ALGUMAS NOTAS SOBRE SOLIDARIEDADE NAS MEDIDAS CAUTELARES REAIS NO PROCESSO PENAL

Marion Bach[1]  e Isabela Maria Stoco[2]

O tempo, como se sabe, é um dos fatores que mais frustra a eficácia do processo penal. Seja o trâmite mais célere ou mais lento, há, sempre, um intervalo de tempo a permitir que ocorram eventos que afetem diretamente a utilidade – e, consequentemente, a justiça – do (futuro) provimento jurisdicional.

Na intenção de minorar os riscos advindos da passagem do tempo, o processo penal lança mão das chamadas medidas cautelares/assecuratórias. “São providências urgentes, com as quais se busca evitar que a decisão da causa, ao ser obtida, não mais satisfaça o direito da parte e não realize, assim, a finalidade instrumental do processo, consistente em uma prestação jurisdicional justa.[3]

As medidas cautelares, no âmbito do Processo Penal, são divididas em (i) medidas cautelares pessoais; (ii) medidas cautelares probatórias; e (iii) medidas cautelares reais. Quanto à última hipótese – que a estas linhas interessa -, a legislação processual prevê três distintas hipóteses: sequestro, hipoteca legal e arresto. Existem, porém, outras medidas constritivas previstas em leis extravagantes, como por exemplo - e sem a pretensão de esgotá-las -: (i) Lei nº 11.343 de 2006 (Lei de Drogas); (ii) Lei nº 9.613, de 1998 (Lei de Lavagem de Dinheiro), (iii) Lei nº 13.260 de 2016; (iv) Decreto-lei nº 3.240 de 1941; (v) Lei nº 11.346 de 2006 e (vi) Lei nº 13.322 de 2016.

As medidas assecuratórias reais – ou patrimoniais -, através da limitação da disponibilidade de bens, têm como objetivo assegurar a execução dos pronunciamentos patrimoniais de qualquer classe que possa constar da sentença condenatória[4]. Leia-se: buscam assegurar a reparação do dano ao(s) ofendido(s), o pagamento das despesas processuais[5], de eventuais penas pecuniárias e multas e, ainda, garantir o perdimento caso comprovada a origem criminosa dos bens e valores.

Tais instrumentos podem ser deferidos tanto na fase inquisitorial quanto já durante a Ação Penal.[6]

Não é demais afirmar que as medidas assecuratórias reais vêm ganhando significativo espaço nos últimos anos, no Brasil.

A previsão do art. 91 do Código Penal – sobre os efeitos secundários genéricos da condenação – ganhou novos contornos em 2008, com a obrigatoriedade de fixação de indenização mínima pelo juiz sentenciante, nos termos do artigo 387, IV, do Código de Processo Penal.

Mais recentemente, com a Lei nº 13.964 de 2019 (Pacote Anticrime), notadamente com a inserção do artigo 91-A do Código Penal - o qual reconhece o instituto da perda alargada do patrimônio incompatível com a renda do condenado -, adveio a permissão para o Estado adentrar no patrimônio não diretamente relacionado com o fato delitivo. Tornou-se possível, então, promover o confisco de (todos os) bens de posse do acusado, desde que, para tanto, o Ministério Público demonstre que tal patrimônio é incompatível com seu rendimento e, ao final, requerê-lo.[7]

Aliado a isto, o Pacote Anticrime incluiu o artigo 133-A no Código de Processo Penal, o qual autoriza a utilização dos bens apreendidos, sequestrados ou sob o regime de qualquer outra medida cautelar pelos órgãos públicos. Criada, então, a custódia provisória de bem apreendido – o qual, após o trânsito em julgado, poderá ser transferido definitivamente ao órgão que realizava tal custódia.

Em razão dos severos impactos na esfera individual econômica dos investigados, parece redundante afirmar que os valores e/ou bens assegurados deveriam limitar-se ao valor incontroverso nos autos, sempre obedecendo os pressupostos do fumus comissi delicti e periculum in mora[8], e, em caso de coautoria no cometimento do crime, que cada um respondesse na medida de sua culpabilidade. Não é, porém, a lógica que vem operando nos tribunais brasileiros.

A regra que atualmente impera é: se determinado crime – cometido em coautoria - produziu o prejuízo X ou permitiu o ganho ilícito no valor de Y, o Poder Judiciário automaticamente autoriza a constrição dos bens/valores no valor X ou no valor Y, na íntegra, de cada um dos corréus.

Veja-se, por exemplo, o Tribunal Regional Federal da 4º Região, no julgamento dos autos n. 5014604-14.2019.4.04.7000[9], ao entender que "a responsabilidade pela reparação dos danos decorrentes de atos ilícitos, até a liquidação, é solidariamente compartilhada por todos aqueles que os praticaram ou deles se beneficiaram" e, por consequência, "enquanto não definida a responsabilidade de cada coobrigado, a medida cautelar deve atingir os respectivos patrimônios das pessoas físicas e jurídicas, de forma simultânea e pelo montante integral correspondente ao valor mínimo estimado para o dano".

A lógica que parece guiar os pedidos ministeriais e os deferimentos judiciais é: se o crime foi causado por (por exemplo) dois réus e causou um prejuízo total (e atualizado) de R$ 100.000,00 (cem mil reais) à vítima, defere-se o bloqueio do valor total de R$ 100.000,00 (cem mil reais) de cada um dos réus. Assim, caso não haja sucesso em localizar e bloquear bens/valores de um deles, o outro suprirá (e, depois, ambos que se resolvam na esfera cível, em ação de cobrança regressiva...).

Tal lógica, porém, faz algum sentido[10] no momento da autorização/determinação das medidas cautelares reais. Porém, realizadas as cautelares, e supondo que foi, sim, localizado e constrito o valor integral de R$ 100.000,00 (cem mil reais) de cada um dos réus, como justificar – de modo razoável e proporcional – que tais valores sigam constritos? Se os valores declaradamente buscam garantir a restituição do prejuízo – o qual, por sua vez, está claramente delineado nos autos, em cem mil reais -, como justificar a manutenção do bloqueio do dobro do valor até o fim do processo?

Há situações em que o prejuízo causado (e atualizado) é de R$ 100.000,00 (cem mil reais) – em um crime licitatório, imagine-se – e são dez réus denunciados. Há, por anos a fio, a manutenção do bloqueio de R$ 100.000,00 (cem mil reais) no patrimônio de cada um dos réus, o que faz com que o Estado constrinja, por anos e anos, o valor de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais) para garantir, desde sempre, o valor de R$ 100.000,00 (cem mil reais).

Veja-se que, ao final, mesmo que advenha a condenação dos réus, injustiça já há. Isso porque cada réu perderá – na medida da própria culpabilidade apurada - parte do valor que estava constrito, e terá a si restituída a outra parte. Sobre essa parte restituída, o prejuízo é significativo, posto que foram valores que ficaram sem movimentação, sem investimento, sem a devida valorização.

Recentemente, as subscritoras presenciaram, em processo que atuam, a seguinte situação: três pessoas físicas – integrantes da mesma pessoa jurídica – foram denunciadas por crime licitatório. Tal crime teria causado um prejuízo de R$ 300.000,00 (trezentos mil reais) ao erário, em benefício da referida pessoa jurídica. O Ministério Público pugnou e o Poder Judiciário deferiu medidas cautelares reais no valor de R$ 300.000,00 (trezentos mil reais) para cada uma das três pessoas físicas denunciadas.

A pessoa jurídica – supostamente beneficiada pelo crime licitatório -, então, ofereceu o depósito judicial de (exatamente) R$ 300.000,00 (trezentos mil reais) para garantia do processo, pugnando, em troca, a liberação dos valores das pessoas físicas. O Ministério Público se manifestou contrariamente, alegando que há solidariedade entre as pessoas físicas. Ora, qual o sentido? O valor do prejuízo já não está garantido, na íntegra? Independentemente de qual réu – ou de quantos – seja condenado, há o valor assegurado, na íntegra. Ou seja, a medida assecuratória cumpre satisfatoriamente o seu papel.

Tal situação se agrava de modo contundente quando se verifica que, no campo do direito penal econômico, é bastante usual que haja medidas assecuratórias deferidas no âmbito penal e, exatamente pelos mesmos fatos, no âmbito do direito administrativo sancionador.

Pense-se, assim, em determinado fato que causa o prejuízo total ao Estado de R$ 200.000,00 (duzentos mil reais). Este mesmo fato é considerado um ilícito penal e um ilícito administrativo. Por consequência, o juízo penal deferirá cautelares patrimoniais na intenção de indisponibilizar R$ 200.000,00 (duzentos mil reais) de cada coautor denunciado, bem como haverá o (mesmo) deferimento no âmbito do administrativo sancionador.

O resultado é: para garantir a restituição de R$ 200.000,00 (duzentos mil reais) – advinda do prejuízo causado por apenas um fato -, torna-se indisponível R$ 400.000,00 (quatrocentos mil reais) de cada coautor do crime (sendo dez coautores, o Estado está indisponibilizando, por anos, R$ 4.000.000,00 (quatro milhões de reais) para salvaguardar um total de R$ 200.000,00 (duzentos mil reais) (!).

Não se olvida da justificação constitucional das medidas cautelares patrimoniais, as quais se destinam a concretizar e harmonizar direitos fundamentais em conflito, tampouco se olvida da importância de seu manejo para a garantia de um processo penal justo. Porém, caso sejam mantidas cegamente tais relatadas práticas, a cautelar passará a configurar, antes, uma inaceitável pena - sem processo - para o acusado.

 


[1] Advogada Criminalista. Doutora em Ciências Criminais pela PUC/RS. Mestre em Direito do Estado pela UFPR. Professora de Direito Penal em cursos de graduação e pós-graduação. Contato: marion@marionbach.com.br.

[2] Advogada Criminalista. Pós-graduanda em Direito Penal Econômico (PUC/MG) e Compliance (FAE). Contato: isabela@marionbach.com.br.


[3] FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 279.

[4] ARAGONESES MARTINEZ, Sara; OLIVA SANTOS, Andrés; HINOJOSA SEGOVIA, Rafael; TOMÉ GARCIA, José Antonio. Derecho Procesal Penal. 8ª ed. Madrid: Ramon Areces, 2007, p. 429.

[5] NICOLITT, André. Processo Penal Cautelar: prisão e demais medidas cautelares. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 130.

[6] "O legislador visa assegurar o interesse público ou o direito da vítima ou de seus sucessores em relação à futura reparação do dano proveniente do ilícito penal, podendo as medidas cautelares de sequestro, arresto e hipoteca legal serem propostas, visando assegurar a reparação do dano, durante a investigação criminal ou a ação penal, tendo como limite o trânsito em julgado desta ação" (LIMA, Marcellus Polastri. A tutela cautelar no Processo Penal. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, p. 164).

[7] MENDES, Tiago Bunning; LUCCHESI, Guilherme Brenner. Lei anticrime – a (re)forma e a aproximação de um sistema acusatório. 1.ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020, p. 85-86.

[8] Há doutrinadores que entendem que referidos requisitos são fumus boni iuris e periculum in mora. Vide: LIMA, Marcellus Polastri. A tutela cautelar no Processo Penal. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, p. 164. No mesmo sentido: AgRg no REsp 1861850/PR, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 08/09/2020, DJe 15/09/2020. Estamos, porém, com Marta Saad ao afirmar que “não se deve exigir a presença do fumus boni iuris, como na seara civil. Isso porque um juízo de probabilidade implicaria numa previsão da resolução final do processo, o que não se admite no âmbito criminal. Deve-se apenas fazer um juízo a respeito da materialidade delitiva e autoria, ainda que indiciário, sem prévia consideração da culpabilidade” (fumus comissi delicti). No que refere ao periculum in mora, entendido como o perigo causado pela demora inerente ao processo garantista, bem como o perigo da ocorrência de algum evento que dificulte ou impossibilite a efetividade da decisão, embora o Código de Processo Penal silencie a respeito da exigência de comprovação do risco efetivo de dano, que é necessário no âmbito do processo civil, não se pode dispensá-lo. Assim, devem ser colhidos elementos que tenham o condão de concretizar o dano temido, tais como indícios de que a situação patrimonial do investigado ou acusado sofrerá alterações no caso da não decretação de medidas patrimoniais.” SAAD, Marta. As medidas assecuratórias do Código de Processo Penal como forma de tutela cautelar destinada à reparação do dano causado pelo delito. Tese de Doutorado apresentada na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2007, p. 36 e ss.

