos por conta dos limites do presente ensaio: 1) introdução de somente um único novo tipo penal e 2) generalizado aumento das penas dos crimes já existentes.
Analise-se, primeiramente, o novo tipo penal. Trata-se da conduta agora positivada no art. 337-O do Código Penal, de "omissão grave de dado ou de informação por projetista", e que se constitui no comportamento de "omitir, modificar ou entregar à Administração Pública levantamento cadastral ou condição de contorno em relevante dissonância com a realidade" de modo a frustrar o caráter competitivo da licitação. Trata-se de crime cuja pena é de reclusão, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos, e multa, e que chama a atenção pelo fato de destoar do espírito punitivista das demais alterações. É que a conduta de alterar levantamentos ou dados de projeto submetido à Administração Pública, para o fim de frustrar o caráter competitivo de licitação, por certo, já estava positivada no art. 299 do Código Penal que prevê a falsidade ideológica. Afinal de contas, alterar fraudulentamente o conteúdo de documento para produção de efeitos jurídicos, seja esse um documento para participação de certame licitatório, ou para modificar falsamente o endereço de uma empresa para obter regime tributário mais benéfico, é falsidade ideológica. Que por seu turno, corresponde a uma pena de 01 a 05 anos, substancialmente maior do que a prevista para o tipo em questão.
Para além da alteração em benefício dos acusados estampada no novo tipo penal, percebe-se, no novo capítulo do Código Penal, a manutenção de todos os tipos penais anteriormente previstos na lei 8.666/93, com penas aumentadas. Para sermos fiéis à verdade, deve-se incialmente se fazer referência aos dois tipos penais que mantiveram o quantum da penas. Tratam-se dos crimes de a) violação de sigilo em licitação (anteriormente previsto no art. 94 da lei 8.666/93 e cuja pena de 2 a 3 anos foi mantida na previsão legal do art. 337-J do Código Penal) e do crime de b) impedimento indevido de participação em licitação (que era previsto no art. 98 da antiga lei de licitações com pena de 6 meses a 2 anos que foi mantida no atual art. 337-N do Código Penal).
Nada obstante os dois tipos que mantiveram suas sanções, e se acrescentado o fato de que nenhuma pena foi diminuída, todos os demais tipos penais receberam majorações em suas reprimendas. Vejamos o detalhamento desse aspecto: a) a ilegal dispensa ou inexigibilidade de licitação, cuja pena era de 3 a 5 anos no art. 89 do antigo marco legal, passa a ser de 4 a 8 anos, segundo a dicção do art. 337-E do Código Penal; b) a frustação do caráter competitivo de licitação para obtenção de vantagem, que no revogado art. 90 da lei 8.666/93 correspondia a uma pena de 2 a 4 anos, na nova estrutura legal passa a ser de 4 a 8 anos, segundo a redação do art. 337-F; c) a advocacia administrativa na licitação, cuja pena era de 6 meses a 2 anos no revogado art. 91, passa para a reprimenda de seis meses a 3 anos, nos termos do atual art. 337-G do Código Penal; d) a indevida prorrogação contratual e o pagamento de fatura com preterição de ordem cronológica, que contavam com pena de 2 a 4 anos no art. 92 da lei revogada, passam a receber a sanção penal de 4 a 8 anos; e) a perturbação do processo licitatório, que contava com pena de 6 meses a 2 anos, segundo o art. 93 da lei anterior, passa a ostentar pena de seis meses a 3 anos, segundo a previsão do art. 337-I do Código Penal; f) o indevido afastamento de licitante, anteriormente apenado com 2 a 4 anos (art. 95), passa a receber a pena de 3 a 5 anos, segundo se verifica do art. 333-K do Código Penal; g) a fraude em licitação ou contrato, por meio da entrega de serviço ou mercadoria diferente daquela que havia sido contratada, cuja pena anterior era de 3 a 6 anos, passa a ser sancionada com reclusão de 4 a 8 anos; e finalmente, h) a admissão de licitante inidôneo, que no art. 97 da lei antiga previa pena de 6 meses a 2 anos, passa atualmente, nos termos da previsão do art. 337-M, à pena de 1 a 3 anos.
Penalmente falando, a corrupção é um fenômeno específico, positivado nos art. 333 do Código Penal (modalidade ativa) e art. 317 (modalidade passiva). Nada obstante a acepção técnica, não só a sociedade, mas também as pesquisas científicas em torno do tema oriundas de outras áreas, tem identificado o vocábulo como sendo sinônimo de um amplo conjunto de ilícitos praticados no seio do Estado. E, desde essa mirada, as fraudes realizadas nos certames licitatórios estão albergadas na discussão. Nesse sentido, e imbuídos da ideologia do "combate à corrupção", lançou mão o legislador, mais uma vez, do braço punitivo do Estado para enfrentar esse mal. Assim sendo, pode-se fazer ao menos duas indagações: primeiramente, quais dentre esses crimes tem sido efetivamente investigados e punidos? Ou seja, teve o legislador o trabalho de verificar se há, nesse rol, crimes desnecessários, para que os esforços pudessem ser focados em alguns tipos penais? O sentido da indagação é que, por exemplo, jamais houve discussão (ou seja recurso) a respeito do crime de violação de sigilo em licitação, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, como se comprova através de uma rápida pesquisa. Será que seria necessário sua manutenção no novo diploma legal? Será que todos os tipos são efetivamente necessários?
E, em segundo lugar: o caminho para combatermos o generalizado fenômeno da corrupção é efetivamente através do direito penal? Há robustas e irrespondíveis pesquisas, fartamente apoiadas em dados empíricos, que caminham no sentido contrário. O festejado livro de Susan Rose-Ackerman e Bonnie J. Palifka ("Corrupção e governo: causas, consequências e reforma, FGV Editora, 2020") aponta para o fato de que a estrutura institucional afeta a forma como agentes públicos e privados sopesam os custos e benefícios para que participem de arranjos corruptos. No mesmo caminho, Héctor A. Mairal ("As raízes legais da corrupção: ou como o direito público fomenta a corrupção em vez de combatê-la", Editora Contracorrente. 2018) indica que os sistemas de licitação e contratação contribuem para a corrupção, ao invés de preveni-las. Em síntese: o direito penal pode até contribuir, mas dificilmente será a bala de prata. A organização de toda a estrutura jurídica apresenta papel muito mais relevante. O que nos leva necessariamente a ouvir autores mais aquilatados e que possam realizar uma análise mais detida de todos os demais 193 artigos da recém promulgada nova lei de licitações.
[1] Advogado. Coordenador geral dos cursos de pós-graduação em Direito Penal e Processo Penal da Academia Brasileira de Direito Constitucional - ABDConst. Doutor em Direito pela UFPR.
Este artigo reflete a opinião de seus autores e não necessariamente a opinião do IBDPE.
Este espaço é aberto aos Associados do IBDPE! Para submeter seu artigo, envie uma mensagem para contato@ibdpe.com.br.
POR UMA TEORIA DAS MEDIDAS CAUTELARES PATRIMONIAIS NO PROCESSO PENAL
Por: Guilherme Brenner Lucchesi[1]
Em 11 de fevereiro de 2021, as ciências criminais choraram a perda de um de seus mais emblemáticos e importantes juristas, o Professor René Ariel Dotti. Em toda a sua trajetória profissional e acadêmica, Professor René se destacou pela inovação em suas análises, rompendo com a penúria intelectual do que comparou a um “mercado persa” dos comentários à legislação brasileira.[2] Em homenagem à memória do saudoso Professor, dedico-lhe as seguintes linhas em crítica ao que se vê sendo reproduzido no âmbito do Judiciário a respeito de um importante instituto do processo penal, à revelia da “editoração desordenada e habitualmente inepta de inúmeras publicações que são oferecidas aos profissionais e aos estudantes”[3].
Observa-se fenômeno recente em que a repressão criminal no Brasil tem buscado atingir o patrimônio do agente como um fim em si mesmo pelo uso de instrumentos processuais de natureza patrimonial. Os “bloqueios de milhões” substituíram os “anos de prisão” nas manchetes de jornal. Nesta persecução penal contemporânea, houve o abrupto resgate das medidas assecuratórias — arresto, sequestro e especialização da hipoteca legal — que, apesar de encontrarem previsão no CPP desde a década de 1940, até recentemente estiveram relegadas ao esquecimento no próprio estudo da disciplina de Direito processual penal. Disso decorre, justamente, a assimetria entre o aumento da demanda judicial de tais medidas e a escassa produção doutrinária sobre o tema.
Para além da parca produção intelectual a respeito do tema, a desnaturação das medidas cautelares tem levado à sua utilização como formas de antecipação da punição, privando o acusado de seu patrimônio muito antes de qualquer eventual decisão condenatória. Não fosse isso, nem mesmo os parâmetros de imposição destas medidas são claros, em razão da utilização de medidas amorfas ou genéricas criadas pela prática forense no lugar da aplicação das medidas cautelares típicas estabelecidas pela lei processual penal.
Como já ensinava o Professor René Dotti, a legislação processual penal brasileira conhece como medidas cautelares patrimoniais o arresto, o sequestro e a especialização de hipoteca legal.[4] Apesar de alguma confusão de nomenclatura entre o sequestro e o arresto — não apenas por o CPP em sua redação originária empregar uma nomenclatura equivocada, corrigida pela Lei n.º 11.435/2016[5], como também pela incidência do defasado Decreto-Lei n.º 3.240/1941[6], que emprega a expressão sequestro em sentido diferente do CPP —, a legislação processual penal estabelece parâmetros objetivos para a incidência de cada medida assecuratória.[7] O arresto e a especialização da hipoteca legal buscam garantir a reparação do dano, por meio da constrição judicial de bens de origem lícita, sem relação com o crime; o sequestro visa à indisponibilidade dos bens adquiridos com a prática do crime, portanto, bens ilícitos.
A despeito disso, não é incomum a decretação de medidas estranhas às expressamente previstas na lei processual penal — “bloqueio” e “indisponibilidade” — e a invocação do sequestro e do arresto de forma indistinta — “sequestro/arresto” e “arresto e sequestro”. O uso de medidas inominadas e de medidas indefinidas viola a tipicidade e a taxatividade, atributos inerentes a qualquer medida cautelar penal. Diferentemente do processo civil, a legislação processual penal brasileira não contempla juiz com poder geral de cautela que autorize a decretação de medidas constritivas fora das hipóteses previstas em lei.
É preciso que a doutrina, em vez de se limitar ao “vício acaciano de repetir as palavras da lei sob a máscara de interpretação”[8] passe a pensar efetivamente as medidas cautelares patrimoniais em um mesmo nível de densidade teórica utilizado na análise nas medidas cautelares pessoais, em especial quanto à prisão preventiva. Em menos de uma década, as prisões processuais foram objeto de diversas pesquisas e duas reformas legislativas compreensivas, tanto pela Lei n.º 12.430/2011, como pela Lei n.º 13.964/2019. Enquanto isso, as medidas cautelares patrimoniais seguem praticamente inalteradas desde 1941, com pouca ou nenhuma análise por parte da doutrina.[9]
A fim de honrar a memória do Professor René Ariel Dotti, visando perpetuar seu esforço pela modernização do ordenamento positivo, com “soluções modernas que gozam de estabilidade dogmática”[10], urge o desenvolvimento de uma teoria geral das medidas cautelares patrimoniais no processo penal.
[1] Advogado – OAB/PR 50.580. Attorney-at-Law – NYSBA 5.495.812. Professor de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da UFPR. Doutor em Direito pela UFPR. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico.
contato: guilherme@lucchesi.adv.br
[2] DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal. 6. ed. São Paulo: RT, 2018. p. 21.
[3] Idem, p. 22.
[4] Idem, p. 715-716. O autor ainda anota como “medida patrimonial” a busca e apreensão, que apesar de sua natureza como meio de prova, também incide sobre bens de procedência ilícita e instrumentos do crime.
[5] Idem, p. 715.
[6] Segundo Dotti, o Decreto-Lei segue em vigor por força do Decreto-Lei n.º 359, de 1968 (Idem, p. 716).
[7] Ver LUCCHESI, Guilherme Brenner. ZONTA, Ivan Navarro. Sequestro dos proventos do crime: limites à solidariedade na decretação de medidas assecuratórias. RBDPP, v. 6, n. 2, p. 725-764.
[8] Dotti, obra citada, p. 21.
[9] São importantes exceções: SAAD GIMENES, Marta Cristina Cury. As medidas assecuratórias do Código de Processo Penal como forma de tutela cautelar destinada à reparação do dano causado pelo delito. Tese (Doutorado em Direito), Universidade de São Paulo, 2007; AMARAL, Thiago Bottino do (Coord.). Medidas Assecuratórias no Processo Penal. Série Pensando o Direito, 25/2010. Brasília: Ministério da Justiça, 2010. Disponível em: https://bit.ly/3pALC0Y; LEITE, Larissa. Medidas patrimoniais de urgência no processo penal: implicações teóricas e práticas. Rio de Janeiro: Renovar, 2011.
[10] Dotti, obra citada, p. 22.
Este artigo reflete a opinião de seus autores e não necessariamente a opinião do IBDPE.
Este espaço é aberto aos Associados do IBDPE! Para submeter seu artigo, envie uma mensagem para contato@ibdpe.com.br.
O Uso Abusivo das Medidas Cautelares Patrimoniais no Processo Penal
Por: Rafael Guedes de Castro[1]
O contexto das grandes operações deflagradas pela Polícia Judiciária e pelo Ministério Público, no que tange ao combate aos delitos econômicos, tem exigido profunda e criteriosa reflexão técnica sobre a forma como são conduzidas e sobre os parâmetros jurídico-institucionais que as permeiam. Se de um lado as retribuições ilegais decorrentes de atos de corrupção, por exemplo, geram prejuízos econômicos na medida em que afetam a distribuição de recursos públicos e a liberdade de iniciativa[2], de outro, não se pode desconsiderar que há uma tendência de que os subsistemas de imputação sejam transformados em meros instrumentos de punição, subvertendo, dessa forma, sua natureza de mecanismos de proteção do cidadão em face do Poder Estatal.
No ano de 2001, no II Congresso Brasileiro de Direito Processual Civil, Penal e Juizados Especiais, em Joinville – SC, o Professor Jacinto Nelson de Miranda Coutinho já advertia sobre os riscos de uma crescente ideia de flexibilização de garantias constitucionais nas reformas processuais e de eficiência “tentando dar efetividade antecipada a uma “possível/provável condenação”, mesmo que, para isso, tenha-se de correr o risco da injustiça[3]. Essa tendência se revelou, na prática, mediante a atuação do aparelho persecutório estatal e uma técnica político-legislativa pouco criteriosa a exemplo da Lei 12.850/2013, que ampliou os espaços de consenso no Direito Processual Penal mediante a importação de conceitos próprios de países cuja tradição jurídica difere em muito da realidade brasileira.[4]
Dentro desse cenário de combate à criminalidade econômica, o tema referente às medidas cautelares patrimoniais surge como mecanismo processual comumente utilizado para, além da punição corporal, garantir uma eventual reparação do dano causado pela infração. Ocorre que, a despeito da possibilidade de sua utilização, não é incomum sua má utilização, invocando-se, inclusive, um suposto “poder geral de cautela” na seara penal para a determinação de medidas constritivas em desacordo com o estatuto processual penal, o que conduz a um indevido uso abusivo dessas medidas cautelares.
O capítulo IV do Código de Processo Penal elenca, como medidas assecuratórias, o (i) sequestro, o (ii) arresto e a (iii) hipoteca legal, sendo que todos esses instrumentos possuem claras e objetivas finalidades. O sequestro, por exemplo, a teor dos artigos 125 a 132, pode recair sobre bens móveis e imóveis que tenham sido adquiridos como provento da infração penal. O arresto, artigos 136 e 137 do estatuto processual, poderá recair sobre imóveis, previamente a especialização e registro da hipoteca legal, artigo 134 e 135, para que seja estimado o valor do bem constrito, bem como subsidiariamente sobre bens móveis, não ficando sua incidência limitada a bens adquiridos ilicitamente.
Sob o mesmo ponto de vista, o artigo 4º da Lei de Lavagem de Capitais, com redação dada pela Lei 12.683/2012, estabelece que o juiz poderá decretar, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação da autoridade policial, medidas assecuratórias de bens quando existirem indícios suficientes da prática da infração, permitindo que atinjam instrumentos, produto ou proveito do crime e bens do acusado que estejam em nome de pessoa interposta. A inovação legislativa, claramente, ampliou a incidência do tema, permitindo que a constrição atinja tanto o produto ou proveito obtido pela prática da infração antecedente como o produto da própria lavagem. Ao contrário da sistemática estabelecida no estatuto processual penal, o qual prevê a inscrição e registro da hipoteca legal e o arresto prévio como medidas destinadas à reparação do dano, a Lei de Lavagem de Capitais estabeleceu uma possibilidade ampla de que sejam decretadas medidas assecuratórias para reparação do dano, prestação pecuniária, multa e custas processuais.[5]
O alargamento das hipóteses legais de decretação dessas medidas e uma falta de critério na análise do instrumento na prática têm conduzido a situações inusitadas. Não é raro observar a imposição de medidas cautelares patrimoniais sem indicação do instrumento processual que está sendo adotado, com ausência de diferenciação de bens lícitos e ilícitos, sem prazo de duração e com absoluto casuísmo ao simplesmente decretá-las, nomeando-as, como medidas de bloqueio ou indisponibilidade, nomenclaturas que sequer existem na sistemática processual. Esse campo de incertezas conduz à sua indevida utilização, à inversão do ônus probatório e a uma indevida presunção de culpabilidade.
Não é difícil visualizar os graves prejuízos que alguém, presumivelmente inocente, poderá ter ao enfrentar um processo judicial com todo patrimônio constrito indevidamente. De outro lado, mais grave ainda é quando essa medida atinge os ativos financeiros de uma pessoa jurídica que possua sócios ou dirigentes investigados e que necessite fazer frente a inúmeros compromissos financeiros com funcionários acionistas e investidores.
Neste sentido, apesar de o Direito Penal prever uma responsabilidade subjetiva e pessoal, a jurisprudência tem estendido às pessoas jurídicas o ônus de arcar com custas, multas e ressarcimento do dano mesmo que a sua responsabilização penal seja inviável constitucionalmente, à exceção dos crimes ambientais. Por exemplo, na Apelação Criminal n. 5046488-95.2018.4.04.7000, o Tribunal Federal da 4ª Região já decidiu que “tratando-se de criminalidade complexa, praticada por pessoas físicas, mas por intermédio de pessoa jurídica e/ou em favor desta, viável o direcionamento acautelatório contra o patrimônio do beneficiário ainda que inviável a responsabilização penal da pessoa jurídica (...) isto não equivale dizer que esta não possa sofrer a constrição de seus bens ou ativos de origem lícita - que não correspondem ao produto ou proveito do crime.” No mesmo sentido, seguiu o Superior Tribunal de Justiça, no Agravo Regimental no Recurso Especial n. 1712934/SP. Por outro lado, sobre a forma genérica como se trata o tema, o Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial 1319345/PR, também já afirmou que as “medidas assecuratórias previstas na legislação processual penal, tais como o sequestro, o arresto e a hipoteca legal, têm por fim garantir tanto a reparação de dano exdelicto quanto a efetividade da multa pecuniária e o pagamento das custas processuais que possam vir a ser impostas ao denunciado”, não estabelecendo uma diferenciação entre as hipóteses contempladas pela legislação.
Em um campo onde predomina a discricionariedade, deve-se observar que o tema relativo à tutela cautelar está vinculado a um princípio de legalidade estrita e a pressupostos rígidos de cautelaridade, ainda que não se tenha um verdadeiro processo cautelar autônomo no processo penal. Dentre as características existentes, há duas que se sobressaem como imprescindíveis à análise do tema, quais sejam, a Referibilidade e a Proporcionalidade. A Referibilidade é um requisito que conecta a necessidade da medida com a situação concreta de direito material, determinando que a constrição patrimonial não ultrapasse os limites do que pode ser objeto de condenação ao final. A proporcionalidade, por sua vez, impede que a medida não seja mais gravosa que o provimento final.[6]
Como dito, a legalidade estrita é um imperativo na matéria, levando à conclusão de que medidas que ampliem o escopo da tutela cautelar patrimonial não encontram guarida na sistemática processual vigente. Da mesma forma, a existência de um poder geral de cautela, que permitiria ao Magistrado limitar a liberdade do investigado sem expressa previsão legal, também não se enquadra dentro das exigências constitucionais que determinam um processo penal acusatório e que observe o devido processo legal. [7]
O tema provoca intensa reflexão e não seria possível deixar de recordar as preciosas lições do Professor e Advogado René Ariel Dotti. No artigo intitulado “Algumas reflexões sobre o Direito Penal dos Negócios”[8], o ilustre Professor, além de ponderar sobre a exigência de uma atuação jurisdicional penal efetiva para ao enfrentamento de uma criminalidade que manifesta fatores complexos e prejudiciais, reafirmava seu notório compromisso com a defesa constitucional, aduzindo ser necessário um rigoroso controle público pela fiscalização, inclusive de instituições não formais, como parte de um processo de democratização que leve em conta as liberdades, os direitos e as garantias fundamentais.
[1] Advogado. Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná e especialista em Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Direito Penal Econômico pela Universidade Federal do Paraná, pela Universidade de Coimbra – Portugal e pela Universidade Castilla La Mancha, Toledo, Espanha.
[2]ROSE-ACKERMAN, Susan. The Law and Economics of Bribery and Extortion.In:Annual Review of Law and Social Science, vol. 6, p. 217-236, 2010; Yale Law & Economics Research Paper n. 408. Disponível em: http://ssrn.com/abstract=1646975.
[3]COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Efetividade do Processo Penal e Golpe de Cena: Um problema às reformas processuais. In:Escritos de Direito e Processo Penal em homenagem ao Professor Paulo Claudio Tovo. Lumen Juris, 2002, p. 145
[4]Sobre o tema: LANGER, M. Dos Transplantes jurídicos às traduções jurídicas: A globalização do plebargaining e a tese da americanização do Processo Penal. Delicate, vol. 2, n.3, jul-dez. 2017.
[5]BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais. 3. ed. São Paulo: EditoraRevista dos Tribunais, 2016, p. 343.