[9] Neste sentido: TRF4, ACR 5014604-14.2019.4.04.7000, SÉTIMA TURMA, Relator DANILO PEREIRA JUNIOR, juntado aos autos em 28/08/2019. Ainda no mesmo trilhar: TRF4, ACR 5008589-29.2019.4.04.7000, SÉTIMA TURMA, Relatora SALISE MONTEIRO SANCHOTENE, juntado aos autos em 21/08/2019.

[10] Diz-se “algum sentido”, pois como se sabe, à lume da codificação civil brasileira – a qual tanto se apega o regime cautelar do processo penal -, a solidariedade das obrigações decorre da lei ou do contrato. Inexiste qualquer menção à solidariedade na lei penal e não há o que se falar em obrigação contratual da questão. "Art. 265. A solidariedade não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes."


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O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA E SUA APLICABILIDADE NOS CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA

 Por: Giulia Mazzetto Coqueiro[1] eIsabela Corso Baptista dos Santos[2]

 

RESUMO

Este artigo põe em análise o princípio da insignificância e sua aplicação nos crimes contra a ordem tributária. A doutrina majoritária atrela a existência do princípio a Roxin e menciona a tipicidade conglobante como importante aspecto para a análise do fato típico. O princípio em questão foi produto de uma construção doutrinária e o histórico de sua formação revela a necessidade de sua aplicabilidade para o ordenamento jurídico e também fundamenta a sua existência. O tema trabalhado neste artigo cujo escopo é entender a relação entre os dois institutos, envolve um conglomerado de jurisprudências, as quais serão objeto de estudo.

 

  1. INTRODUÇÃO

O Estado Democrático de Direito, pautado na Constituição de 1988, possui o Jus Puniendi, ou seja, a prerrogativa sancionadora do Estado - direito estatal de punir. No que tange à análise do crime e seus elementos, a teoria predominante no ordenamento jurídico brasileiro é a tricrômica ou tripartida. Essa teoria apresenta o crime como fato típico, ilícito e culpável.

A tipicidade, diretamente afetada pela incidência do princípio em estudo, pode ser analisada a partir de dois ângulos - formal e material - O aspecto formal é a mera relação entre o fato concreto e o tipo penal. No entanto, essa interpretação restritiva exclui o aspecto prático da conduta. Se sob a égide da teoria finalista da ação, a ação é uma conduta humana consciente e voluntária, dirigida a uma finalidade (WELZEL), a lei penal sempre será aplicada quando presentes os três elementos citados?  O caso em concreto pode demonstrar difícil compreensão quando além da lei penal, se relaciona com os costumes, bem jurídicos e princípios constitucionais. Dessa forma, o conflito entre Estado e indivíduo exige que, juntamente com a aplicação da norma penal, exista uma reflexão que seja capaz de relacionar os aspectos teóricos da lei com a prática dos casos em concreto. O princípio da razoabilidade demonstra que todo representante do Estado está, ao mesmo tempo, obrigado a fazer uso de meios adequados e de abster-se de utilizar meios e recursos desproporcionais. (BITENCOURT, 2011, p. 55).

Com isso, a teoria social da ação define a ação como uma conduta positiva socialmente relevante, dominada pela vontade e dirigida a uma finalidade[3]. Destarte, essa teoria desenvolvida por Jascheck e Wessels consegue vincular a aplicação do direito penal a uma conduta penalmente relevante e por fim, demonstrando a proporcionalidade entre a conduta e a norma.

A partir da tipicidade conglobante de Zaffaroni - tipicidade material juntamente com a antinormatividade - observa-se que a adequação do fato à norma envolve a proibição e o alcance proibitivo da norma. Portanto, a limitação ao ius puniendi propõe fazer-se mister que esteja presente o exame do bem jurídico tutelado antes da aplicação da lei penal ao caso em estudo.

 

  1. O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NO DIREITO PENAL: ANÁLISE JURISPRUDENCIAL

Com base no conflito entre indivíduo e Estado, foi verificado que nem todo resultado é penalmente relevante. Em 1964, Claus Roxin iniciou o estudo do princípio da insignificância, o qual seria analisado posteriormente no Brasil pelo jurista Francisco de Assis Toledo:

“Segundo o princípio da insignificância, que se revela por inteiro pela sua própria denominação, o direito penal, por sua natureza fragmentária, só vai até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico. Não deve ocupar-se de bagatelas. Assim, no sistema penal brasileiro, por exemplo, o dano do art. 163 do Código Penal não deve ser qualquer lesão à coisa alheia, mas sim aquela que possa representar prejuízo de alguma significação para o proprietário da coisa; o descaminho do artigo 334, parágrafo 1°, d, não será certamente a posse de pequena quantidade de produto estrangeiro, de valor reduzido, mas sim a de mercadoria cuja quantidade ou cujo valor indique lesão tributária, de certa expressão, para o Fisco; o peculato do artigo 312 não pode ser dirigido para ninharias como a que vimos em um volumoso processo no qual se acusava antigo servidor público de ter cometido peculato consistente no desvio de algumas poucas amostras de amêndoas.” (TOLEDO, 1982, p.133).

 

 

O STJ dispõe que: “A admissão da ocorrência de um crime de bagatela reflete o entendimento de que o Direito Penal deve intervir somente nos casos em que a conduta ocasionar lesão jurídica de certa gravidade, devendo ser reconhecida a atipicidade material de perturbações jurídicas mínimas ou leves, estas consideradas não só no seu sentido econômico, mas também em função do grau de afetação da ordem social que ocasionam." (STJ, 5ª Turma, AgRg no HC 480.413/SC, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 21/02/2019, publicado 01/03/2019).

Dessa forma, observa-se que que o STJ admite a aplicabilidade do princípio da insignificância caso o autor do fato seja reincidente, porém negou a sua aplicação em habeas corpus envolvendo reincidência específica[4].

 

  1. A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NOS CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA

O Direito Tributário, instituído pelo Art. 145 da constituinte, prevê o poder da criação de tributos pela União, Estado e Município como meio de viabilizar a garantia do desenvolvimento nacional. No que concerne a sua concretização na ordem tributária, percebe-se que muito embora o haja um sentido minorado da insignificância, nos crimes contra o sistema de tributação a ocorrência constitui-se como um dos mais nefastos e confrontadores tipos de delito, posto que coloca em voga a atuação estatal. Com sua prática torna-se cerceado o intuito basilar da tributação, o qual seja, promover o equilíbrio nas relações entre os que têm e os que não tem poder, ou ainda entre aqueles que têm mais poder e os que têm menos.

A Lei 8.137/90, chamada Lei dos Crimes Contra Ordem Tributária, vem justamente para incriminar a conduta de sonegar tributos, ao  discorrer como crime suprimir ou reduzir tributos -  ou quaisquer outras contribuições - omitindo informações, falsificando notas, fraudando a fiscalização, sob pena de aplicação de multa e reclusão. Na prática o que se observa é que o abalo entre o dever de pagar e a sonegação dos tributos acaba por refletir nos direitos fundamentais dos indivíduos ao passo em que ao valores não recolhidos não são aplicáveis na estruturação da sociedade.

Ocorre que, o sistema penal brasileiro admite a aplicação do princípio da insignificância no limite de R$20.000,00 (vinte mil reais) com a justificativa de que esse seria o montante que a Fazenda Nacional poderia requerer o ajuizamento de ação de execução fiscal[5]. É bem verdade que o Direito, enquanto ultima ratio deve criminalizar as condutas graves que levem a supressão ou diminuição da arrecadação tributária - com o fito de equilibrar a distribuição de riquezas e gerar equilíbrio entre o poder de tributar e a obrigação de pagar tributos - mas, os tribunais entendem que valores inferiores ao montante acima não seriam relevantes à atuação penal.

De acordo com o Sistema Tribunal Federal, em seus julgados recentes, existem alguns requisitos necessários à aferição da tipicidade penal, os quais sejam (i) a mínima ofensividade da conduta do agente, (ii) a nenhuma periculosidade social da ação, (iii) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (iv) a inexpressividade da lesão jurídica provocada[6]. No caso de lesão à aplicação tributária esse requisitos não são observados.Esse entendimento decorre da limitação da atuação do Direito Penal, afastando a sua imposição aos crimes que, pela sua característica de baixo grau de lesividade, não necessitam de sanção penal.

 

  1. CONCLUSÃO.

O Direito Penal é exceção à regra, sendo aplicável somente quando observados requisitos de ilicitude, culpabilidade e punibilidade. Deve ser invocado apenas quando outros ramos do Direito não forem suficientes à titulação dos direitos, o que, reitera-se, não ocorre nas sanções do Direito Tributário. O fato é tão verdade que na aplicação do sistema tributário, a banalização do Direito Penal fica evidente quando observado que com o pagamento dos tributos devidos, a punibilidade é extinguida, posto que não há como se falar em lesão ao bem jurídico. Em mesmo sentido, o princípio da insignificância nos crimes contra ordem tributária não atinge a tipicidade do fato, visto que não são verificados requisitos  - de consideráveis prejuízos - para que o ato criminoso seja considerado repulsivo e de imprescindível repressão estatal.

O que se conclui é que o Direito Penal na esfera tributária tem um único objetivo: de o Estado “ameaçar” a população para o pagamento do tributo. Não importa se já houve sonegação do imposto ou recolhimento indevido - mesmo com a observância da concretização do crime - quando há a devida quitação tributária, não existe mais crime e portanto, afastamento do Direito Penal.

Assim, o princípio da insignificância traduz a ideia de que o Direito Penal somente deve atuar na incriminação de situações com consequência juridicamente relevantes não cabendo na atuação do sistema tributário.

 


[1] Graduanda na Universidade Estadual de Londrina – UEL participante do Grupo de Direito Penal Econômico da PUC em Londrina\PR.

[2] Graduanda na Universidade Estadual de Londrina – UEL


[3] Comentários adicionados pelo autor na obra Direito Penal Esquematizado, 2019, no capítulo dirigido à análise da tipicidade

[4] HC 491.970/SP da 5ª Turma do STJ.

[5] Lei nº 10.522/02, que dispõe sobre o cadastro informativo dos créditos não quitados do setor público federal.

[6] HC  94.439 da 1ª Turma do STF discorrendo sobre o princípio da insignificância no caso concreto de furto.

 

  1. REFERÊNCIAS
  1. ESTEFAM, André. Direito Penal Esquematizado: parte geral. / André Estefam e Victor Eduardo Rios Gonçalves, Editora Saraiva, 2017, São Paulo
  2. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 5ª Turma, HC 491.970/SP, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 26/02/2019, publicado em 08/03/2019.
  3. CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal I. 16. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2012. 651p.
  4. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 5ª Turma, AgRg no HC 480.413/SC, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 21/02/2019, publicado 01/03/2019.
  5. Lei nº 522/02 e Portarias nº 75 e 130, de 2012, do Ministério da Fazenda.
  6. Primeira turma. Habeas corpus 94.439/RS. Rel. Min. Menezes Direito, julgado em 03/03/2009.
  7. GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte geral. v. 1. 12. ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Impetus, 2010. p. 63.