[6]BADARÓ, GutavoHenrique . Medidas Cautelares Patrimoniais no Processo Penal. In: Crimes Econômicos e Processo Penal. Série GV-law. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 170.
[7]GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Presunção de inocência e prisão cautelar. São Paulo: Sarava, 1991, p. 57.
[8]DOTTI, Rene Ariel. Algumas reflexões sobre o Direito Penal dos Negócios.In:PRADO, Luiz Regis; DOTTI, René Ariel. Doutrinas Essenciais Direito Penal da Administração Pública, Vol. IV, São Paulo, RT, 2011.
Bibliografia
BADARÓ, Gutavo Henrique. Medidas Cautelares Patrimoniais no Processo Penal. In: Crimes Econômicos e Processo Penal. Série GV-law. São Paulo: Saraiva, 2008.
BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais. 3. ed. São Paulo: EditoraRevista dos Tribunais, 2016
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda.Efetividade do Processo Penal e Golpe de Cena: Um problema às reformas processuais.In:Escritos de Direito e Processo Penal em homenagem ao Professor Paulo Claudio Tovo. Lumen Juris, 2002.
DOTTI, Rene Ariel. Algumas reflexões sobre o Direito Penal dos Negócios.In: PRADO, Luiz Regis; DOTTI, René Ariel. Doutrinas Essenciais Direito Penal da Administração Pública, Vol. IV, São Paulo, RT, 2011
GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Presunção de inocência e prisão cautelar. São Paulo: Sarava, 1991, p. 57
LANGER, M. Dos Transplantes jurídicos às traduções jurídicas: A globalização do plebargaining e a tese da americanização do Processo Penal. Delicate, vol. 2, n.3, jul-dez. 2017
ROSE-ACKERMAN, Susan. The Law and Economics of Bribery and Extortion.In:Annual Review of Law and Social Science, vol. 6, p. 217-236, 2010; Yale Law & Economics Research Paper n. 408. Disponível em: http://ssrn.com/abstract=1646975
Este artigo reflete a opinião de seus autores e não necessariamente a opinião do IBDPE.
Este espaço é aberto aos Associados do IBDPE! Para submeter seu artigo, envie uma mensagem para contato@ibdpe.com.br.
MEDIDAS CAUTELARES REAIS – REFLEXÕES QUANTO AO SEQUESTRO DE BENS NOS CRIMES COM PREJUÍZO À FAZENDA PÚBLICA – REVOGAÇÃO DO DECRETO-LEI Nº 3240/1941 – NECESSÁRIA APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO, DA PROPORCIONALIDADE E DA RAZOABILIDADE
Por: Claudia da Rocha[1] e Marlus H. Arns de Oliveira[2]
Homenagem
Salve! Não foram poucas as passagens em que encontrei o advogado professor René Ariel Dotti. Cada uma delas foi única e marcante. Descrevê-las resultaria num capítulo de um enorme livro compartilhado por tantos alunos, advogados, juristas e todos que com ele conviveram e foram brindados com suas aulas e sua generosidade. Sucintamente, guardando o capítulo em meu coração, presto singela homenagem ao professor René, dizendo a ele que seguirei em frente com muita coragem e sempre com a medalha de Santo Ivo em meu paletó. Até sempre, professor René!
MEDIDAS CAUTELARES REAIS – REFLEXÕES QUANTO AO SEQUESTRO DE BENS NOS CRIMES COM PREJUÍZO À FAZENDA PÚBLICA – REVOGAÇÃO DO DECRETO-LEI Nº 3240/1941 – NECESSÁRIA APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO, DA PROPORCIONALIDADE E DA RAZOABILIDADE
As medidas cautelares reais são disciplinadas no Capítulo VI do Código de Processo Penal sob a denominação de medidas assecuratórias. Dentre tais medidas, destacam-se a figura do sequestro de bens imóveis (arts. 125 a 131) e do sequestro de bens móveis (art. 132), que têm como finalidade assegurar o cumprimento do efeito da condenação consistente na perda do produto do crime, bem como a reparação do dano causado pelo delito.
Os artigos 125 e 126 do Código de Processo Penal estabelecem que poderão ser sequestrados os bens que sejam produto direto ou indireto do crime, bastando para tanto a “existência de indícios veementes da proveniência ilícita desses bens”.
O tema, já altamente controvertido e que reclama uma teoria geral das medidas cautelares patrimoniais, como bem asseverou Guilherme Brenner Lucchesi, em artigo neste mesmo Caderno Jurídico, alcança ainda mais polêmica quando estamos frente a crimes que resultem prejuízo para a fazenda pública.
Tal hipótese é regulada pelo Decreto-Lei nº 3.240/1941, cujo artigo 4º preceitua que, nesse caso, “O sequestro pode recair sobre todos os bens do indiciado, e compreender os bens em poder de terceiros desde que estes os tenham adquirido dolosamente, ou com culpa grave”.
Portanto, diferentemente do Código de Processo Penal, o Decreto-Lei não faz qualquer exigência quanto à necessária proveniência ilícita do bem, possibilitando o sequestro de todos os bens, inclusive os de origem lícita, impondo como requisito apenas a existência de indícios veementes da responsabilidade do sujeito, nos termos do art. 3º.
Devemos considerar como válido e legal o tratamento diferenciado conferido pelo Decreto-Lei nº 3.240/1941? É razoável submeter todo o patrimônio do investigado como garantia de ressarcimento ao erário mesmo que estejamos diante de bens adquiridos licitamente?
A título de exemplo, pensemos no cidadão que possui bens imóveis recebidos como herança. Anos depois, acusado de sonegação fiscal, mesmo não restando dúvida quanto à origem lícita do patrimônio, mostra-se possível nos termos do Decreto-Lei mencionado que o sequestro alcance os bens recebidos em inventário. Não nos parece que tal hipótese seja razoável.
A discussão merece análise e o primeiro ponto a ser observado é que o Decreto-Lei nº 3.240, de 08 de maio de 1941, é ainda anterior ao antigo e, em boa parte, inconstitucional Código de Processo Penal (Decreto-Lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1941). Oportuna a conclusão de que o Decreto-Lei nº 3240 foi revogado pelo Decreto-Lei 3689, devendo ser aplicados os requisitos dispostos nos artigos 125 e 126 da Lei Processual Penal.
Entretanto, a jurisprudência adota entendimento de que estaria vigente e aplicável o Decreto-Lei nº 3.240/1941, possibilitando que o sequestro recaia até sobre os bens de origem lícita do sujeito. Nesse sentido, o julgado do Tribunal de Justiça do Paraná:
PEDIDO DE LEVANTAMENTO DA CONSTRIÇÃO JUDICIAL DE SEQUESTRO. IMPOSSIBILIDADE. BEM HERDADO E ADQUIRIDO DURANTE A CONSTÂNCIA DO MATRIMÔNIO, SOB REGIME DE COMUNHÃO UNIVERSAL DE BENS, SEM CLÁUSULA DE INCOMUNICABILIDADE. BEM PERTENCENTE A AMBOS OS CÔNJUGES. ALEGADA IMPOSSIBILIDADE DE SEQUESTRO DO BEM, EIS QUE NÃO ADQUIRIDO COM PROVENTOS DA INFRAÇÃO PENAL, NOS TERMOS DO ARTIGO 125 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. NÃO ACOLHIMENTO. DELITO PRATICADO CONTRA A FAZENDA PÚBLICA. POSSIBILIDADE DE SEQUESTRO DE BENS DE ORIGEM LÍCITA NOS TERMOS DO DECRETO-LEI 3240/41. (...) (TJ-PR, 2ª Câmara Criminal, Autos nº 0003963-36.2017.8.16.0119. Relator: Desembargador José Carlos Dalacqua, DJe: 22/07/2019 – grifou-se).
Apesar dessa visão oblíqua de boa parte da jurisprudência, somos categóricos no entendimento de que o Código de Processo Penal revogou o Decreto-Lei nº 3240/91, e comungamos do sentimento já exposto há muito tempo pelo querido e saudoso professor René Ariel Dotti (e que bem nos lembrou Guilherme Brenner Lucchesi em artigo publicado neste mesmo Caderno Jurídico), quanto à necessidade de uma teoria geral das medidas cautelares.
A revogação do Decreto-Lei nº 3.240/1941 pode também ser verificada sob o prisma dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade numa perspectiva constitucional.
O art. 282 do Código de Processo Penal, ao disciplinar as medidas cautelares pessoais impõe, em seu inciso II, a imprescindibilidade da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado.
Trata-se de evidente manifestação dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade e apesar de sua previsão estar no título relativo às medidas cautelares pessoais não há justificativa para a sua não aplicação quanto às medidas cautelares reais, notadamente porque o próprio Codex, em seu artigo 3º, assegura que a lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica.
Não é razoável, tampouco proporcional, que os investigados por crimes, que supostamente foram praticados com prejuízo para a fazenda pública, sofram medidas mais gravosas que os demais investigados.
Ainda, e não menos importante, defende-se a necessidade de ser assegurado o contraditório, previamente à decretação de qualquer medida cautelar real, em obediência ao §3º, incluído pela denominada (equivocadamente) Lei Anticrime.
O art. 282, que trata das medidas cautelares pessoais, sofreu profunda alteração com o bem lançado § 3º que ressalvando “os casos de urgência ou de perigo de ineficácia da medida”, impôs ao juiz a necessária intimação da “parte contrária, para se manifestar no prazo de 5 (cinco) dias”, antes de decretar a prisão ou outra medida cautelar pessoal.
Ora, se para medida cautelar pessoal – evidentemente mais gravosa – é possível o contraditório, por que não o seria para a aplicação de medidas cautelares reais?
Finalmente, não nos olvidemos do artigo 5º, caput e inciso XXII, da Constituição Federal, que determina a inviolabilidade do direito à propriedade.
Diante de todos esses argumentos, e ainda do uso abusivo das medidas cautelares, tão bem ilustrada por Rafael Guedes de Castro em artigo deste Caderno Jurídico, é desarrazoada a possibilidade do sequestro atingir, de maneira irrestrita, a totalidade do patrimônio do investigado, posto que a suposta prática de crime, mesmo que dele resulte prejuízo à fazenda pública, não legitima o alcance de bens que não possuam qualquer relação (direta ou indireta) com o fato delituoso.
[1] Advogada, pós-graduada em Direito Constitucional pelo IDCC, em Direito e Processo Penal pela UEL, pós-graduanda em Direito Penal Econômico pelo IDPEE/IBCCRIM, mestranda em Direito Negocial na UEL e professora de Processo Penal e Prática Penal no Centro Universitário Unifamma.
[2] Advogado e sócio de Arns de Oliveira & Andreazza Advogados Associados e doutor em Direito pela PUC/PR.
Este artigo reflete a opinião de seus autores e não necessariamente a opinião do IBDPE.
Este espaço é aberto aos Associados do IBDPE! Para submeter seu artigo, envie uma mensagem para contato@ibdpe.com.br.
CRIMINALIZAÇÃO DA CORRUPÇÃO PRIVADA: O MODELO UNITÁRIO SUECO
Décio Franco David[1]
A corrupção se tornou uma das agendas mais debatidas no campo penal. Porém, o enfoque é direcionado, em sua grande maioria, aos problemas corruptivos do setor público, ignorando-se que a esfera privada possui problemas político-criminais muito mais relevantes ao tema.