A CADEIA DE CUSTÓDIA E SEUS PRIMEIROS REFLEXOS NOS TRIBUNAIS

  Por: Rafael Junior Soares

O pacote anticrime inseriu no Código de Processo Penal o instituto da cadeia de custódia (arts. 158-A a 158-F), considerado como mecanismo importante para a lisura da prova na persecução penal, tendo em vista que há necessidade de se demonstrar documentalmente que o vestígio recolhido é o mesmo valorado na tomada de decisão judicial, pairando uma desconfiança entre as partes, a qual somente poderá ser superada pela correta demonstração dos elos inerentes à custódia da prova[1].

O objetivo da cadeia de custódia é o de “garantir a preservação da integridade dos vestígios de um crime, documentando-se, inclusive, os agentes estatais que tiveram contato com a prova”[2]. Diante disso, garante-se todo o percurso da prova, que vai desde o reconhecimento do vestígio até o descarte, de modo que eventual interferência poderá redundar na imprestabilidade[3].

A discussão mais importante reside nos desdobramentos que poderão ocorrer em razão da quebra ou não preservação da cadeia de custódia, tendo em vista que existem duas correntes com a defesa de consequências bem distintas. A primeira sustentando que a violação implicará na exclusão do material probatório, enquanto a segunda advoga que caberá ao juiz valorar o elemento probatório à luz da irregularidade constatada[4].

Neste contexto, independentemente da posição a ser adotada, é possível verificar os primeiros reflexos do novo instituto na jurisprudência, como por exemplo, a decisão prolatada pelo Superior Tribunal de Justiça no habeas corpus nº. 461.709/SP[5], no qual se reconheceu vícios no reconhecimento de vozes dos investigados. O caso examinado pela Corte Cidadã chama a atenção em dois aspectos: i) o reconhecimento de voz, em inobservância ao art. 226 do Código de Processo Penal; ii) a quebra da cadeia de custódia pela não conservação das vozes recolhidas na investigação preliminar.

Com efeito, o Ministro Rogério Schietti asseverou em seu voto o seguinte: “a inexistência de formalidade para a identificação do suspeito afasta seu potencial epistêmico. A gravação das vozes não foi preservada (quebra de cadeia de custódia), as falas não foram colocadas ao lado de outras, que com elas tivessem qualquer semelhança e não foi feito nenhum tipo de comparação, por perícia técnica, com as escutas dos sequestradores, que o delegado afirmou ter feito.”.

Desse modo, observa-se que o reconhecimento de voz realizado na delegacia de polícia não foi repetido em juízo, além de ter sido produzido em desconformidade com o art. 226 do Código de Processo Penal[6]. Assim, especialmente no que interessa ao presente trabalho, observa-se que as gravações de vozes não foram preservadas pelas autoridades, a fim de que pudessem ser comparadas em juízo, bem como periciadas e objeto de contraprova pela defesa.

Com efeito, o caso é muito interessante porque apresenta influxos concretos dos novos dispositivos na jurisprudência relativa à irregularidade da cadeia de custódia. Além disso, a partir do exame da decisão mencionada, entendeu-se como “ausentes critérios mínimos para garantir o nível de confiabilidade racional do elemento informativo”. Isso demonstra que a suposta quebra da cadeia de custódia foi interpretada como fator de diminuição da credibilidade da prova e não como sua ilicitude, cabendo ao magistrado valorar o elemento probatório.

Portanto, a inclusão da cadeia de custódia no ordenamento jurídico apresenta-se como mais um dos institutos essenciais para que ocorra uma “filtragem epistêmica” da prova penal[7], fixando-se procedimentos específicos para a produção de cada meio de prova, tudo com o objetivo de garantir um processo penal que seja capaz de respeitar as garantias processuais.

 


Rafael Junior Soares
Doutorando em Direito pela PUC/PR.

Mestre em Direito Penal pela PUC/SP

Professor de Direito Penal na PUC/PR. Advogado.

E-mail: rafael@advocaciabittar.adv.br


REFERÊNCIAS

BORRI, Luiz Antonio. SOARES, Rafael Junior. A cadeia de custódia no pacote anticrime. Boletim IBCCRIM, ano 28, nº. 335, p. 17-19, out./2020.

MATIDA, Janaina. A cadeia de custódia é condição necessária para a redução dos riscos de condenações de inocentes. Boletim IBCCRIM, ano 28, 331, p. 06-08, jun./2020.

MATIDA, Janaina. MASCARENHAS, Marcella; HERDY, Rachel. A prova penal precisa passar por uma filtragem epistêmica. Revista Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mar-13/limite-penal-prova-penal-passar-filtragem-epistemica. Acesso em: 30 abr. 2021.

MENEZES, Isabela A.; BORRI, Luiz A.; SOARES, Rafael J. A quebra da cadeia de custódia da prova e seus desdobramentos no processo penal brasileiro. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, vol. 4, n. 1, p. 281, jan./abr. 2018. Disponível em: https://doi.org/10.22197/rbdpp.v4i1.128. Acesso em: 30 abr. 2021.

PRADO, Geraldo. A cadeia de custódia da prova penal. São Paulo: Marcial Pons, 2019, p. 94-97.


[1] PRRADO, Geraldo. A cadeia de custódia da prova penal. São Paulo: Marcial Pons, 2019, p. 94-97.

[2] BORRI, Luiz Antonio. SOARES, Rafael Junior. A cadeia de custódia no pacote anticrime. Boletim IBCCRIM, ano 28, nº. 335, p. 17-19, out./2020.

[3] MENEZES, Isabela A.; BORRI, Luiz A.; SOARES, Rafael J. A quebra da cadeia de custódia da prova e seus desdobramentos no processo penal brasileiro. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, vol. 4, n. 1, p. 281, jan./abr. 2018. Disponível em: https://doi.org/10.22197/rbdpp.v4i1.128. Acesso em: 30 abr. 2021.

[4] MATIDA, Janaina. A cadeia de custódia é condição necessária para a redução dos riscos de condenações de inocentes. Boletim IBCCRIM, ano 28, 331, p. 06-08, jun./2020.

[5] HC 461.709, Rel. Ministro Rogério Schietti, Sexta Turma, DJ 30/04/2021.

[6] O Superior Tribunal de Justiça construiu precedente importante a respeito do reconhecimento de pessoas, o qual foi reproduzido para o reconhecimento de vozes: HABEAS CORPUS. ROUBO MAJORADO. RECONHECIMENTO FOTOGRÁFICO DE PESSOA REALIZADO NA FASE DO INQUÉRITO POLICIAL. INOBSERVÂNCIA DO PROCEDIMENTO PREVISTO NO ART. 226 DO CPP. PROVA INVÁLIDA COMO FUNDAMENTO PARA A CONDENAÇÃO. RIGOR PROBATÓRIO. NECESSIDADE PARA EVITAR ERROS JUDICIÁRIOS. PARTICIPAÇÃO DE MENOR IMPORTÂNCIA. NÃO OCORRÊNCIA. ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA. (...) Conclusões: 1) O reconhecimento de pessoas deve observar o procedimento previsto no art. 226 do Código de Processo Penal, cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se encontra na condição de suspeito da prática de um crime; 2) À vista dos efeitos e dos riscos de um reconhecimento falho, a inobservância do procedimento descrito na referida norma processual torna inválido o reconhecimento da pessoa suspeita e não poderá servir de lastro a eventual condenação, mesmo se confirmado o reconhecimento em juízo; 3) Pode o magistrado realizar, em juízo, o ato de reconhecimento formal, desde que observado o devido procedimento probatório, bem como pode ele se convencer da autoria delitiva a partir do exame de outras provas que não guardem relação de causa e efeito com o ato viciado de reconhecimento; 4) O reconhecimento do suspeito por simples exibição de fotografia(s) ao reconhecedor, a par de dever seguir o mesmo procedimento do reconhecimento pessoal, há de ser visto como etapa antecedente a eventual reconhecimento pessoal e, portanto, não pode servir como prova em ação penal, ainda que confirmado em juízo. (...) . (HC 598.886/SC, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 27/10/2020, DJe 18/12/2020).

[7] MATIDA, Janaina. MASCARENHAS, Marcella; HERDY, Rache. A prova penal precisa passar por uma filtragem epistêmica. Revista Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mar-13/limite-penal-prova-penal-passar-filtragem-epistemica. Acesso em: 30 abr. 2021.


 


Insider Trading: O Impacto desta prática no corpo social

Por: Lara Miranda Caloy1

Resumo: O estudo aborda a hodierna realidade, em que o direito penal econômico resvala em muitas searas da vida populacional. Nesse diapasão, o crime de insider trading corrobora esse cenário, haja vista, estar sendo muito debatido pelos tribunais e pela doutrina, a fim de sedimentar um entendimento que assegure certa estabilidade para a prática da legislação a pouco vigente. Assim, é primordial o estudo aprofundado desta temática, bem como entender os impactos deste crime para a sociedade, com vistas a garantir a seguridade e a liberdade.

1.     Introdução

A presente pesquisa é fruto de um estudo aprofundado sobre o crime de Insider trading muito em voga atualmente, mas que, conforme explicita o caso concreto, ainda não possui delimitações jurisprudenciais e doutrinárias suficientes para estabelecer sua base procedimental. Balizado a isso, precípua discorrer sobre o direito penal econômico em seu sentido amplo e analisar o crime outrora mencionado partindo da realidade.

Nesse diapasão, o problema objeto da pesquisa é: quais os impactos do crime de Insider Trading para o mercado de capitais atual? Sendo assim, o objetivo geral do trabalho é analisar a discussão que envolve o tema, por meio de casos concretos muito atuais e verificar a incidência desta prática e, por conseguinte, seus desdobramentos. Ademais, como objetivos específicos é possível mencionar, verificar o impacto do crime de insider trading no mercado de capitais, analisar o caso concreto e como os tribunais têm se debruçado na temática e observar as tendências doutrinárias basilares da prática.

No que tange a metodologia de pesquisa, o estudo que se propõe pertence à vertente metodológica jurídico-sociológica. No tocante ao tipo de investigação, foi escolhido, na classificação de Witker (1985) e Gustin (2010), o tipo jurídico-projetivo. O raciocínio desenvolvido na pesquisa será predominantemente dedutivo. Quanto à natureza dos dados, o estudo se baseia em dados secundários. De acordo com a técnica de análise de conteúdo, afirma-se que se trata de uma pesquisa teórica.

2.     Noções gerais do Direito Penal Econômico

Direito Penal econômico passa a ser visto como um ramo do Direito Penal geral que, com relativa autonomia, estuda, regula e aplica os dispositivos legais aos delitos praticados contra a ordem econômica (CIPRIANI, 2006, p. 438).

Primeiramente, antes de adentrar na temática ora em análise, insta salientar no que consiste o direito penal econômico hodiernamente. Nesse diapasão, como bem discorre Cipriani, tal ramo tornou-se independente e, por consequência, passou a ter maior aplicação prática, principalmente pelo desenvolvimento da ordem econômica.

É cediço que as relações comerciais têm se desenvolvido de forma exponencial, principalmente com as facilidades advindas da era tecnológica. À exemplo, investir na bolsa de valores tem se tornado muito mais prático e rápido através dos meios digitais e das possibilidades de se aprender com tutoriais online de como realizá-las.

Todavia, tal facilidade também impacta o direito penal econômico, haja vista, com o crescimento desta seara, as tendências de incorrência em crimes contra o mercado de capitais cresceram. Nesse âmago, urge que a população tenha o devido conhecimento sobre os efeitos desta prática ao adentrar nessa seara. Conforme bem adverte André Luiz Callegari:

 

[…] os efeitos característicos da criminalidade econômica são o da ressaca ou espiral, cuja descrição é a seguinte: num mercado de forte concorrência, a deslealdade se produz quando se esgotam as possibilidades legais de luta. Nesta situação, quem primeiro delinque acaba pressionando o resto à comissão de novos fatos delitivos (efeito de ressaca), e cada participante se converte assim no centro de uma nova ressaca (efeito de espiral). Este efeito de especial contágio se encontra facilitado porque o autor potencial é consciente do número enorme de delitos econômicos, da importância da cifra negra e da benignidade das penas previstas nas leis, suscitando uma imagem amável e positiva do criminoso (CALLEGARI, 2003, p. 25)

 

3.     Insider Trading

Este crime se caracteriza pela utilização de informações relevantes de que o autor tenha conhecimento. Mas ainda não foi divulgada no mercado e, aqui, é possível perceber o caráter sigiloso - elemento basilar do tipo. Além disso, é preciso que tal informação seja capaz de propiciar, para ele ou para outrem, vantagem indevida, mediante negociação.