Nessa toada, alguns projetos de lei foram apresentados em solo nacional, sempre com menções aos ordenamentos estrangeiros[2]. Os referidos projetos e modelos foram objeto de profunda análise em obra específica para qual remetemos o leitor[3]. Contudo, diante dos cinco modelos identificados (fidelidade contratual empregatícia, lealdade concorrencial, tutela patrimonial, pluriofensivo e unitário), há um que apresenta diferenças e curiosidade peculiares quando comparados ao ordenamento e tradição legislativa penal brasileiro. Esse modelo é o unitário, o qual é apresentado pelo ordenamento Sueco.
O referido modelo propõe uma mescla entre a estrutura de tipificação da corrupção pública e com a corrupção privada. Em 1977, a Suécia, por meio da Lei 1977:103, passou a tipificar, na Seção 7 do Capítulo 17, do seu Código penal a conduta da seguinte maneira:
Uma pessoa que dá, promete ou oferece um suborno ou outra recompensa por um empregado ou outra pessoa definida no Capítulo 20, Seção 2, para o exercício de funções oficiais, será condenado por suborno a multa ou prisão por no máximo dois anos[4]
Desta forma, há uma uniformidade na autoria da conduta por intermédio de técnica de reenvio mencionando a Seção 2 do Capítulo 20 da própria lei, a qual traz um conceito bastante amplo:
Um funcionário que recebe, aceita uma promessa ou exige um suborno ou outra recompensa imprópria pelo desempenho de suas funções, será sentenciado por aceitar suborno a uma multa ou prisão por no máximo dois anos. O mesmo se aplica se o empregado cometeu o ato antes de obter o cargo ou depois de deixá-lo. Se o crime for grave, será imposta prisão por no máximo seis anos.
As disposições do primeiro parágrafo em relação a um empregado também se aplicam a:
- um membro de uma diretoria, administração, conselho, comitê ou outro órgão pertencente ao Estado, um município, conselho municipal, associação de autoridades locais, paróquia, sociedade religiosa ou escritório de seguro social,
- uma pessoa que exerce uma tarefa regulada por lei,
- um membro das forças armadas sob a Lei de Delitos Disciplinares por Membros das Forças Armadas, etc. (1986: 644), ou outra pessoa desempenhando um dever oficial prescrito por Lei,
- uma pessoa que, sem ter uma nomeação ou designação como a acima mencionada, exerça autoridade pública, e
- uma pessoa que, em um caso diferente do indicado nos pontos 1-4, em razão de um cargo de confiança tenha recebido a tarefa de administrar os assuntos jurídicos ou financeiros de outra pessoa ou de lidar independentemente com uma atribuição que requeira conhecimento técnico qualificado ou exercer supervisão sobre a administração de tais assuntos ou atribuições[5].
Interessante consignar que para este modelo, o bem jurídico tutelado acaba necessitando abarcar simultaneamente as condutas corruptivas na esfera pública e privada, afinal o tipo penal é único.
Assim, reconhecendo que o bem jurídico tutelado pelos crimes de corrupção no setor público é o regular funcionamento da administração pública[6], pode-se identificar o bom funcionamento do mercado como bem jurídico tutelado por esta modalidade de tipificação da corrupção privada.
No entanto, tal solução não parece ser a mais adequada. É preciso relembrar que à cada tipificação deve corresponder um bem jurídico específico. Deste modo, não é possível atribuir ao tipo em análise dois bens jurídicos pela mesma disposição, haja vista a diversificação da natureza jurídica existente entre duas áreas tão diferentes (esfera privada e esfera pública).
Por isso, poder-se-ia argumentar uma identificação do bem jurídico por intermédio da moral pública ou probidade pública como bem tutelado na corrupção no setor público e estender tal perspectiva ao setor privado. No entanto, é preciso relembrar que mecanismos moralistas e éticos não devem ser identificados como bens jurídicos, haja vista sua abstração e a possibilidade de resultar em modelos penais autoritários, como alertam Claus Roxin[7] e Luís Greco[8].
Sobre o assunto, Michael Bergström, em monografia temática, afirma que a unificação das condutas sobre um único tipo, mesmo não fazendo diferença formal entre corrupção no setor público e no setor privado, acaba protegendo interesses diferentes[9]. Segundo Bergström, ambos os tipos de corrupção são considerados prejudiciais para a confiança pública tanto do setor público quanto do setor privado. Desse modo, o bem tutelado seria a confiança pública[10].
No mesmo sentido, Sara Hatakka destaca que “um aspecto ligado à corrupção é a importância da confiança dos cidadãos na administração e na comunidade empresarial”[11], reforçando, portanto, a noção de confiança pública sobre tais condutas. Ainda segundo Sara Hatakka, “um baixo nível de corrupção corresponde a um certo nível de confiança dos cidadãos da nação para o exercício da autoridade (“maquinaria de gestão”)”[12].
Essa perspectiva de tutela a partir do sentimento de confiança pública também não se mostra adequada a um modelo constitucional de Direito penal garantidor de direitos fundamentais, haja vista que é altamente questionável exercer proteção penal de sentimentos, consoante afirma Tatjana Hornle[13].
Por sua vez, o Conselho Nacional Sueco para a Prevenção do Crime (Brottsförebyggande rådet – Brå) explica que a matriz que orienta a tutela penal da corrupção naquele ordenamento corresponde ao abuso de poder[14]. Deste modo, conclui-se que a unificação do tipo se dá em razão da tutela das regulares relações jurídicas de poder, sejam elas públicas ou privadas. Todavia, destaca-se que o tipo penal está alocado na Seção dos crimes contra a administração pública e a definição do autor na Seção sobre ilícitos praticados em atividades profissionais, demonstrando sua peculiar tipificação da conduta.
Embora não encontre a referida harmonização à dogmática penal mais moderna, tampouco aos preceitos normativos internacionais, o modelo sueco é bastante eficaz na investigação e combate ao fenômeno corruptivo, destacando sua posição sempre positiva nos índices divulgados pela Transparência Internacional[15]. Em todo caso, torna-se um modelo paradigma para ampliação e projeção técnica no debate.
[1] Doutor e Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP). Professor do Programa de Pós-graduação (mestrado) em Direito da UNIVEL. Professor de Direito Penal da FAE Centro Universitário. Professor de História das Instituições Jurídicas da FURB. Coordenador do Núcleo de Estudos em Ciências Criminais da FAE Centro Universitário (NECCRIM/FAE). Presidente do Conselho Estadual do Paraná da Associação Nacional da Advocacia Criminal (ANACRIM/PR). Conselheiro do IBDPE. Advogado Criminalista. E-mail: decio@dfdavid.com
[2] Por todos, PL 4480/2020.
[3] DAVID, Décio Franco. Corrupção no setor privado: fundamentos e criminalização. Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2020.
[4] Tradução livre do autor. Original em: SWEDEN. Swedish Penal Code. Disponível em: <https://www.government.se/contentassets/5315d27076c942019828d6c36521696e/swedish-penal-code.pdf>. Acesso em: 08 mar. 2021.
[5] Tradução livre do autor. Original em: SWEDEN. Swedish Penal Code. Disponível em: <https://www.government.se/contentassets/5315d27076c942019828d6c36521696e/swedish-penal-code.pdf>. Acesso em: 08 mar. 2021.
[6] Sobre: DAVID, Décio Franco; CAMBI, Eduardo Augusto Salomão. A legitimidade do Direito Penal para combater a corrupção. Revista dos Tribunais, ano 101, v. 924. São Paulo: Revista dos Tribunais, out./2012, p. 261-296, p. 275.
[7] ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do Direito Penal. 2.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 20-25.
[8] GRECO, Luis. Breves reflexões sobre os princípios da proteção de bens jurídicos e da subsidiariedade no Direito Penal. In: SCHMIDT, Andrei Zenkner (coord). Novos rumos do Direito Penal Contemporâneo: Livro em homenagem ao Prof. Dr. Cezar Roberto Bitencourt. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 409-410; e GRECO, Luís. “Princípio da Ofensividade” e Crimes de Perigo Abstrato – Uma introdução ao debate sobre o Bem Jurídico e as Estruturas do Delito. In: Modernização do Direito Penal, bens jurídicos coletivos e crimes de perigo abstrato. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 90 e ss.
[9] BERGSTRÖM, Michael. Corporate Criminal Liability and Negotiated Settlements as New Means to Fight Corruption in Sweden. Thesis in Criminal Law. Stockholm University, Faculty of Law, Stockholm, Sweden, 2014, p. 7. Disponível em: <http://su.diva-portal.org/>. Acesso em: 08 mar. 2021.
[10] BERGSTRÖM, Michael. Op. cit., p. 7.
[11] HATAKKA, Sara. Begreppet med fäste i gråzonen: korruptionsdefinitionen i Hufvudstadsbladets nyhetsrapportering. Examensarbete HT-13. Kriminologiska institutionen, Stockholms universitet, Stockholms, 2013, p. 21. Disponível em: <http://su.diva-portal.org/>. Acesso em: 08 mar. 2021.
[12] HATAKKA, Sara. Op. cit., p. 21.
[13] HÖRNLE, Tatjana. La protección de sentimientos en el STGB. HEFENDEHL, Roland. La teoría del bien jurídico: ¿fundamento de legitimación del derecho penal o juego de abalorios dogmático? Madrid: Marcial Pons, 2007, p. 383-399. No mesmo sentido, DAVID, Décio Franco. Análise crítica dos crimes contra o respeito aos mortos no direito penal brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 23, n. 117. São Paulo: Revista dos Tribunais, nov.-dez./2015, p. 154-159.
[14] SWEDEN. Swedisch National Council for Crime Prevention. Reported Corruption in Sweden: Structure, risk factors and countermeasures. Stokoholm: Swedisch National Council for Crime Prevention, 2013, p. 16.
[15] Nos últimos Índices de Percepção da Corrupção ocupou a 3ª posição como país menos corrupto do globo, cf. TRANPARÊNCIA INTERNACIONAL. Índice de Percepção da Corrupção 2018. Tradução Quote Translations. Berlim: Transparency International, 2019. Disponível em: <https://s3-sa-east-1.amazonaws.com/tibr-downloads/CPI-2018.pdf>. Acesso em: 08 mar. 2021 e TRANPARÊNCIA INTERNACIONAL. Índice de Percepção da Corrupção 2020. Disponível em: <https://comunidade.transparenciainternacional.org.br/ipc-indice-de-percepcao-da-corrupcao-2020>. Acesso em: 08 mar. 2021.
Este artigo reflete a opinião de seus autores e não necessariamente a opinião do IBDPE.
Este espaço é aberto aos Associados do IBDPE! Para submeter seu artigo, envie uma mensagem para contato@ibdpe.com.br.
Fragilização democrática e poder judiciário: A cumplicidade dos juízes no processo de ascensão de autoritarismos no Brasil
Bruno de Almeida Passadore e Camila Rodrigues Forigo
1 INTRODUÇÃO
O presente estudo terá por objeto de análise a fragilização da democracia brasileira a partir da eleição de Jair Bolsonaro, fazendo-se um paralelo entre referida situação e o papel do Judiciário. Será apresentada hipótese acerca das razões para ascensão do líder demagogo, bem como será abordado um movimento em sentido próximo, de viés altamente oligárquico e autoritário no âmbito da magistratura nacional.
2 DEMOCRACIA BRASILEIRA EM CRISE
O projeto de 30 anos atrás de “construir uma sociedade livre, justa e solidária”; “garantir o desenvolvimento nacional”; “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” e “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º da CF) parece algo vazio ante a persistente pobreza, desigualdade e injustiça que se mantém no Brasil.
Por natural, criou-se uma situação de desencanto em relação às previsões contidas na Constituição, colocando-a em claro descrédito social. A população, claramente insatisfeita com a situação, em detrimento de buscar novas formas de aprofundamento democrático para fazer valer a plena dignidade sua e de seus pares, iniciou um ciclo de desconfiança do regime iniciado em 1988.([1])
A resposta buscada, portanto — e incentivada por uma inadequada influência de alguns setores políticos insatisfeitos com uma série de privilégios que a Constituição lhes ceifou (ou deveria tê-lo) —, foi a tolerância com a exclusão e violações a direitos.
Afinal, sendo a sociedade uma organização artificial, pela qual uma ordem é gerada com o fito de estabelecer as bases políticas necessárias para que a sociedade se desenvolva em sua plenitude (SADEK, 2003, p. 18), o descompromisso com a factibilidade dos direitos sociais abre espaço para descontentamentos e buscas por alternativas fora do marco constitucional.
Como lembra Dahl, “a existência de convicção bastante disseminada entre cidadãos e líderes, incluindo as convicções nas oportunidades e nos direitos necessários para a democracia”, é algo que aumenta substancialmente as chances de sucesso de um regime democrático (DAHL, 2001, p 63). Consequentemente, a descrença nesses paradigmas, ocasionada por uma falha da organização política em garanti-los, é um fator de abertura para autoritarismo.
A crise da democracia brasileira deu mostras de evidente recrudescimento com a ascensão de Jair Bolsonaro à presidência. Alçou-se ao mais importante cargo da administração pública personagem claramente descomprometido com as balizas normativas e com padrões internacionais de Direitos Humanos; que levanta dúvidas sobre a legitimidade do sistema político brasileiro; nega legitimidade aos seus oponentes; encoraja a violência; e mostra clara propensão a restringir direitos e garantias fundamentais (FOLHA DE S. PAULO, 2018). Assim, possível, a partir do escólio de Levitsky e Ziblatt, classificá-lo como demagogo autoritário com tendências a subverter a ordem e romper com o pacto democrático (LEVITSKY; ZIBLATT, 2018, p. 33/34).
Historicamente, a literatura especializada igualmente justifica a ascensão de diversos totalitarismos em solo europeu na primeira metade do século XX a partir da incapacidade dos regimes liberais do entreguerras em fazer frente às crises econômicas do período e que levaram diversos países à bancarrota juntamente com seus cidadãos (MAZOWER, 2001, p. 19).
Utilizando-se de paradigma weberiano, cria-se uma situação pela qual fragilizam-se as características da dominação predominantemente burocrática na realidade do país, e em lugar de uma forma de organização baseada na universalidade das normas e capazes de conferir impessoalidade ao poder, se inaugura um movimento em prol de um regime sem limites. Essa nova organização política, fundada no carisma de alguém e não mais nas leis ou Constituição, legitima-se em uma fonte de poder extracotidiana livre de controle e, assim, capaz de realizar uma ligação direta entre o líder e o povo. Nesse aspecto, à liderança carismática é conferida a possibilidade de derrubar o passado e, de forma revolucionária, garantir-lhe a eficiência necessária para solucionar as mazelas que afligem a sociedade e incapazes de serem resolvidas pelas bases políticas tradicionais em ruínas. ([2])
3 O JUDICIÁRIO NESTA CRISE
Na mesma linha da crise democrática apresentada, entende-se que, na atual conjuntura, os órgãos jurídicos se aristocratizaram e, no momento, também assumiram uma postura de fragilização constitucional. Sem querer esgotar o tema, por ser este o local inadequado para tanto, analisa-se brevemente estudo do então magistrado Sérgio Moro acerca da operação Mani Pulite.
Percebe-se nítido descontentamento do autor com o arcabouço normativo, sendo proposto seu desrespeito com ares de “democrático”; e justificam-se medidas de legalidade duvidosa, uma vez que, na atualidade e supostamente, a “magistratura ganhou uma espécie de legitimidade direta da opinião pública” (MORO, 2004, p. 57) e, para mantê-la, deveria corresponder a anseios midiáticos([3]) ainda que isso signifique promover o vazamento de informações sigilosas, a deslegitimação do parlamento, a busca de delações e confissões ao arrepio da ordem jurídica, entre outras coisas (MORO, 2004, p. 58/59). Afinal, “a opinião pública favorável também demanda que a ação judicial alcance bons resultados” (MORO, 2004, p. 61) e, para corresponder a essa nova fonte de legitimidade da atuação jurisdicional — aparentemente não mais decorrente da Constituição —, diversas garantias constitucionais e a forma processualmente estabelecida para formação da culpa — como a observância da presunção de inocência — tornam-se claros empecilhos.([4]) Ademais, a intolerância com o iter processual penal ao arrepio da lei e da Constituição poderia criar um sentimento popular de que o Poder Judiciário seria inadequado ao combate à corrupção e ao crime organizado.([5])
Por outro lado, como se pode facilmente perceber, ao agir de acordo com a opinião pública e sob uma suposta ligação direta entre a sociedade e o juiz, insere-se na esfera de dominação, e tal qual na situação do líder carismático, um claro fator de irracionalidade e, portanto, de abertura para novas formas de organização que usualmente são exploradas pelo líder político demagogo e de tendência autoritária (WEBER, 1982. p. 256/257). Veja-se curiosa passagem doutrinária de José Renato Nalini:
“É isso o que deve legitimar um novo protagonismo do juiz contemporâneo. Protagonismo saudável, consequência da possível anomalia da função legislativa. […] O ordenamento torna-se opaco e o juiz lhe devolverá transparência, à medida que vier a aplicá-lo. O juiz, que já foi considerado braço do Executivo, é hoje o braço legitimador do Legislativo. É exclusivamente seu o desafio de fazer conformar a vontade da lei à vontade da Constituição”. (NALINI, 2008, p. 323)
Há, assim, um sistema jurídico no qual os supostos garantidores da ordem jurídica parecem entender que sua autoridade decorre de algum instituto supralegal e hipotético, acima das leis, oligopolizador e que eleva o magistrado a um local social acima do restante da sociedade. Preso nesse paradigma, e antes de ser guardião da lei, “o juiz torna-se o próprio juiz da lei” (MAUS, 2000, p. 196). Não surpreende, portanto, que o poder público deixa de se considerar submetido à Constituição, enquanto programa normativo vinculante, libertando-o a exercer poder sobre a sociedade de forma não racional e não universalizante.
Nesse corpo aristocratizado e altamente politizado, há forte dificuldade de ascensão de certos setores da comunidade, apesar de uma igualdade formal no acesso ao cargo de magistrado pela via de concurso público. A respeito, de acordo com pesquisa do Conselho Nacional de Justiça de 2018, “o perfil da magistratura no país é de homem, branco, católico, casado e com filhos” (CNJ, 2018), havendo, inclusive, uma acentuação do caráter masculino dos juízes brasileiros a partir de 2011, momento em que o percentual de juízas caiu para índices pré-década de 1990 (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2018, p. 9).
Em face dessa situação, conclui-se, na linha de Mosca, que prevalece como critério de acesso à burocracia brasileira — notadamente no Judiciário — menos o conteúdo e mais a submissão a um procedimento formal de aquisição de conhecimento. Para o autor siciliano, uma avaliação baseada unicamente na capacidade intelectual poderia ser prejudicial a esta elite e, assim, seria mais adequado conferir importância a um processo mais facilmente controlado no intuito de reproduzir a elite dominante (MOSCA, 1939. p. 58/59).
Assim, reproduz-se um perfil de escalonamentos sociais que se fecha para certos setores e facilita acesso a outros, permitindo um movimento inercial das elites que, apesar de alterações dos ocupantes de cargos a título individual, mantém no poder uma mesma ordem de privilegiados ainda que sob um discurso democrático. ([6])
Disso, e em que pese um pretenso projeto democrático, pelo qual a sociedade atuaria sobre si mesma, programando suas leis e Constituição, as quais, por sua vez, programariam e garantiriam a sua necessária execução através das decisões de órgãos administrativos, consolidou-se um movimento contrário. Os órgãos administrativos acabam por funcionalizar o Estado, direcionando, a seu juízo, a forma como a organização administrativa será imposta ao cidadão, e, assim, deslocam o procedimento de legitimação da sociedade para si próprios em evidente prejuízo à democracia (HABERMAS, 1990, 107/108; FAORO, 2012).
Percebe-se, tanto em Nalini como em Moro, clara tendência antidemocrática quando, em detrimento de reconhecer uma origem legal de seu cargo, que lhe confere anterioridade e legitimidade, abre-se a possibilidade para uma “ligação direta” e, nesse aspecto, extracotidiana entre o magistrado e os dominados, tal qual na análise da ascensão do líder carismático anteriormente exposto.
Ademais, enquanto representante dos novos “donos do poder”, não é surpreendente que o mesmo magistrado que entende que o Judiciário deva conferir legitimidade ao Legislativo, através de interpretações ousadas (para dizer o mínimo) de suas leis, defenda a concessão de auxílio de legitimidade duvidosa aos seus pares, uma vez que estes “tem 27% de desconto de Imposto de Renda” e “precisam comprar ternos e não dá para ir toda hora para Miami comprar terno”.([7]) Afinal, ante essa aristocratização que não é limitada por uma racionalização impessoal, abre-se espaço para, em detrimento de um paradigma baseado na igualdade intrínseca — imperiosa em uma democracia —, um sistema que tem por característica a superioridade de uma casta que funcionaliza as instituições (DAHL, 2001, p. 75/81).
4 CONCLUSÃO
A hipótese apresentada não se mostra de simples defesa e exposição, mormente em razão das limitações de espaço a que foi proposto o corrente estudo. Por outro lado, entende-se delimitada a sintonia entre o discurso que venceu as eleições presidenciais de 2018 e aquele gestado no Judiciário em mesmo período, algo que pode ser inclusive corroborado pela ascensão de Sérgio Moro ao cargo de ministro de Estado.
O argumento é o mesmo. Esgarçamento da racionalidade no modo de dominação e busca por fatores extracotidianos que supostamente possam conferir melhor resposta aos anseios populares. Como aponta Mosca, um dos principais fatores de manutenção ou mudança de elites é a sintonia ou não delas com as forças políticas dominantes que se apresentam (MOSCA, 1939. p. 65/66). Assim, ao ganhar campo um conjunto de ideias que procuram fragilizar uma ordem jurídica racional democrática, nada surpreendente que a mesma elite que comanda a estrutura jurídica que teria por pressuposto a manutenção dessa ordem milite em favor de uma estrutura irracional e altamente oligárquica, exatamente na linha dessas novas forças.
Bruno de Almeida Passadore
Doutorando em Teoria do Estado e Mestre em Direito Processual pela Universidade de São Paulo. Defensor Público no Estado do Paraná.
Camila Rodrigues Forigo
Doutoranda em Direito Penal pela Universidade de São Paulo. Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Secretária da Comissão da Advocacia Criminal da OAB-PR. Conselheira do IBDPE. Advogada Criminal.