Desta feita, é possível destacar quais são os elementos caracterizadores do crime e quem pode incorre-lo. No que tange ao primeiro, são três, a existência de informação privilegiada e não divulgada, ela pode ser veiculada por qualquer pessoa e ela precisa trazer efetiva utilização em negociações de valores mobiliários, para que se possa caracterizar a vantagem indevida. Já no que concerne ao segundo, resta claro que o crime pode ser cometido por qualquer um que tenha acesso a informação sigilosa, à título de exemplo, sócios, administradores, conselheiros, diretores, membros integrantes de órgãos técnicos e consultivos, membros do conselho fiscal, dentre outros.

Nesse ínterim, após a breve análise do tipo, é válido analisar um caso concreto em que tal prática foi identificada e como os tribunais têm se sedimentado diante de tal prática. Porém, antes disso, é mister observar que a doutrina e jurisprudência ainda não consolidou entendimentos que possam apaziguar o assunto, haja vista, haver alterações legislativas muito recentes na seara e casos eminentemente diferentes a serem tratados pontualmente.

PENAL E PROCESSUAL. CRIME CONTRA O MERCADO DE CAPITAIS. ART. 27-D DA LEI N. 6.385/1976. USO INDEVIDO           DE      INFORMAÇÃO PRIVILEGIADA – INSIDER TRADING. ALEGAÇÃO DE ATIPICIDADE DA CONDUTA. NÃO ACOLHIMENTO. DOSIMETRIA DA PENA. PENA-BASE. AUMENTO.          CULPABILIDADE

EXACERBADA. FUNDAMENTO IDÔNEO. PENA DE MULTA. APLICAÇÃO CORRETA. DANOS MORAIS. NÃO CABIMENTO. CRIME COMETIDO ANTES DA VIGÊNCIA DA LEI                     N.              11.719/2008. IRRETROATIVIDADE.

[…]

  1. A responsabilidade penal pelo uso indevido de informação privilegiada, ou seja, o chamado Insider Trading – expressão originária do ordenamento jurídico norte- americano – ocorreu com o advento da Lei n. 303/2001, que acrescentou o artigo 27-D à Lei n. 6.385/76, não existindo, ainda, no Brasil, um posicionamento jurisprudencial pacífico acerca da conduta descrita no aludido

 

 

dispositivo, tampouco consenso doutrinário a respeito do tema.

  1. A teor do disposto nos arts. 3º e 6º da Instrução Normativa 358/2002 da Comissão de Valores Mobiliários e no art. 157, § 4º, da Lei n. 6.404/1976, quando o insider detiver informações relevantes sobre sua companhia deverá comunicá-las ao mercado de capitais tão logo seja possível, ou, no caso em que não puder fazê-lo, por entender que sua revelação colocará em risco interesses da empresa, deverá abster-se de negociar com os valores mobiliários referentes às informações privilegiadas, enquanto não forem divulgadas. [...]
  2. No caso concreto, não há controvérsia quanto às datas em que as operações ocorreram e nem quanto ao fato de que o acusado participou das discussões e tratativas visando à elaboração da oferta pública de aquisição de ações da Perdigão S.A, obtendo, no ano de 2006, informações confidenciais de sua companhia – Sadia S.A. – as quais, no exercício de sua profissão, tinha o dever de manter em sigilo [...]
  3. O cargo exercido pelo recorrente na época dos fatos – Diretor de Finanças e Relações com Investidores da Sadia S.A. – constitui fundamento idôneo para justificar o aumento da pena-base, “diante da sua posição de destaque na empresa e de liderança no processo de tentativa de aquisição da Perdigão”, conforme destacou o acórdão recorrido.

[…] (REsp 1569171/SP, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, QUINTA TURMA,

julgado em 16/02/2016, DJe 25/02/2016)

 

Diante da análise do julgado ora exposto, resta claro que se trata de um caso envolvendo a Perdigão e a Sadia e como bem explicitado no excerto ainda não há um posicionamento cediço. Porém, diante do cargo de destaque do profissional da Sadia - Diretor de Finanças e Relações com Investidores - e da situação que o envolveu, restou eminente que ele possuía informações privilegiadas e da forma como foi exposto, incorreu na prática do Insider Trading.

 

4.     Conclusão

Mesmo as mais poderosas pressões só serão levadas em conta e elaboradas juridicamente a partir da forma como aparecem nas 'telas' internas, onde se projeta as construções jurídicas da realidade. Nesse sentido, as grandes evoluções sociais 'modulam' a evolução do Direito, que, não obstante, segue uma lógica própria de desenvolvimento. (TEUBNER, 1983, p. 249.)

A presente pesquisa ainda se encontra em estágio inicial. Desse modo, como conclusões parciais, é possível verificar que a dinâmica do insider trading está tomando forma de acordo com os casos práticos que são submetidos aos tribunais e a partir disso, a doutrina está realizando análises capazes de sedimentar a teoria com base na prática.

No entanto, é fato que tal crime está tendo fortes consequências na vida do corpo social e assim, é de suma importância que estes tomem os devidos conhecimentos do tipo e das bases que estão sendo lapidadas. Balizado a isto, também é imperial que o Direito se desenvolva e reflita as mudanças sociais, pois, conforme explicita Teubner, o ramo jurídico é fruto das relações humanas e fim para respaldá-las.

 


1 Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora – email: laracaloy@hotmail.com


5.     Referências Bibliográficas

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1569171/SP. PENAL E PROCESSUAL. CRIME CONTRA O MERCADO DE CAPITAIS. ART. 27-D DA LEI N. 6.385/1976. USO INDEVIDO DE INFORMAÇÃO PRIVILEGIADA – INSIDER TRADING. ALEGAÇÃO DE ATIPICIDADE DA CONDUTA. NÃO ACOLHIMENTO. DOSIMETRIA DA PENA. PENA-BASE. AUMENTO. CULPABILIDADE EXACERBADA. FUNDAMENTO IDÔNEO. PENA DE MULTA. APLICAÇÃO CORRETA. DANOS MORAIS. NÃO CABIMENTO. CRIME COMETIDO ANTES DA VIGÊNCIA DA LEI N. 11.719/2008. IRRETROATIVIDADE. Ministro

Gurgel de Faria. 16 fev. 2016.

CALLEGARI, André Luís. Direito penal econômico e lavagem de dinheiro: aspectos criminológicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.

CIPRIANI, Mário Luís Lírio. Direito penal econômico e legitimação da intervenção estatal – Algumas linhas para a legitimação ou não-intervenção penal no domínio econômico à luz da função da pena e da política criminal. In: D’ÁVILA, Fábio Roberto; SOUZA, Paulo Vinícius Sporleder (Coord.). Direito penal secundário: estudos sobre crimes econômicos, ambientais, informáticos e outras questões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

GUSTIN, Miracy Barbosa de Sousa; DIAS, Maria Tereza Fonseca. (Re)pensando a pesquisa jurídica: teoria e prática. 3ª. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010.

TEUBNER, Gunther. O Direito como Sistema Autopoiético. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989.

WITKER, Jorge. Cómo elaborar una tesis en derecho: pautas metodológicas y técnicas para el estudiante o investigador del derecho. Madrid: Civitas, 1985.


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COMPLIANCE OFFICER E POSIÇÃO DE GARANTE: CONSIDERAÇÕES SOBRE A DELEGAÇÃO DE FUNÇÕES EXECUTIVAS NO ÂMBITO COPORATIVO

Por: Lucas Rosa Zyngier

Na seara dos delitos omissivos impróprios, a doutrina discute sobre a possibilidade da configuração da posição de garante do compliance officer, o qual desempenha importante função nas grandes corporações. Diante desta problemática, surgem diversos questionamentos, dentre os quais podemos destacar o seguinte: “No caso de não haver a delegação de funções executivas ao oficial de compliance, poderá ele ocupar uma posição de garantidor?”.

Sabe-se que as funções destes profissionais não possuem contornos homogêneos, isto é, elas serão distintas conforme as peculiaridades de cada empresa1. Apesar desta heterogeneidade, mostra-se possível citar tarefas que costumam ficar ao encargo dos sujeitos em questão (funciones estândar), como: promoção de normas de conduta; análise prévia dos riscos penais envolvidos nos procedimentos da empresa; confecção de canais de denúncia, entre outras. Geralmente, as incumbências destes indivíduos se referem ao desenvolvimento e à manutenção da vigência de políticas e procedimentos internos ordenados com o fim de minorar os riscos de a empresa e seus funcionários praticarem ilícitos na persecução dos objetivos sociais empresariais2.

Relativamente à posição do encarregado de cumprimento no âmbito corporativo, frisa-se que ele ocupa um espaço imediatamente subordinado aos órgãos de direção, similar ao de um alto gerente. Além disso, ele possui independência em termos organizativos, econômicos e materiais, ainda que careça de faculdades executivas3.

Costuma-se afirmar, inclusive, que este profissional será eficaz quando a sua atuação se der com suficiente autonomia em relação à companhia, mas tendo, simultaneamente, apoio total dos recursos desta4. Em suma, o setor de compliance se constitui, apenas, em mais um órgão auxiliar5.

No que toca aos deveres do compliance officer, impende frisar que estes lhe são atribuídos por delegação. Brevemente: os deveres de garante pertencem, originariamente, ao empresário, uma vez que sua liberdade empresarial é acompanhada, necessariamente, pelo dever de cuidar para que a pessoa jurídica não lesione bens jurídicos de terceiros6.

Quanto à referida delegação de funções, pertinente demonstrar como ela se concretiza. Inicialmente, o empreendedor delega a coordenação e a execução de tarefas a determinadas pessoas (gerentes financeiros, de produção, de qualidade etc.). Deste modo, o seu dever de garante, referente às instalações e às atividades de risco, sofre uma mutação, transformando-se em um dever de supervisão e vigilância da atividade dos funcionários citados7.

Em um segundo momento, o empresário, atualmente titular do dever de supervisão e vigilância, realiza nova delegação, sendo que, desta vez, em face do compliance officer. Destarte, a obrigação do proprietário do empreendimento deixa de ser a de supervisão ativa (desenvolvimento de atividades de vigilância e controle sobre quem executa as tarefas empresariais), passando a ser de supervisão passiva (comunicar-se com quem executa materialmente os encargos de vigilância e controle, assim como tomar providências quando restar configurada determinada situação de perigo a bens jurídicos)8. Depreende-se, portanto, que o oficial de compliance passa a ostentar o dever de supervisão ativa.

Imprescindível realçar que o indivíduo analisado foi contemplado com a responsabilidade de desenvolver atividades de vigilância e controle sobre quem executa

as tarefas empresariais. Vale dizer, portanto, que não houve a delegação de funções executivas. Eis aqui o ponto nevrálgico para a análise da suposta posição de garantidor aqui debatida.

Nos delitos omissivos impróprios, o ponto de partida para a realização do juízo de equivalência entre ação e omissão diz respeito à possibilidade de agir para evitar o resultado. Tal exigência se deve ao fato de que seria ilógico exigir-se uma obrigação de agir quando não há capacidade de atuar conforme o dever objetivo de cuidado.