FOLHA DE S. PAULO. Confiança na democracia sobe, mas insatisfação com seu funcionamento é de 58%. São Paulo, 04. Jun. 2019. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/06/confianca-na-democracia-sobe-mas-insatisfacao-com-seu-funcionamento-e-de-58.shtmll>. Acesso em: 04 jun. 2019.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Perfil sociodemográfico dos magistrados brasileiros. Brasília, 2018.
DAHL, Robert. Sobre a democracia. Brasília: Ed. UnB, 2001.
FAORO, Raymundo. Os Donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 5. ed. São Paulo: Globo, 2012. Versão e-book.
HABERMAS, Jürgen. Soberania popular como procedimento: um conceito normativo de espaço público. Trad. Márcio Suzuki. Revista do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), n. 26, mar. 1990.
LEBRUN, Gerard, O que é poder? São Paulo: Abril Cultural, 1984.
LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
MAUS, Ingebord. O Judiciário como superego da sociedade. Revista do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), n. 58, nov. 2000.
MAZOWER, Mark. Continente sombrio: a Europa do século XX. São Paulo: Cia das Letras, 2001.
MORO, Sérgio Fernando. Considerações sobre a operação Mani Pulite. Revista CEJ, Brasília, v. 8, n. 26, jul.-set. 2004.
MOSCA, Gaetano. The rulling class. Londres: Mcgraw-Hill Book Company, 1939.
NALINI, José Renato. A rebelião da toga. 2. ed. .Campinas: Millennium, 2008.
SADEK, Maria Tereza. Nicolau Maquiavel: o cidadão sem fortuna, o intelectual de virtù. In: WEFFORT, Francisco (org.). Os clássicos da política. São Paulo: Ática, 2003.
FOLHA DE S. PAULO. Veja 11 frases polêmicas de Bolsonaro. São Paulo, 06 out. 2018. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/veja-11-frases-polemicas-de-bolsonaro.shtml>. Acesso em: 02 jul. 2019.
WEBER, Max. Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: LTC, 1982.
_____, Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. v. 1. Brasília: Ed. UnB, 1999.
Notas
([1]) Vale registrar que esse dilema é corroborado por pesquisas recentíssimas sobre a opinião dos brasileiros acerca da democracia nacional e suas instituições. Segundo pesquisa veiculada em 04 junho de 2019 pelo jornal Folha de S. Paulo, 60% dos brasileiros consideram a democracia a melhor forma de governo, mas 58% se dizem insatisfeitos com as instituições, colocando o Brasil entre os últimos colocados em comparações com outros países em que a mesma questão foi avaliada (CONFIANÇA na democracia sobe, mas insatisfação com seu funcionamento é de 58%).
([2]) “A dominação carismática, como algo extracotidiano, opõe-se estritamente tanto à dominação racional, especialmente a burocrática, quanto à tradicional, especialmente a patriarcal e a patrimonial ou estamental. Ambas são formas de dominação especificamente cotidianas — a carismática (genuína) é especificamente o contrário. A dominação burocrática é especificamente racional no sentido da vinculação a regras discursivas analisáveis; a carismática é especificamente irracional no sentido de não conhecer regras. A dominação tradicional está vinculada aos precedentes do passado e, nesse sentido, é também orientada por regras; a carismática derruba o passado (dentro de seu âmbito) e, nesse sentido, é especificamente revolucionária. Esta não conhece a apropriação do poder senhorial ao modo de uma propriedade de bens, seja pelo senhor seja por poderes estamentais. Só é ‘legítima’ enquanto e na medida em que ‘vale’, isto é, encontra reconhecimento, o carisma pessoal, em virtude de provas; e os homens de confiança, discípulos ou sequazes só lhe são ‘úteis’ enquanto tem vigência sua confirmação carismática.” (WEBER, 1999, p. 160).
([3]) “[A] opinião pública, como ilustra o exemplo italiano, é também essencial para o êxito da ação judicial. […] Enquanto ela [a atuação judicial] contar com o apoio da opinião pública, tem condições de avançar e apresentar bons resultados” (MORO, 2004, p. 57 e 61).
([4]) “A presunção de inocência, no mais das vezes invocada como óbice a prisões pré-julgamento, não é absoluta, constituindo apenas instrumento pragmático destinado a prevenir a prisão de inocentes. […] Tal construção representa um excesso liberal com uma pitada de ingenuidade.” (MORO, 2004, p. 61).
([5]) “Em alguns casos, de fato, a descoberta de ilegalidade disseminada provoca críticas ao sistema judicial no sentido de que este estaria sendo inadequado para combater a corrupção.” (MORO, 2004, p. 62).
([6]) O perfil dos magistrados brasileiros é de pessoas com família de altíssima educação e originárias dos estratos sociais mais elevados; e tal oligopolização vem apresentando tendências de acentuação nos últimos anos. (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2018. p. 15).
([7]) Fazemos referência à entrevista do então Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, José Renato Nalini, à TV Cultura, defendendo a instituição do famigerado auxílio-moradia a juízes e promotores. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=AbrQc22CJE0>. Acesso em: 28 jun. 2019.
* Artigo publicado originalmente no Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), São Paulo, edição 322, set. 2019, p. 34 – 36[i].
([i]) O artigo publicado foi originalmente publicado no Boletim do IBCCRIM e, diante das decisões recentes do Supremo Tribunal Federal acerca da incompetência e parcialidade do ex-Juiz Federal Sérgio Moro na condução dos processos da denominada “Operação Lava Jato”, os autores entenderam relevante a republicação do artigo.
Este artigo reflete a opinião de seus autores e não necessariamente a opinião do IBDPE.
Este espaço é aberto aos Associados do IBDPE! Para submeter seu artigo, envie uma mensagem para contato@ibdpe.com.br.
Ação contra perda de direitos políticos por improbidade administrativa irá direto ao Plenário
Fonte: STF
O ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal (STF), decidiu levar para julgamento definitivo pelo Plenário a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6678, ajuizada pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), contra dispositivos da Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/1992) que prevê a perda de direitos políticos do agente público que praticar ato de improbidade. O relator dispensou a análise do pedido de liminar e adotou o rito do artigo 12 da Lei das ADIs (Lei 9.868/1999).
O PSB pretende que a incidência da suspensão dos direitos políticos prevista no inciso II do artigo 12 da lei se restrinja aos atos dolosos (intencionais) e que seja excluída a expressão “suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos” do inciso III. Segundo argumenta, essa previsão é desproporcional, pois trata de forma semelhante os casos em que houve a intenção de cometer o ato de improbidade e os casos em que, por alguma razão, tenha havido mero atraso numa prestação de contas, por exemplo. A seu ver, a perda dos direitos políticos é uma "sanção excepcionalíssima", somente autorizada nos casos de atos dolosos de improbidade administrativa que configurem lesão ao erário e enriquecimento ilícito.
A ação foi distribuída ao ministro Marco Aurélio por prevenção, pois relatou a ADI 4295, julgada improcedente pelo Plenário. Ao adotar o rito abreviado para o julgamento da ação, o relator pediu manifestação da Advocacia-Geral da União (AGU) e parecer da Procuradoria-Geral da República (PGR).
AR/CR//CF
Leia mais:
12/5/2010 - Supremo julga improcedente ADI contra Lei de Improbidade Administrativa
É correto falar em “efetividade” de programas de compliance?
Por Alexandre Knopfholz e Gustavo Britta Scandelari
- Introdução
Os programas de prevenção corporativa que sigam as balizas legais aplicáveis, que sejam planejados e implementados por profissionais comprometidos e experientes e que, consequentemente, logrem cultivar hábitos de transparência, fiscalização e ética muito provavelmente serão “efetivos” (ou melhor, como se explicará a seguir, serão idôneos[1]). Mas ainda parece que sejam poucos. Quando existem, resultam muito mais de um alinhamento moral pré-existente de pessoas específicas envolvidas no projeto e cujo mérito e esforço contínuos são decisivos do que de uma hipotética política público-privada bem-sucedida de fomento ao cumprimento da lei.
Profissionais que atuam no dia-a-dia junto a empresas de todos os portes no Brasil têm condições de afirmar, por experiência própria, que, infelizmente, a maioria das corporações ainda não se preocupa de fato com a adoção de programas de prevenção de ilícitos que realmente os previnam. Os objetivos normalmente têm sido ligados ao mero atendimento formal de obrigações legais ou à maximização do lucro[2]. Especialmente após a entrada em vigor da Lei 12.846/13[3], houve um aumento da demanda pelo serviço de auditorias, advogados e outros profissionais de compliance, mas o escopo principal tem sido ostentar a mera aparência de que há uma cultura de cumprimento – para, com isso, criar possível defesa quando ilícitos forem praticados – e não verdadeiramente conquistá-la para evitar ilícitos. Esses problemas foram constatados em pesquisas e estatísticas[4].
Hoje, é indiscutível que o objetivo principal de um programa idôneo deve ser a prevenção de ilícitos, juntamente com a sua detecção e o trato adequado dos que porventura já tenham ocorrido[5]. Umas das razões para isso é que “os casos de uma criminalidade praticada na empresa são (...) os mais complexos em termos de atribuição de responsabilidades”[6] e os programas (ao menos aqueles considerados idôneos da forma como se propõe na presente pesquisa) poderão contribuir para a correta delimitação e imputação de responsabilidades quando a autoria do fato for nebulosa[7].
2. O problema da ideia de efetividade dos programas de prevenção
Tanto os Estados que promulgam leis disciplinando programas de prevenção de ilícitos em empresas quanto os empresários que investem em tais programas provavelmente compartilham ao menos uma mesma preocupação: como saber se eles estão funcionando? A maior parte das leis[8] e das pesquisas[9] sobre o assunto tem utilizado a ideia de efetividade (ou, com menor frequência, eficácia). O problema é que esse vocábulo indica a necessidade de verificabilidade empírica, ou seja, exige que a prevenção seja provada como algo incontestável[10]. Se tal comprovação ocorrer, o programa será efetivo. Seria algo como a avaliação de um colete à prova de balas: feito o teste, se ele repelir o projétil, será efetivo. Se não o repelir, será inefetivo e, consequentemente, inútil para seu desiderato.
O problema, no que diz respeito aos programas de prevenção, é uma questão de lógica: não importa quão bom seja o programa, assim que ocorrer algum ilícito cuja prevenção estava no seu escopo, ele será imediatamente considerado falho e, obviamente, inefetivo[11]. Se ilícitos não forem evitados para sempre naquela empresa, o programa inevitavelmente será classificado, em algum momento, como falho. Como não parece que atos ilícitos serão completamente erradicados da realidade corporativa mundial a partir da implementação de ferramentas como os programas corporativos de prevenção, é só uma questão de tempo até que todo e qualquer programa seja considerado inefetivo (haja vista o significado do vocábulo). Por outro prisma, os ilícitos que tenham sido evitados também jamais são passíveis de registro, afinal, nunca ocorreram. Hipoteticamente, é possível que determinado programa de prevenção tenha repelido mais de 1.000 ilícitos em um período de 6 meses. Todavia, bastará a realização de apenas 1 ilícito para que ele sofra a pecha de inefetivo.
Uma má consequência do uso da ideia de efetividade para descrever programas de compliance é a avaliação pessimista a respeito da sua utilidade para o fim a que se propõe. Afinal, se nunca prevenirá ilícitos de forma efetiva, por que investir tempo e dinheiro neles? Mas a verdade é que não se pode avaliar programas de prevenção como se avaliam coletes balísticos. Estes são passíveis de verificação empírica de efetividade (projéteis são sempre uma realidade visível, assim como a eventual perfuração da veste de proteção), aqueles, não (ilícitos podem não ter repercussão natural alguma e são fenômenos dependentes de interpretação subjetiva). É impossível constatar materialmente ilícitos que foram evitados[12], assim como é impossível sustentar que algum programa de prevenção evitará ilícitos com 100% de sucesso, isto é, será infalível para sempre[13].
Então, é preciso alterar o foco da análise, adaptando-o à natureza do funcionamento dos programas de prevenção. Se é impossível medir a sua efetividade material, parece possível identificar fatores que apontem para a sua potencialidade de prevenção. Ou melhor: a sua idoneidade[14]. Tratando especificamente do quesito idoneidade de programas de compliance, a literatura aponta que “a idoneidade refere-se a que o conjunto de medidas de gestão adotado seja adequado e suficientemente compreensivo e abrangente para potencialmente ser efetivo, de maneira que a pessoa jurídica adote todas as medidas recomendadas como boas práticas administrativas para o seu específico tipo de negócio ou atividade, considerando todas as suas características”[15]. GUTIÉRREZ PÉREZ já sinalizou, quanto aos programas de compliance, que a sua “eficácia deve ser entendida desde um prisma da idoneidade genérica para evitar” a prática de ilícitos[16]. Isso é algo como dizer que eficácia, em tema de programas de compliance, significa idoneidade. Mas isso é uma proposição para que se altere o significado das palavras por mera convenção. E a rigor, é uma admissão de que se deve utilizar a noção de idoneidade em lugar de eficácia. O ideal seria adotar logo a palavra idoneidade, o que é mais simples e adequado do que lutar contra o significado das palavras “eficácia” ou “efetividade”, defendendo que o programa continua efetivo mesmo não tendo prevenido o ilícito[17].
Qualquer programa será inefetivo quando deixar de evitar um ilícito, mas um programa inefetivo não necessariamente será inidôneo, porque a sua idoneidade se refere à sua capacidade de evitar o ilícito e não à evitação concreta dele. Embora hipotética, essa capacidade é mensurável segundo critérios objetivos passíveis de verificação, o que torna a idoneidade não somente um conceito adequado para descrever programas de prevenção, como também útil para avaliá-los objetivamente.
A rigor, é possível que haja controle dos riscos de ilícitos em empresas sem o emprego formal ou profissional de métodos de prevenção, por serem desnecessários em ambiente no qual bons valores e as leis aplicáveis já são respeitados[18]. Porém, corporações de grande porte provavelmente não conseguirão criar e manter ambiente com riscos controlados sem o uso de um programa de prevenção complexo, formal e materialmente implementado. Nesse caso, quando tal programa atende aos requisitos objetivos de idoneidade, torna-se mais provável que determinados crimes sejam realmente evitados. Assim, a idoneidade corresponde, na prática, a um grau determinável de probabilidade de evitar ilícitos apresentado pelos programas de compliance. E isso pode ser aferido segundo critérios objetivos.
- Conclusão
Muitas vezes, a utilização equivocada de vocábulos é um erro puramente linguístico, formal e de pouco interesse prático. Outras, porém, são semânticas e geram sensível alteração na realidade fática. A distinção entre efetividade e idoneidade do compliance encontram-se no segundo grupo. É incorreto falar que determinado programa de prevenção é efetivo. A efetividade, como exposto, importa a conclusão de que jamais poderiam ocorrer ilícitos no âmbito da pessoa jurídica. E tal é impossível de prever. Daí porque se falar em um programa idôneo de compliance. Tal terminologia permite, a um só tempo, concluir pela adoção concreta de medidas de prevenção de ilícitos no âmbito das empresas, sem, contudo, desgarrar-se da inevitável realidade fática de que crimes podem ocorrer em qualquer lugar, por mais cautela que se possa ter. Não se pode crucificar uma empresa que adota programa idôneo de compliance mas, ainda assim, não evitou a ocorrência de delitos. O entendimento contrário seria o mesmo que apontar falhas da vítima que toma todas as cautelas para não ser assaltado e, ainda assim, o é.
Alexandre Knopfholz Mestre em Direito empresarial e cidadania pelo Centro Universitário Curitiba, especialista em advocacia criminal pela Faculdade Cândido Mendes, formado em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba e integrante do Escritório Professor René Dotti.
Gustavo Britta Scandelari é advogado e coordenador do Núcleo de Direito Criminal do Escritório Professor René Dotti.
- Referências bibliográficas
CARDOSO, Débora Motta. Criminal compliance na perspectiva da lei de lavagem de dinheiro. São Paulo: LiberArs, 2015.
DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. 8.ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1977.
__________. O suicídio, estudo de sociologia. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
FERRAZ, Sérgio Valladão. Programas de compliance: é possível aferir sua efetividade para fins penais? In COUTINHO, Aldacy Rachid; BUSATO, Paulo César (Org.). Aspectos jurídicos do compliance. Florianópolis: Empório do Direito, 2017.
GABARDO, Emerson; CASTELLA, Gabriel Morettini e. A nova lei anticorrupção e a importância do compliance para as empresas públicas que se relacionam com a Administração Pública. In A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, a. 15, n. 60, abr./jun. 2015, Fórum.
GARCÍA CAVERO, Percy. Criminal compliance. Lima: Palestra Editores, 2014.
GOENA VIVES, Beatriz. Responsabilidad penal y atenuantes en la persona jurídica. Madrid: Marcial Pons, 2017.
GONZÁLEZ DE LEÓN BERINI, Arturo. Autorregulación empresarial, ordenamento jurídico y derecho penal. Pasado, presente y futuro de los límites jurídico-penales al libre mercado y a la libertad de empresa. In SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María (Dir.); MONTANER FERNÁNDEZ, Raquel (Coord.). Criminalidad de empresa y Compliance – Prevención y reacciones corporativas. Barcelona: Atelier, 2013.
GUTIÉRREZ PÉREZ, Elena. Los compliance programs como eximente o atenuante de la responsabilidad penal de las personas jurídicas. la “eficacia e idoneidad” como principios rectores tras la reforma de 2015. In GÓMEZ DE LA TORRE, Ignacio Berdugo (Dir.). Revista General de Derecho Penal (RGDP), n. 24, novembro de 2015. Madrid: Iustel, 2015.
HAYASHI, Felipe Eduardo Hideo. Corrupção – combate transnacional, compliance e investigação criminal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015.
KLINKHAMMER, Julian. On the dark side of the code: organizational challenges to an effective anti-corruption strategy. In Crime, Law and Social Change, v. 60, issue 2, Springer Netherlands (Science+Business Media Dordrecht), jul./2013.
MOURA, Bruno. Autoria e participação nos crimes desde a empresa: bases para um modelo de imputação individual. In Revista CEPPG, a. 15, n. 25, 2º sem./2011. Catalão: Centro de Ensino Superior de Catalão, 2011.
MOTA FILHO, Humberto E. C.; CASAGRANDE, Morgana Ana Daler. Desenvolvendo programas de integridade efetivos: como traduzir o compliance para as pequenas e médicas empresas? In OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende; ACOCELLA, Jéssica (Coord.). Governança corporativa e compliance. Salvador: Juspodivm, 2019.
MUÑOZ DE MORALES ROMERO, Marta. Programa de cumplimiento “efectivos” en la experiencia comparada. In ZAPATERO, Luis Arroyo; NIETO MARTÍN, Adán (direct.). El Derecho Penal Económico en la era Compliance. Valencia: Tirant lo Blanch, 2013.
PORTO, Roberta Guasti; CASSINI, Flavia Tiemi Oshiro; LIMA, Mirela Clemente Pedrosa. Reflexões sobre a efetividade de programas de compliance. In OLIVEIRA, Luis Gustavo Miranda de. Compliance e integridade: aspectos práticos e teóricos, v. 2. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019.
SANEN, Claudia; DONEGÁ, Guilherme. Integridade e empresas no Brasil. In Transparência Internacional Brasil. São Paulo: Associação Transparência e Integridade, maio de 2018.
SCANDELARI, Gustavo Britta. Compliance como prevenção idônea de crimes e sua compatibilização com a intervenção mínima. In COUTINHO, Aldacy Rachid; BUSATO, Paulo César (Org.). Aspectos jurídicos do compliance. Florianópolis: Empório do Direito, 2017.
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge; SAAD-DINIZ, Eduardo. Compliance, Direito Penal e Lei Anticorrupção. São Paulo: Saraiva, 2015.
[1] A ideia de trabalhar com a característica de idoneidade para programas de prevenção já havia sido exposta, de modo superficial, em SCANDELARI, Gustavo Britta. Compliance como prevenção idônea de crimes e sua compatibilização com a intervenção mínima. In COUTINHO, Aldacy Rachid; BUSATO, Paulo César (Org.). Aspectos jurídicos do compliance. Florianópolis: Empório do Direito, 2017, p. 114-118.
[2] É claro que não se considera errado, de forma alguma, que o empreendimento privado tenha o lucro como objetivo, muito pelo contrário. O que se quer criticar é a comum (e nociva) extensão do objetivo de auferir lucro ao programa de integridade em si.
[3] GABARDO, Emerson; CASTELLA, Gabriel Morettini e. A nova lei anticorrupção e a importância do compliance para as empresas públicas que se relacionam com a Administração Pública. In A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, a. 15, n. 60, abr./jun. 2015, Fórum, p. 133.