No caso do oficial de cumplimiento, frisa-se que ele não define as decisões a serem tomadas pela companhia, uma vez que a sua funcionalidade precípua é a de alertar sobre os riscos evidentes e inerentes às decisões9. De modo a fomentar ainda mais o debate, destaca-se que, na maioria das estruturas administrativas, o profissional ora analisado não possui conhecimento das decisões tomadas pela alta administração e, muito menos, poder de veto para barrar tais condutas10.

Diante disso, questiona-se: “como cogitar a imputação de um resultado delitivo, a título de omissão imprópria, a um sujeito que não teria meios de evitar o resultado?”. Como resposta, poder-se-ia dizer que, para que se configure o domínio para fins de evitação do resultado, o indivíduo deverá ter capacidade de administração e decisão dentro da empresa ou, ao menos, poder de veto/suspensão das condutas dos administradores. Sem que haja a delegação de tais poderes ao compliance officer, torna- se significativamente questionável a configuração da sua posição de garante, especialmente pelo fato de que o “poder agir” é pressuposto lógico e inarredável do “dever agir”.

 


Lucas Rosa Zyngier: Advogado. Graduado em Direito pela PUC/RS. Especialista em Direito Penal e Criminologia pela PUC/RS. Mestrando em Ciências Criminais pela PUC/RS. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8964930798072864


1 GÓMEZ-ALLER, Jacobo Dopico. Posición de garante del compliance officer por infracción del “deber de control”: una aproximación tópica. In: ZAPATERO, Luis Arroyo (org.); MARTÍN, Adán Nieto (org.). El Derecho Penal Económico en la era Compliance. Valencia: Tirant lo Blanch, 2013. p. 168.

2 GÓMEZ-ALLER, op cit., p. 168.

3 PLANAS. Ricardo Robles. El responsable de cumplimiento (compliance officer) ante el derecho penal. In: SÁNCHEZ, Jesús-María Silva (org.). Criminalidad de Empresa y Compliance – Prevención y Reacciones Corporativas. Barcelona: Atelier, 2013. p. 321.

4 McCONNELL, Ryan; MARTIN, Jay; SIMON, Charlotte. Plan Now or Pay Later: The Role of Compliance in Criminal Cases. Houston Journal of International Law. Houston: University of Houston Law Center, v. 33, n. 03, 2011, p. 55.

5 PLANAS, Ricardo Robles. El responsable de cumplimiento (compliance officer) ante el derecho penal. In: SÁNCHEZ, Jesús-María Silva (org.). Criminalidad de Empresa y Compliance – Prevención y Reacciones Corporativas. Barcelona: Atelier, 2013. p. 321.

6 PLANAS, op cit., p. 322.

7 SÁNCHEZ, Juan Antonio Lascuraín. La responsabilidad penal individual en los delitos de empresa. In: BARRANCO, Norberto J. de la Mata et al (org.). Derecho Penal Económico y de la Empresa. Madrid: Dykinson, 2018. p. 124.

8 GÓMEZ-ALLER, Jacobo Dopico. Posición de garante del compliance officer por infracción del “deber de control”: una aproximación tópica. In: ZAPATERO, Luis Arroyo (org.); MARTÍN, Adán Nieto (org.). El Derecho Penal Económico en la era Compliance. Valencia: Tirant lo Blanch, 2013. p. 175.

9 COSTA, Helena Regina Lobo da; ARAÚJO, Marina Pinhão Coelho. Compliance e o julgamento da APn

  1. 470. Revista Brasileira de Ciências São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 22, 2014. p. 223.

10 COSTA; ARAÚJO, op cit., p. 223-226.


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NOTAS SOBRE A SÚMULA 24 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E OS CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA

Por: José Ewerton Bezerra Alves Duarte[1] Mayara de Lima Paulo[2] eMatheus Ribeiro Barreto Dias[3]

 

1 INTRODUÇÃO

O Direito Penal, enquanto ultima ratio do sistema jurídico, possui em seu cerne um propósito básico: a proteção dos bens jurídicos mais relevantes e a eventual punição de ações que venham lesá-los, na esteira dos princípios da intervenção mínima, da fragmentariedade e da subsidiariedade (BITENCOURT, 2017).

Nessa esteira, o bem jurídico tributário se encaixa numa categoria especial - os ditos bens jurídicos institucionais de caráter coletivo (GUIRAO, 2005) -, que é correlacionado com determinadas atividades usualmente atribuídas ao Poder Público e imprescindíveis para a vida em sociedade (ALENCAR, 2006).

Logo, sendo a tributação um meio essencial para o funcionamento e a manutenção do Estado, chega-se à conclusão de que os tributos exercem uma função social voltada ao desenvolvimento individual e geral (PRADO, 2007), revelando, pois, a necessidade da tutela protetiva do Direito Penal, sobretudo, na vertente econômica (DIB, GUARAGNI, 2012), o que se encontra efetivado pela Lei nº 8.137/1990.

Na perspectiva do Direito Penal Econômico e ancorado na jurisprudência dos Tribunais Superiores, os crimes contra à ordem tributária previstos no art. 1º da Lei nº 8.137/1990 são delitos materiais, consumando-se com o lançamento definitivo do tributo, ou seja, é necessário um resultado consistente na redução ou na supressão do tributo, entendimento que se convencionou na súmula 24 do Supremo Tribunal Federal.

Convém, ainda, registrar que existem também os crimes formais, que constam do art. 2º da referida lei, de menor potencial ofensivo, o qual possui resultado, mas não é exigida a sua ocorrência para fins de consumação delitiva. Assim, o presente artigo tem por objeto a problematização das nuances e particularidades dos crimes materiais contra a ordem tributária a partir da aplicação do citado enunciado sumular, bem como debates correlacionados ao tema, por meio de uma revisão bibliográfica e documental, verticalizando-se numa análise doutrinária-jurisprudencial.

 

2 ASPECTOS DOUTRINÁRIOS E JURISPRUDENCIAIS DA REFERIDA SÚMULA

 

A súmula vinculante 24 surge em meio à discussão acerca da possibilidade de o Ministério Público propor ação penal por crime material contra a ordem tributária independentemente de outras questões de natureza processuais ou procedimentais, a exemplo da natureza da ação e do prévio debate em via administrativa para que seja definido a consumação desses crimes nos moldes do art. 1º da Lei nº 8.137/90 (MACHADO, 2013).

Estando, pois, a jurisprudência e a doutrina controvertidas quanto à questão do exaurimento prévio da via administrativa ou não para a proposição da ação penal em relação a esses crimes tributários, restou, assim, editada essa súmula, com o intuito de superar e unificar a interpretação normativa acerca da tipicidade material, assentando o entendimento de que, nos delitos materiais, o lançamento definitivo do crédito no processo administrativo é um dos fundamentais elementos para amparar o recebimento da ação penal, em que pese persistirem críticas dogmáticas sob a sua (in)aplicabilidade (MACHADO, 2013, pp. 112-113).

A par disso, alguns entendem que se trata de condição de procedibilidade para a configuração do tipo penal ou de um elemento normativo do tipo em tela, o que acarreta no não recebimento da inicial ou na rejeição da denúncia após a apresentação da defesa, conforme artigo 395, II, do Código de Processo Penal; enquanto outros afirmam que a inexistência da condição de definitividade do crédito tributário gera a falta de justa causa para o exercício da ação penal, prevista no inciso III desse mesmo dispositivo; de qualquer sorte, ambos levam à extinção do processo sem análise do mérito.

Os créditos tributários são comumente discutidos em sede de ações civis (anulatórias e embargos à execução). Nos casos em, no curso do processo-crime, houver a sua anulação com respectivo retorno à fase administrativa, o STF, no Agravo Interno em Reclamação 31.194/RS, de relatoria do Ministro Roberto Barroso, entendeu não pela extinção da ação penal, mas pela suspensão do processo e do curso do prazo prescricional enquanto perdurar o novo processo administrativo, apegando-se, para tanto, aos princípios da celeridade processual e da eficiência.

Dessa forma, observa-se que a Suprema Corte tem flexibilizado a incidência desse enunciado de natureza vinculante, de modo que, a exemplo desse caso, valem as indagações: Se houve a desconstituição da dívida fiscal, por que apenas suspender se a prescrição? Seria justo impor ao indivíduo as consequências de uma condução anômala do processo administrativo pelo Estado, que é o credor, o legislador e o julgador ao mesmo?

Ademais, ela também foi alvo de inúmeras críticas, pois, a partir da interpretação desta, inexistiria o início do prazo prescricional (BORRI, SOARES, 2014). Há ainda alegações de que os processos administrativos fiscais serviriam apenas como exame de corpo de delito para verificação da materialidade, mas nunca como condicionante à configuração da infração penal (REALE JÚNIOR, 2013).

Isso porque o conceito de crime, a partir da teoria tripartite, requer o fato típico, ilícito e culpável. No que tange ao crime tributário, destacam-se, neste sucinto trabalho, esses elementos: o fato típico, que é composto pela conduta, resultado, tipicidade formal e material (ou ainda a conglobante de Eugénio Raul Zaffaroni) e nexo causal, e a culpabilidade, que é subdividida em imputabilidade, consciência potencial da ilicitude e inexigibilidade de conduta diversa. Será que há tipicidade material quando o crédito tributário for de pequena monta? No Habeas Corpus 486.854/RJ, o Superior Tribunal de Justiça já aplicou o princípio da insignificância diante do ínfimo valor envolvido.

Assim, é preciso registrar que a peça acusatória deve ser dotada de justa causa, sob pena de adoção de uma responsabilidade penal objetiva e de respectiva violação do Estado Democrático de Direito, que, conforme Maria Thereza Rocha de Assis Moura (2001, p. 276), requer, sob seu aspecto material, a certeza da materialidade e a presença de indícios suficientes de autoria. Inclusive, nos autos do Habeas Corpus 106.152/MS, de relatoria da Ministra Rosa Weber, o STF entendeu que a exigência da súmula 24 não se aplica à fase investigatória.

Outra discussão decorrente dessa súmula, consiste na possibilidade de tramitação de inquérito policial junto à Polícia Judiciária ou de procedimento investigativo criminal pelo Ministério Público sem a constituição definitiva do débito tributário. À primeira leitura, considerando ser este um procedimento investigativo para reunir elementos probatórios acerca da existência da infração penal (materialidade) e da (co)autoria/(co)participação hábeis à configuração da justa causa para o início da ação penal (JORGE, 2011), entender-se-ia que, se não há materialidade por meio do lançamento definitivo do tributo, não há como instaurar ou permitir o prosseguimento dessa investigação.

 

3 DAS CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Dessarte, como expõe Decomain (2008), nota-se que os crimes contra a ordem tributária não violam tão somente o tributo fiscal enquanto objeto jurídico indisponível, mas atinge, outrossim, uma complexa rede de valores que permeiam o mercado econômico-financeiro, perpassando pela exigibilidade dos pagamentos dos tributos, o relacionamento com o fisco, a questão da idoneidade do contribuinte, a (in)competência da seara administrativa-cível de apuração das condutas, dentre outros aspectos.

Os seres humanos, no mundo globalizado, são complexos, assim como suas relações jurídicas. E, neste contexto, onde o Direito e o Estado regularam uma infinitude de áreas de atuação das pessoas físicas e jurídicas, não se pode perder de vista que a seara criminal é a ultima ratio e os entendimentos podem ser revisitados e aperfeiçoados no decurso do tempo.

Entretanto, é preciso sempre observar os ditames que sustentam o Estado (Democrático) de Direito, que tem princípios, direitos e garantias fundamentais, individuais e coletivos, erigidos na Constituição Federal.  Assim, é salutar refletir sobre a interpretação e a aplicação desses enunciados sumulares, a fim de evitar que, na tentativa de avançar, viole-se as premissas constitucionais, mormente quando a vítima direta é a fazenda pública enquanto credoras e implique-se em responder investigação criminal ou ação penal, que, por si só, já acarretam agruras pessoais e sociais aos indivíduos.

 


4 REFERÊNCIAS

 

ALENCAR, Romero Auto de. Crimes contra a ordem tributária: legitimidade da tutela penal e inadequação político-criminal da extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo. MS thesis. Universidade Federal de Pernambuco, 2006.

 

BITENCOURT, Cezar Roberto. Crimes Contra a Ordem Tributária. São Paulo: Saraiva Educação SA, 2017, Cap. 1.

 

BORRI, Luiz Antonio, e SOARES, Rafael Junior. A relativização da competência nos crimes tributários. Instituto Brasileiro de Direito Processual Penal. Boletim Informativo IBRASPP - Ano 04, nº 07 - ISSN 2237-2520 - 2014/02.

 

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 106152. Relatora: Ministra Rosa Weber. Brasília, julgado em 29/03/2016, publicado em 24/05/2016.

 

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus 486854. Relatora: Ministra Laurita Vaz. Brasília, julgado em 22/10/2019, publicado em 18/11/2019.

 

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação 31194. Relator: Ministro Roberto Barroso. Brasília, julgado em 29/11/2018, publicado em 03/12/2018.

 

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula Vinculante 24. Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei 8.137/1990, antes do lançamento definitivo do tributo. Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça, [2009].

 

DECOMAIN, Pedro Roberto. Crimes contra a ordem tributária. 4. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2008.

 

DIB, Natália Brasil e GUARAGNI, Fábio André. O princípio da insignificância e os crimes contra a ordem tributária: linhas críticas à jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Revista Jurídica 1.28 (2012): 378-405.

 

GUIRAO, Rafael Alcácer. La protección del futuro y los daños cumulativos. Revista Electrónica de Ciência Penal y Criminologia, n. 04-08, p. 25, 2002.

 

JORGE, Estêvão Luís Lemos. O contraditório no inquérito policial à luz dos princípios constitucionais. 2011. Dissertação (Mestrado em Direito) - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista, São Paulo, 2011.Disponível em: <https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/98938/jorge_ell_me_fran.pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso em: 27 abr. 2021.

 

MACHADO, Hugo de Brito. A irretroatividade da súmula vinculante 24 e a prescrição impeditiva da ação penal. NOMOS: Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFC, Fortaleza, v.33, n.1, 2013.

 

MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. Justa causa para ação penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.

 

PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico. 2 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.

 

REALE JÚNIOR, Miguel. Restrição ilegal. Boletim do IBCCRIM, nº. 245, abril de 2013.

 


[1] Mestrando em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará (PPGD/UFC). Pós-graduando em Docência do Ensino Superior pela Universidade Federal de Campina Grande. Especialista em Direito Constitucional pela Faculdade Futura de São Paulo (2021). Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Faculdade São Francisco da Paraíba (2019). Especialista em Direito Público pela Faculdade Legale de São Paulo (2020). Bacharel em Direito pela Faculdade São Francisco da Paraíba (2017). Pesquisador do GEDAI/UFC. Servidor Público Efetivo na Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social da Paraíba. E-mail: ewertonduartecz@gmail.com

[2] Advogada. Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará (PPGD/UFC). Bacharela em Direito pela Universidade de Fortaleza (2012). Membro do Núcleo de Estudos Aplicados Direito, Infância e Justiça (NUDIJUS/UFC) e do GEDAI/UFC. Membro do Conselho Jovem da OAB/CE. E-mail: mayaralp.adv@gmail.com

[3] Graduando em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Pesquisador do GEDAI/UFC. Pesquisador do Laboratório Internacional de Investigação em Transjurisdicidade (LABIRINT), vinculados à UFPB. Estagiário junto ao MPF-PB. E-mail: matheusbarreto14@hotmail.com


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O crime de frustração do caráter competitivo de licitação (art. 337-F, do Código Penal), a Súmula nº 645 do STJ e o problema da prescrição

Por: Camila Rodrigues Forigo[1] e Rodrigo Muniz Santos[2]

 

Em 10 de fevereiro de 2021, a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça aprovou a Súmula nº 645, com o seguinte enunciado: "o crime de fraude à licitação é formal, e sua ​​consumação prescinde da comprovação do prejuízo ou da obtenção de vantagem".

 

Pela própria data de edição, o verbete refere-se ao artigo 90 da Lei nº 8.666/1993[3], recentemente revogado pela nova Lei de Licitações[4], que inseriu o art. 337-F no Código Penal, com a seguinte redação:

 

“Art. 337-F. Frustrar ou fraudar, com o intuito de obter para si ou para outrem vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação, o caráter competitivo do processo licitatório:

Pena - reclusão, de 4 (quatro) anos a 8 (oito) anos, e multa.”

 

Fora o aspecto mais evidente, ou seja, o substancial aumento da pena, o legislador operou sutil alteração na estrutura do novo tipo, pois o “ajuste ou combinação” (condutas bilaterais) deixaram de figurar entre os elementos descritivos da conduta para cederem lugar ao que antes se definia como “qualquer outro expediente” (vale dizer: qualquer ato unilateral do agente destinado a frustrar ou fraudar o certame), conferindo maior amplitude à incriminação.

 

A mudança de redação não obsta a aplicação da nova Súmula, já que a conduta incriminada mantém seu traço essencial, que é a prática de qualquer expediente desonesto tendente a inviabilizar o caráter competitivo da licitação, independente do resultado.

 

A Súmula 645, portanto, supera alguns entendimentos isolados no âmbito do próprio STJ[5] e sedimenta a orientação de que a infração penal ora em análise é de natureza formal, instantânea e, por isso, desvinculada da adjudicação do objeto ou da assinatura do contrato administrativo, de modo que qualquer ato ou arranjo fraudulento, seja mediante combinação entre os licitantes ou entre estes e funcionários públicos, seja, ainda, por conduta unilateral de qualquer desses agentes, aperfeiçoa o crime.

 

André Guilherme Tavares de Freitas corrobora esse entendimento:

 

“Identifica-se nesse tipo penal a conduta de ‘frustrar ou fraudar o caráter competitivo do procedimento licitatório’, como meio de praticar tal conduta, o ‘ajuste, combinação ou qualquer outro expediente’ e, por fim, como resultado naturalístico desse proceder a ‘vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação’. Com efeito, apesar de o legislador mencionar nesse tipo o resultado naturalístico, não exige sua ocorrência para consumar o crime, mas apenas, que o agente tenha atuado com a intenção de (com o intuito de) obtê-lo, pelo que vindo efetivamente a alcançar este resultado o crime será tido como exaurido, porém consumado já estava desde o momento em que o caráter competitivo do certame foi frustrado ou fraudado. Temos aqui, por conseguinte, hipótese de crime formal.”[6]

 

A opção do legislador na construção do tipo penal, isto é, com abstração do resultado, revela-se congruente com o bem jurídico penalmente tutelado, que é moralidade administrativa[7], indistintamente lesada se houver ou não a efetiva entrega do objeto licitado ao vencedor do certame.

 

Aliás, o crime do novo artigo 337-F, tal como o anterior artigo 90, consuma-se mesmo quando, havendo a prática de fraude, o certame vier a ser suspenso, cancelado ou anulado pela própria Administração Pública ou pelo Poder Judiciário.

 

Se o crime fosse material, a conduta seria impunível caso o(s) agente(s) praticasse(m) a fraude, mas ao final ninguém se beneficiasse da adjudicação do objeto, tornando isentas de sanção eventuais condutas contrárias à moralidade administrativa.

 

Nessa perspectiva, a adjudicação a um dos concorrentes participantes da fraude constitui mero exaurimento, servindo como parâmetro apenas para a majoração da pena, nada mais.

 

Esse entendimento, prevalente na doutrina[8], foi consagrado tanto na jurisprudência do STF como do STJ, o que legitima a edição da Súmula 645. Veja-se:

 

STF: “3. O Plenário desta Corte já decidiu que o delito previsto no art. 90 da Lei 8.666/1993 é formal, cuja consumação dá-se mediante o mero ajuste, combinação ou adoção de qualquer outro expediente com o fim de fraudar ou frustrar o caráter competitivo da licitação, com o intuito de obter vantagem, para si ou para outrem, decorrente da adjudicação do seu objeto, de modo que a consumação do delito independe da homologação do procedimento licitatório”. (STF. HC 116680, Relator(a): Min. TEORI ZAVASCKI, Segunda Turma, julgado em 18/12/2013, DJe-030 DIVULG 12-02-2014 PUBLIC 13-02-2014)

 

STJ: "[...] LEI DE LICITAÇÕES. ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO PENAL. CIÊNCIA DA ILICITUDE DA CONDUTA. [...] ART. 90 DA LEI N. 8.666/1993. CRIME FORMAL. LISURA DAS CONTRATAÇÕES. DESNECESSIDADE DE PREJUÍZO AO ERÁRIO. [...] O crime previsto no art. 90 da Lei n. 8.666/1993 objetiva tutelar a lisura das licitações e contratações com a Administração Pública, bastando para sua consumação a frustração do caráter competitivo do procedimento licitatório por meio de expedientes fraudulentos, independentemente de efetivo prejuízo ao erário. [...]" (STJ. AgRg no AREsp 1127434 MG, Rel. Min. ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, DJe 09/08/2018 – destacamos[9])

O tema não mereceria maior atenção ou destaque não fosse pelo franco descompasso entre o entendimento agora sumulado e a jurisprudência construída pelo próprio STJ acerca do momento consumativo do crime do artigo 90 da Lei de Licitações revogada, para fins de cálculo da prescrição.              Como é cediço, o Código Penal estabelece, por um lado, que o crime é considerado consumado quando “nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal” (art. 14, I) e, por outro, que a prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa a correr “do dia em que o crime se consumou” (art. 111, I).             Isso leva à inevitável conclusão de que, nos crimes formais, de consumação instantânea, a prescrição é contada a partir da própria data em que a conduta for perpetrada, estando presentes todos os elementos da sua tipificação legal, sendo irrelevante o momento da produção do resultado.             Assim, por exemplo, no crime do artigo 304 do Código Penal, a prescrição é contada da data em que o documento falso foi utilizado, exibido ou apresentado. Na difamação (art. 139), da data em que a ofensa foi proferida ou publicada e, na corrupção passiva (art. 317), da data em que a solicitação ou exigência foi feita, independentemente da data do pagamento da vantagem indevida.              Já no novo crime do 337-F do Código Penal, considerando o teor da Súmula nº 645, a consumação se dará no momento da prática da fraude, levando à conclusão (óbvia) de que, para fins prescricionais, o prazo deve ser contado a partir desse momento.             Todavia, o STJ construiu, paradoxalmente, orientação que não guarda nenhuma sintonia com esse pensamento, estabelecendo que, para a contagem da prescrição, deve-se utilizar não a data do ajuste ou combinação (na redação da lei antiga) ou da consumação da fraude, mas da assinatura do contrato administrativo decorrente da licitação fraudada. Confira-se:

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EM HABEAS CORPUS. FRAUDE À LICITAÇÃO (ART. 90 DA LEI N. 8.666/1993). PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA EM ABSTRATO. NÃO OCORRÊNCIA. TERMO INICIAL PARA CONTAGEM. ASSINATURA DO CONTRATO ADMINISTRATIVO. AGRAVO NÃO PROVIDO.

  1. Esta Corte Superior já se manifestou no sentido de que, em relação ao delito previsto no art. 90 da lei n. 8.666/1993, o termo inicial para contagem do prazo prescricional deve ser a data em que o contrato administrativo foi efetivamente assinado. Nesse sentido: MS 15.036/DF, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 10/11/2010, DJe 22/11/2010; e HC 484.690/SC, deste Relator, QUINTA TURMA, julgado em 30/5/2019, DJe 4/6/2019.
  2. No caso em exame, tendo sido o contrato administrativo assinado em 17/12/2010 e a denúncia recebida em 10/12/2018, não transcorreu o prazo prescricional de 8 anos (art. 109, inciso IV, do Código Penal).
  3. Agravo regimental não provido.