[4] SANEN, Claudia; DONEGÁ, Guilherme. Integridade e empresas no Brasil. In Transparência Internacional Brasil. São Paulo: Associação Transparência e Integridade, maio de 2018, p. 1-56 (Disponível em https://transparenciainternacional.org.br/assets/files/conhecimento/relatorio-executivo.pdf. Acesso em 5 de janeiro de 2021): “ainda que as maiores empresas brasileiras tenham implementado sistemas de governança e controles internos nos anos recentes, cobrindo os riscos mais relevantes de corrupção, é preciso saltar ao próximo nível e garantir que esses esforços sejam efetivos na criação de um contexto de integridade” (p. 32); “as grandes empresas, por iniciativa própria ou por necessidade, têm dado mais importância a políticas anticorrupção. Divulgam seus códigos de conduta e criam suas áreas de compliance. Mas com frequência inaceitável tais iniciativas ficam no discurso, no papel” (p. 39); KMPG, “Maturidade do Compliance no Brasil”, final do 3º trimestre de 2015: pesquisa com aproximadamente 200 empresas de 19 segmentos e com receitas, em sua maioria, de R$ 300 milhões a R$ 5 bilhões, concluiu que a maturidade dos programas é baixa. Quase a totalidade das empresas não possuía infraestrutura mínima nos setores de compliance, investem muito pouco neles, não adotavam políticas anticorrupção claras e não utilizavam nenhum sistema de monitoramento, revisão e avaliação da efetividade dos programas (p. 7-12). Quase 20% das empresas respondentes sequer possuía programas de prevenção de ilícitos. Disponível em https://cndl.org.br/politicaspublicas/wp-content/uploads/estudos/Maturidade%20do%20compliance%20no%20Brasil%20-%20KPMG.pdf. Acesso em 4 de fevereiro de 2021. A mesma pesquisa foi realizada cerca de 1 ano depois, com cerca de 250 empresas, e os resultados se mantiveram quase iguais (KPMG, “Maturidade do Compliance no Brasil, 2ª edição”, 2º semestre de 2016, p. 11. Disponível em http://www.amchamrio.com.br/srcreleases/compliance2_bernardo_lemos.pdf. Acesso em 5 de julho de 2019). Em sua 3ª edição, realizada em 2017 e 2018, com 450 empresas das mais variadas dimensões e áreas, os resultados, embora melhores, continuavam preocupantes: 27% das empresas não possuíam estruturas dedicadas de compliance; 36% não contavam com recursos suficientes para o programa; 23% admitiram não possuir independência e autonomia; 53% não adotavam rotinas de monitoramento; 54% não executavam due diligence para a contratação de terceiros; 20% afirmaram não dispor de canal de ética/denúncias; 10% não possuem código de ética ou de conduta (Disponível em http://www.sistemafiep.org.br/rede-compliance/uploadAddress/Pesquisa_Maturidade_do_Compliance_3ed_2018_web_pag[83801].pdf. Acesso em 4 de fevereiro de 2021, p. 1-8); ICTS, Protiviti (Brasil), “Nível de Maturidade de Compliance das Organizações Brasileiras”, Edição 2017. Informações coletadas entre janeiro de 2016 e abril de 2017, com 1.417 participações: “principais resultados da pesquisa: (...) 45% das empresas participantes apresentaram nível de Compliance baixo, situação de extrema exposição a riscos de corrupção”. Disponível em https://www.protiviti.com/sites/default/files/pesquisa_de_maturidade_de_compliance_2017_0.pdf. Acesso em 5 de fevereiro de 2021; indicando um baixo nível de cultura ética em muitas empresas do setor financeiro (pesquisa com 1.122 organizações conduzida de 2014 a 2018): Direzione – transformando organizações, “Cultura ética no ambiente organizacional brasileiro”, julho de 2019, p. 1-4. Disponível em https://www.direzione.com.br/publicacoes. Acesso em 5 de fevereiro de 2021.
[5] GARCÍA CAVERO, Percy. Criminal compliance. Lima: Palestra Editores, 2014, p. 38-39.
[6] SILVEIRA, Renato de Mello Jorge; SAAD-DINIZ, Eduardo. Compliance, Direito Penal e Lei Anticorrupção. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 250-251.
[7] Em Direito penal, a literatura reconhece a necessidade de se criar novos marcos teóricos que possam se adaptar à realidade das grandes organizações econômicas, especialmente no que diz respeito a técnicas de imputação por conta das dificuldades de se identificar com precisão a autoria (MOURA, Bruno. Autoria e participação nos crimes desde a empresa: bases para um modelo de imputação individual. In Revista CEPPG, a. 15, n. 25, 2º sem./2011. Catalão: Centro de Ensino Superior de Catalão, 2011, p. 63).
[8] P.ex.: “effective compliance and ethics program” (EUA, Sentencing Guidelines, §8B2.1); “con eficacia” (Código Penal espanhol, art. 31 bis, item 2, 1ª); “l'efficace attuazione del modello” (Decreto Legislativo italiano 231/01, 7º, 4); “evaluación continua de la efectividad del programa” (Lei argentina 27.401/17, art. 23, VIII); “a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica” (Lei brasileira 12.846/13, art. 7º, VIII); “efetividade do gerenciamento dos riscos e dos processos de governança” (Lei brasileira 13.303/16, art. 9º, §3º, II); “demonstrar a efetividade de seu programa de governança” (Lei brasileira 13.709/18, art. 50, II); “deberá establecer métodos para la aplicación efectiva del modelo de prevención” (Lei chilena 20.393/09, art. 4º, item 4, a); “el fiscal o el juez (...) verifican la efectiva implementación y funcionamiento del modelo de prevención” (Lei peruana 30.424/16, art. 18).
[9] KLINKHAMMER, Julian. On the dark side of the code: organizational challenges to an effective anti-corruption strategy. In Crime, Law and Social Change, v. 60, issue 2, Springer Netherlands (Science+Business Media Dordrecht), jul./2013, p. 191-208. Disponível em https://doi.org/10.1007/s10611-013-9453-y. Acesso em 2 de fevereiro de 2021; STUCKE, Maurice E. In Search of Effective Ethics & Compliance Programs. 39 Journal of Corporation Law 769, University of Tennessee Legal Studies, Research Paper n. 229, 2014. Disponível em https://dx.doi.org/10.2139/ssrn.2366209. Acesso em 2 de março de 2021; MUÑOZ DE MORALES ROMERO, Marta. Programa de cumplimiento “efectivos” en la experiencia comparada. In ZAPATERO, Luis Arroyo; NIETO MARTÍN, Adán (direct.). El Derecho Penal Económico en la era Compliance. Valencia: Tirant lo Blanch, 2013, p. 211-230; GONZÁLEZ DE LEÓN BERINI, Arturo. Autorregulación empresarial, ordenamento jurídico y derecho penal. Pasado, presente y futuro de los límites jurídico-penales al libre mercado y a la libertad de empresa. In SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María (Dir.); MONTANER FERNÁNDEZ, Raquel (Coord.). Criminalidad de empresa y Compliance – Prevención y reacciones corporativas. Barcelona: Atelier, 2013, p. 91-100; PORTO, Roberta Guasti; CASSINI, Flavia Tiemi Oshiro; LIMA, Mirela Clemente Pedrosa. Reflexões sobre a efetividade de programas de compliance. In OLIVEIRA, Luis Gustavo Miranda de. Compliance e integridade: aspectos práticos e teóricos, v. 2. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019, p. 467- 604; HAYASHI, Felipe Eduardo Hideo. Corrupção – combate transnacional, compliance e investigação criminal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015, p. 183; CARDOSO, Débora Motta. Criminal compliance na perspectiva da lei de lavagem de dinheiro. São Paulo: LiberArs, 2015, p. 180; MOTA FILHO, Humberto E. C.; CASAGRANDE, Morgana Ana Daler. Desenvolvendo programas de integridade efetivos: como traduzir o compliance para as pequenas e médicas empresas? In OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende; ACOCELLA, Jéssica (Coord.). Governança corporativa e compliance. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 25-45.
[10] Pesquisa no verbete “efetividade” em HOUAISS ELETRÔNICO, versão monousuário 3.0, jun./09, Instituto Antônio Houaiss. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. O conteúdo do software corresponde à edição integral do Dicionário Houaiss da língua portuguesa.
[11] FERRAZ, Sérgio Valladão. Programas de compliance: é possível aferir sua efetividade para fins penais? In COUTINHO, Aldacy Rachid; BUSATO, Paulo César (Org.). Aspectos jurídicos do compliance. Florianópolis: Empório do Direito, 2017, p. 138-143.
[12] O problema, aqui, é similar ao da ação devida em crimes omissivos: consumado o crime, ele somente pode ser imputado ao autor por uma causalidade hipotética, haja vista que, como a ação devida não foi praticada (eis a omissão punível), nunca se sabe se ela realmente teria sido apta para evitar o resultado típico.
[13] Se não por essa abordagem lógica em programas de prevenção de ilícitos em empresas, pela conhecida análise sociológica segundo a qual uma certa porção de ilícitos é absolutamente natural em coletividades humanas e, por isso, não é passível de total eliminação: “o crime não é encontrado somente na maioria das sociedades desta ou daquela espécie, mas em todas as sociedades de todos os tipos. Não existe nenhuma em que não haja alguma forma de criminalidade. Esta muda de feitio, os atos qualificados de crimes não são os mesmos em toda a parte; mas sempre e em todo lugar houve homens que se conduziram de maneira a chamar sobre si a repressão penal. Se, pelo menos, a taxa de criminalidade, isto é, relação entre a quantidade anual de crimes e a quantidade de população tendesse a baixar (...) poder-se-ia acreditar que, embora permanecendo fenômeno normal, tendia, porém, o crime a perder esse caráter. Não temos, porém, nenhuma razão que nos permita crer na realidade desta regressão. Diversos fatos pareceriam antes demonstrar a existência de um movimento em sentido inverso. Desde o começo do século, a estatística nos fornece o meio de seguir a marcha da criminalidade; ora, ela aumentou em toda a parte. (...) Não existe, pois, fenômeno que apresente da maneira mais irrecusável todos os sintomas da normalidade, uma vez que aparece estreitamente ligado às condições de toda a vida coletiva” (DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. 8.ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1977, p. 57). Vide, também, DURKHEIM, Émile. O suicídio, estudo de sociologia. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 438-496, em que o autor se referiu especialmente ao homicídio e sua relação com as espécies de suicídio que estudou.
[14] Vocábulo que pode ser sinônimo de “apto, capaz” e que significa a presença de “qualidades para desempenhar determinada atividade”. Pesquisa no verbete “idôneo” em HOUAISS ELETRÔNICO, versão monousuário 3.0, jun./09, Instituto Antônio Houaiss. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
[15] FERRAZ, Sérgio Valladão. Programas de compliance: é possível aferir sua efetividade para fins penais? In COUTINHO, Aldacy Rachid; BUSATO, Paulo César (Org.). Aspectos jurídicos do compliance. Florianópolis: Empório do Direito, 2017, p. 145. Itálicos não originais. Acolhendo-se a crítica de FERRAZ (idem, p. 146), não se defende, aqui, que o programa de compliance possa servir, por si só e com base legal expressa, como causa excludente de imputação ou de pena (as possibilidades negociais estão de fora dessa análise). Mas o fato de que existem leis que o permitam e autores que defendam o compliance como impeditivo de responsabilização criminal não significa que o qualificativo idôneo seja inadequado. O que FERRAZ parece ter criticado foi o uso da expressão citada como argumento para impedir a punição dos responsáveis e não a sua utilidade para, tão só, avaliar a qualidade dos programas. Afinal, “(...) é possível analisar a idoneidade e a cultura de cumprimento da pessoa jurídica para fins de influir na fixação da dosimetria da pena” (idem, p. 147).
[16] GUTIÉRREZ PÉREZ, Elena. Los compliance programs como eximente o atenuante de la responsabilidad penal de las personas jurídicas. la “eficacia e idoneidad” como principios rectores tras la reforma de 2015. In GÓMEZ DE LA TORRE, Ignacio Berdugo (Dir.). Revista General de Derecho Penal (RGDP), n. 24, novembro de 2015. Madrid: Iustel, 2015, p. 20-21. Disponível em https://www.iustel.com/v2/revistas/buscador.asp?id=8&autor=%22Mar%C3%ADa%20Guti%C3%A9rrez%20Rodr%C3%ADguez%22. Acesso em 3 de março de 2021.
[17] Como se vê, p.ex., em GOENA VIVES, Beatriz. Responsabilidad penal y atenuantes en la persona jurídica. Madrid: Marcial Pons, 2017, p. 364.
[18] GARCÍA CAVERO, Percy. Criminal compliance. Lima: Palestra Editores, 2014, p. 99.
Este artigo reflete a opinião de seus autores e não necessariamente a opinião do IBDPE.
Este espaço é aberto aos Associados do IBDPE! Para submeter seu artigo, envie uma mensagem para contato@ibdpe.com.br.