(AgRg no RHC 136.462/MG, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 02/02/2021, DJe 08/02/2021)

Os posicionamentos adotados sobre os dois temas (consumação e prescrição) são totalmente contraditórios entre si, uma vez que, na definição da sua natureza, afirma-se que o crime é formal, ao passo que na contagem da prescrição utiliza-se a data do resultado material (que, aliás, nem sempre se produz, pois o certame direcionado pode ser interrompido ou cancelado antes da adjudicação).              Além dos julgados mencionados na ementa acima (MS nº 15.036/DF e HC 484.690/SC) e do MS 23608/DF, Rel.  Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Dje 05/03/2020, o tema da prescrição foi um dos enunciados da edição nº 134 do Jurisprudência em Teses do Superior Tribunal de Justiça, divulgada em setembro de 2019, que assim consignou:

 

8) Em relação ao delito previsto no artigo 90 da Lei 8.666/1993, o termo inicial para contagem do prazo prescricional deve ser a data em que o contrato administrativo foi efetivamente assinado.

 

Não seria surpresa, nesse cenário, se o STJ viesse a editar nova Súmula consignando que, para fins prescricionais, deve ser levada em conta a data de formalização do instrumento contratual, cristalizando a contradição.               Não há, com todo respeito, como sustentar logicamente a convivência de posicionamentos tão diametralmente opostos, pois ou se considera a consumação do crime com a prática da fraude ou frustração do certame ou se leva em conta somente a data de adjudicação do objeto ou assinatura do contrato, para todos os fins penais.             Alterar a natureza do crime, interpretando-o como formal ou material de acordo com a conveniência da situação em cada caso concreto, especialmente para postergar o momento consumativo e preservar o poder punitivo do Estado, é incompatível com a natureza da atuação jurisdicional do STJ e sua missão constitucional, que é justamente conferir harmonia – e coerência - na aplicação do direito pelos tribunais.             A natureza de qualquer ilícito penal é sempre uma só, seja para a análise da antijuridicidade e culpabilidade, seja para a imposição da pena, concessão ou denegação de benefícios legais ou, ainda, para aferir a subsistência do poder punitivo estatal.              A manutenção, pelo STJ, de posicionamentos tão díspares e incompatíveis entre si reduz a prestação jurisdicional à mera imposição do apelo à autoridade, sem compromisso com a integridade do sistema jurídico[10]. Trata-se, quando muito, de simples coerência estéril[11], uma vez que os posicionamentos “acomodados” pelas decisões do STJ não poderiam, em realidade - e por questão de lógica -, coexistir no mesmo campo de interpretação.             É dizer: ou o crime é formal ou é material, sempre, em qualquer situação.             A recente mudança legislativa, com a duplicação do quantum da pena e consequente aumento do prazo prescricional pode eventualmente retirar relevância da discussão ora em pauta, pela excepcionalidade do advento da prescrição em futuros direcionamentos de licitações, mas a contradição não deve ser simplesmente ignorada ao ponto de perpetuar-se.  A edição da Súmula nº 645, aliada à recente alteração do Código Penal (art. 337-F) sedimentaram, de forma categórica, a natureza formal do crime de fraudar ou frustrar o caráter competitivo do certame licitatório, razão pela qual a orientação jurisprudencial sobre o cálculo da prescrição deve ser revista, afastando-se a data de adjudicação ou assinatura do contrato como marco inicial de contagem da prescrição.             Afinal, a aplicação do direito exige racionalidade, não sendo aceitável desvirtuar a natureza do crime para, “heroicamente”, salvar dos efeitos da prescrição situações em que a aplicação correta dos dispositivos legais levaria a outro entendimento.

 


[1] Doutoranda em Direito Penal pela Universidade de São Paula (USP). Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Secretária da Comissão da Advocacia Criminal da OABPR. Conselheira do IBDPE. Advogada criminal.

[2] Mestre em Direito Processual Penal pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Ex-secretário da Comissão da Advocacia Criminal da OABPR. Advogado Criminal.


[3]Art. 90. Frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo do procedimento licitatório, com o intuito de obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação: Pena - detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa“

[4] Lei nº 14.133/2021, de 1º de abril de 2021

[5] Cfr. STJ - HC 484.690/SC, 5ª T., rel. Min. Ribeiro Dantas, DJe 04.06.2019 e HC 86.858/SE, 6ª T., rel. Min. Og Fernandes, DJe 09.12.2008

[6] FREITAS, André Guilherme Tavares de. Crimes na Lei de Licitações. 3.ed. Niterói: Impetus, 2013. p. 92.

[7] De acordo com Vicente Greco Filho, “o bem jurídico amparado é a moralidade e regularidade do procedimento licitatório, protegendo-se, no caso específico, a igualdade e a competitividade do certame(Dos crimes da lei de licitações, 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 2007, p. 73)

[8] A propósito: BITENCOURT, Cezar Roberto. Direito Penal das licitações. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 190/191; FREITAS, André Guilherme Tavares de. Crimes na lei de licitações. 3. Ed. Niterói, 2013. Em sentido contrário:  Vicente Greco Filho, sustenta ser “perfeitamente possível a tentativa, como, por exemplo, se, feito o ajuste ou a combinação, a licitação não venha a realizar-se por circunstâncias alheias a vontade dos agentes”, sinalizando para o entendimento de ser de natureza material o ilícito. (GRECO FILHO, Vicente. Dos crimes da lei de licitações. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 75).

[9] No mesmo sentido, confiram-se os seguintes precedentes do STJ: AgRg no REsp 1679993/RN, Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro, DJe 16/04/2018; AgRg no REsp 1737035/RN, Rel.Min. Nefi Cordeiro, DJe 21/06/2019; HC 300910/PE, Rel.Min. Ribeiro Dantas, DJe 06/03/2018; HC 341341/MG, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, DJe 30/10/2018; HC 373027/BA, Rel. Min. Ribeiro Dantas, DJe 26/02/2018; REsp 1597460/PE, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, DJe 03/09/2018; RHC 74812/MA, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, DJe 04/12/2017; RHC 94327/SC, Rel. Min. Ribeiro Dantas, DJe 19/08/2019 e  REsp 1498982/SC, Rel. Min.Rogerio Schietti Cruz, DJe 18/04/2016.

[10] STRECK, Lênio Luiz. Por que a discricionariedade, um grave problema para Dworkin e não o é para Alexy? In: Revista Direito e Práxis, nº 7, vol. 4, 2013, p. 343 – 367.

[11] PASSADORE, Bruno de Almeida. Precedentes e Uniformização de Jurisprudência: Uma Análise Crítica. Dissertação de Mestrado em Direito. Universidade de São Paulo, 2016. p. 194.


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A EXPANSÃO DO DOLO SOB A ÓTICA DA TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA.

Por: Bruno Artigas[1]

A teoria da cegueira deliberada ou wilfull blindness – como é conhecida nos Estados Unidos – vem sendo utilizada no Brasil de forma sedimentada pela jurisprudência em compatibilização com o instituto do dolo eventual, punindo de forma dolosa aqueles que teriam um desconhecimento intencional de determinado contexto fático que aponte para uma grande probabilidade de prática delitiva.

Saindo do prisma de definições teóricas sobre a cegueira deliberada, certo é que a respectiva teoria foi importada ao Brasil sem qualquer adequação teórica para os institutos pátrios em comparação com seu sistema jurídico originário[2], aparentando ser uma importação reducionista que tem como consequência polêmicas quanto sua efetiva aplicabilidade em consonância com os institutos do dolo e culpa na normatividade do Brasil.

Nesse caminho, adentrando no aspecto problemático de sua efetiva utilização como meio de verificação do dolo e consequente punibilidade na seara dolosa, a compatibilização feita de forma generalizada pela jurisprudência, mostra-se composta de certo reducionismo em detrimento da ausência de um estudo aprofundado e verificação de eventual possibilidade de compatibilização da forma de uso da cegueira deliberada em seu sistema jurídico de origem para o nosso, notadamente quanto aos pressupostos do dolo.

Ademais, o próprio instituto do dolo no ordenamento pátrio se mostra de extrema complexidade a ponto de ser inviável qualquer importação teórica sem antes passar por um filtro hermenêutico adequado. Não obstante, a temática do dolo ainda rende divergências doutrinárias quanto seus elementos constitutivos, notadamente quanto ao aspecto cognitivo e volitivo.

Moderna doutrina aponta como ponto fulcral do dolo a cognição e afastando o aspecto volitivo[3], contudo, a despeito da discussão doutrinária para melhor elucidação do que seria o dolo no ordenamento pátrio, o aspecto cognitivo é imprescindível para a efetiva existência do dolo para verificação do domínio sobre a realização do fato, independente da teoria seguida.

Nesse ponto que abrange a problemática da questão: Se o aspecto cognitivo é indispensável para a conduta ser dolosa, como seria possível punir o desconhecimento a título doloso, ainda que em sua modalidade eventual?

No tocante ao dolo eventual – modalidade que abarca a cegueira deliberada no Brasil -, esse encontra-se definido no Art. 18, I, apontado como a assunção do risco de produção de determinado resultado que constitua um delito, existindo o conhecimento quanto ao risco de sua conduta e conformação com o resultado lesivo[4], sendo assim indispensável o aspecto cognitivo[5].

De mais a mais, a cegueira deliberada é caracterizada pelo próprio desconhecimento no campo da ignorância, assim, a inserção da respectiva teoria no campo do dolo eventual sem a efetiva existência do conhecimento – de forma proposital ou não -, mostra-se extremamente temerária ao ponto de trazer um expansionismo à própria conceituação e aplicabilidade de dolo em caminhos que normalmente seriam percorríveis pela culpa.

Esse conceito extensivo do dolo pode até englobar violações ao principio da legalidade ante a previsão normativa do dolo no ordenamento jurídico brasileiro[6], sem mencionar que seria uma interpretação a malam partem em desfavor do réu, ao ponto que seria atribuível presunções de conhecimento em determinadas situações que exista a incidência da cegueira deliberada.

Ainda, pelo extenso campo de aplicação que a cegueira deliberada pode ganhar se aplicada de forma indiscriminada, nos parece que é utilizada em detrimento da própria dificuldade de verificação do dolo em determinadas circunstâncias fáticas e determinados tipos delitivos, como no de lavagem de capitais, e como pontua LUCCHESI: com indevida compatibilização de dever saber com o dolo eventual[7]. Ao passo que a utilização da respectiva teoria traria uma facilidade probatória a acusação, eis que o aspecto subjetivo do delito imputado poderia ser presumível com a imposição de uma obrigação investigatória através do dever saber.

No entanto, não é ônus do investigado suportar tal dificuldade através de interpretações a malam partem, importações de teorias expansionistas e imposições de deveres investigativos como se todos fossem garantidores de todas as relações sociais e bem jurídicos que o cercam[8], parecendo inclusive que a invocação da respectiva teoria quando insuficientes os elementos probatórios do dolo, realizar-se-ia uma espécie de inversão do ônus probatório, limitando-se assim a acusação a delinear as circunstancias fáticas e apontar a probabilidade de prática do delito no âmbito temporal do envolvimento do acusado, sem efetiva comprovação do aspecto do conhecimento que se torna prescindível se seguida a imputação subjetiva com fulcro na cegueira deliberada.

Desse modo, a aplicação da respectiva teoria atribuindo dolo quando há, no máximo, culpa, mostra-se aparente fruto de um viés punitivista através de um expansionismo do direito penal na forma da interpretação do dolo, e que o referido expansionismo advém das exigências de uma sociedade de risco ante a globalização da criminalidade, conforme interessantamente contextualiza HERNANDES[9].

Ao que pese a teoria da cegueira deliberada tentar vislumbrar aplicabilidade em situações de lacuna da imputação subjetiva[10], não parece ser aplicável no Brasil em razão dos institutos já impostos, tampouco aparenta existir uma compatibilidade com o dolo eventual, ao passo que o elemento cognitivo deve estar presente em todas as espécies de dolo[11] inclusive no eventual, e a falta de tal pressuposto mostra-se inaplicável a punição a título doloso, podendo no entanto discutir-se sua incidência no campo da culpa.

Em fundamental estudo jurisprudencial realizado por LUCCHESI, mostrou-se que por vezes a respectiva teoria é desnecessária na fundamentação de sentenças condenatórias em razão da já existência do preenchimento dos elementos subjetivos, sem necessidade de importação da cegueira deliberada para justificar a existência do dolo, desprovida de validade dogmática[12], e ainda que a respectiva teoria seja utilizada em casos de forma prescindível, sua interpretação generalizada poderá levar a punibilidade a titulo doloso mesmo quando inexistir o preenchimento de seus pressupostos, atingindo assim um verdadeiro expansionismo do conceito de dolo tendo como característica a prescindibilidade do conhecimento.

Por fim, para se efetivamente legitimar a aplicabilidade da respectiva teoria, seria necessário realizar uma ressignificação do conceito de dolo[13], ante a eminente incompatibilidade de punibilidade dolosa quando ausente o aspecto cognitivo.

 


[1] Advogado – OAB/PR 104.253. Pós-graduando em Direito e Processo Penal pelo CERS. Formado em Direito pela Universidade Positivo.


[2] LUCCHESI, Guilherme Brenner. Punindo a culpa como dolo: O uso da cegueira deliberada no Brasil. 1 Ed. São Paulo: Marcial Pons, 2018. P. 195

[3] GRECO, Luís. Dolo sem vontade

[4] MARTINELLI, João Paulo. DE BEM, Leonardo Schmitt. Lições Fundamentais – Parte Geral. 6ª Ed. Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2021. p. 594.

[5] BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Parte Geral. 21ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 362.

[6] HERNANDES, Camila Ribeiro. Cegueira deliberada e lavagem de capitais: problematizações doutrinárias e aplicação jurisprudencial no Brasil. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020. p. 147

[7] LUCCHESI, Guilherme Brenner. Punindo a culpa como dolo: O uso da cegueira deliberada no Brasil. 1 Ed. São Paulo: Marcial Pons, 2018. p. 161.

[8] Idem. p. 161

[9] HERNANDES, Camila Ribeiro. Cegueira deliberada e lavagem de capitais: problematizações doutrinárias e aplicação jurisprudencial no Brasil. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020. p. 27.

[10] SYDOW, Spencer Toth. A teoria da cegueira deliberada – 5ª Ed – Belo Horizonte: Editora D’Placido, 2020. p. 255.

[11] LUCCHESI, Guilherme Brenner. Punindo a culpa como dolo: O uso da cegueira deliberada no Brasil. 1 Ed. São Paulo: Marcial Pons, 2018. p. 152

[12] Idem. p. 196

[13] REGUÉS I VALLÈS, Ramón.La ignorância deliberada em Derecho Penal. Barcelona: Atelier Libros Jurídicos, 2007, apud HERNANDES, Camila Ribeiro. Cegueira deliberada e lavagem de capitais: problematizações doutrinárias e aplicação jurisprudencial no Brasil. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020. p. 148

 

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Parte Geral. 21ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

HERNANDES, Camila Ribeiro. Cegueira deliberada e lavagem de capitais: problematizações doutrinárias e aplicação jurisprudencial no Brasil. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020.

LUCCHESI, Guilherme Brenner. Punindo a culpa como dolo: O uso da cegueira deliberada no Brasil. 1 Ed. São Paulo: Marcial Pons, 2018.

MARTINELLI, João Paulo. DE BEM, Leonardo Schmitt. Direito Penal lições fundamentais – Parte Geral. 6ª Ed. Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2021.

SYDOW, Spencer Toth. A teoria da cegueira deliberada – 5ª Ed – Belo Horizonte: Editora D’Placido, 2020.


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Juiz não pode impedir reexame de acordo de não persecução penal

Por: Migalhas

A 2ª turma do STF mandou a câmara de coordenação e revisão do MP reexaminar a negativa de acordo de não persecução penal a uma venezuelana, condenada por tráfico de droga.

Na ausência de manifesta inadmissibilidade de ANPP - Acordo de Não Persecução Penal, juiz de 1º grau não pode impedir reexame de negativa do acordo em órgão superior do Ministério Público.

Com esse entendimento, a 2ª turma do STF determinou que a câmara de coordenação e revisão do MP reanalise a negativa de acordo de não persecução penal a uma venezuelana, usada como mula, em tráfico de drogas. No caso, o juiz de 1º grau havia indeferido a remessa dos autos ao órgão.

Na origem, trata-se de uma mulher venezuelana que, em tese, desempenhava um papel de "mula" no tráfico de drogas. Ou seja, ela era usada por traficantes para transportar a droga. A venezuelana foi presa preventivamente por tráfico internacional de drogas e, no caso, foi reconhecida a condição de tráfico privilegiado. Posteriormente, a ré foi condenada a mais de 4 anos em regime semiaberto.

A defesa da venezuelana, pela DPU, pretendia a celebração do acordo de não persecução penal com o MP, em razão da aplicação do redutor da pena da mulher por tráfico privilegiado. No entanto, o acordo foi recusado pelo MP sob o fundamento de não ser cabível o acordo, em razão da pena mínima e da gravidade do delito - tráfico de drogas.

Diante da negativa, a defesa acionou a Justiça; no entanto, o juízo de 1º grau indeferiu a remessa dos autos à câmara de coordenação e revisão do MP.

Reexame

Ao apreciar o caso, Gilmar Mendes, relator, entendeu que é inviável o acolhimento do pedido de reconhecimento judicial do direito ao ANPP. O ministro invocou dispositivos que estabelecem que não cabe ao Judiciário a imposição de acordo de não persecução penal.

No entanto, Gilmar Mendes atendeu o pedido da DPU, no que se refere à remessa dos autos ao órgão superior de coordenação e revisão do MP sobre o ANPP. Para o relator, não é legítimo que o Judiciário controle a recusa do ANPP quanto ao seu mérito a impedir a remessa ao controle superior no MP.

"A defesa tinha direito ao reexame da negativa apresentada pelo representante do MP em 1º grau, sendo ilegítima a recusa do julgador que impediu a remessa."

No caso concreto, Gilmar Mendes salientou que a inadmissibilidade do acordo não era manifesta, já que a pena mínima de cinco anos ao tráfico aplicado o redutor em fração proporcional ao caso, poderia ser cabível o ANPP.

O entendimento do ministro foi seguido por unanimidade pela 2ª turma.

Ricardo Lewandowski acompanhou Gilmar Mendes em maior extensão, pois entendeu que o juízo de piso não pode deliberar até que sobrevenha conclusão da câmara de coordenação e revisão do MP.


Muito prazer, somos advogadas criminalistas!

Por:  Thaise Mattar Assad

Fiat LuxFaça-se a luz”. A luz da palavra. Antes dela, tudo era escuridão. A palavra precedeu a escrita. Com a luz da palavra, ad vocatus: o surgimento daquele que é invocado para ajudar; terceira pessoa que o litigante chama, perante o juízo, para falar em seu nome, a seu favor, ou defender o seu interesse.

Talvez o primeiro ser humano que tenha se insurgido e conseguido conter abusos ou convencer detentores do poder, mostrando o caminho do razoável, seja o precursor da defesa de valores que hoje, para nós, são tão caros em nosso Estado Democrático de Direito, mas, além disso, talvez seja o primeiro a carregar em seu DNA o vício pela defesa da liberdade democrática.

Com a luz da palavra e depois de muito sangue derramado, temos o genuíno nascimento daquilo que hoje conhecemos como advocacia: substantivo feminino; pilar da democracia de qualquer Estado que se autodenomine como Estado de Direito.

Advocacia criminal: infantaria da classe advocatícia; a quem, segundo José Roberto Batochio, é reservado levar os primeiros golpes; exercício profissional de seres abnegados e intransigentes na defesa dos valores democráticos do Estado de Direito.

Advocacia criminal feminina: sinônimo de coragem; função desempenhada por aquelas que desatam nós, militantes de sua posição e história, que militam também (e principalmente) por reestabelecer a legalidade e liberdades perdidas de terceiros.

Somos advogadas criminalistas!

Eis nos aqui. Nós advogadas, por aqui termos chegado, temos que render todas as homenagens às heroínas que nos antecederam e abriram o caminho, e maiores homenagens ainda àquelas que acabaram ficando pelo caminho, por qualquer motivo, eis que nosso caminho não é de flores, é de pedras. Carregamos as mais diversas espécies de dificuldades, por conta de limitações que até então nos foram e são impostas, em uma bagagem histórica muito maior, que nos enche o peito de simbologia e sagacidade, mas que também, por vezes (muitas), nos cansa.

A sensação é de que estamos em permanente “estágio probatório”. Não é suficiente que sejamos boas, é suficiente que comprovemos nossa habilidade em desafios cotidianos que nos são impostos, em uma espécie de “jogo eterno”. “É advogada, com OAB e tudo? ”, “Seu marido sabe que você está na delegacia sozinha? ”, “Mas, e os seus filhos, ficam com quem? ”, “A Dra. está estressada? Tá de TPM? ”, “Quem é o advogado da causa? ”, “É Criminalista?! Com essa carinha? ”.

Além de toda a carga da advocacia – que não deixa de ser prazerosa, pois “eis nos aqui” –, misturada com a responsabilidade advinda da compreensão da nossa missão, precisamos desviar e pular o obstáculo da ignorância do machismo que, mesmo de forma mascarada, em sutis manifestações, nos atinge todos os dias.

Pedir o mínimo e o óbvio, para que possamos desempenhar com dignidade o nosso ofício, é quase que um “pedido de socorro”.

É necessário que saibamos nos postar diante de um “grito” intimidador de uma autoridade arbitrária que tenta “nos diminuir”, que, em verdade, quer mesmo que nos coloquemos “em nosso devido lugar”. Pois bem, muito obrigada, este é o nosso devido lugar: aqui e agora, na defesa intransigente do nosso direito de defesa.

Em verdade, esse contingente (cada vez maior) da força feminina na advocacia, reforça o compromisso histórico dos profissionais da advocacia criminal, a quem está afeta a defesa das liberdades individuais e, de um modo geral, a saga histórica e libertária da advocacia brasileira, que sempre foi resistente no arbítrio e jamais colaboracionista nos regimes de força.

Direito é desafio. A defesa é desafio. Sempre foi. Como salvaguarda de proteção de direitos e liberdades individuais, nossos parlamentares da Assembleia Nacional Constituinte optaram por denominá-la como “ampla”, já em situação de se encontrar a advocacia no sagrado solo do plenário do Tribunal do Júri, designaram a ela o predicado da “plena”.

Talvez seja esse o real motivo de ter sido, nossa Constituição Federal denominada “Cidadã”, pelo saudoso Ulisses Guimarães, a intocável ampla defesa. Dispomos de mecanismos em nosso direito interno e em pactos internacionais que a viabilizam e a asseguram todos os “meios e recursos a ela inerentes”.

Pela defesa, com a palavra, a advogada criminalista: em tempos de crise existencial do direito de defesa, emerge a voz da advocacia feminina na área penal. Com seus enfoques e força própria, se faz presente como uma extraordinária e resistente aliada, que a cada dia aumenta seu contingente.

Em verdade, todas devemos permanecer de mãos dadas em uma grande corrente de anteparo ao arbítrio. O ponto chave é: antes de exercer a defesa de nossos clientes, precisamos nos postar, prontamente, em defesa do nosso direito de defesa.

Muito prazer, somos a voz forte em defesa da democracia, somos advogadas criminalistas!

Fonte: Canal Ciências Criminais


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