O que é “lavagem de provas” na colaboração premiada?
por Guilherme Brenner Lucchesi[1] e Lucas Gandolfi Vida[2]
Imagine uma situação hipotética: o Ministério Público deflagra operação contra cinco alvos, todos dirigentes empresariais, a fim de investigar atos de fraude a licitações públicas, corrupção ativa e passiva e lavagem de dinheiro. Segundo o Ministério Público, os alvos integram suposta organização criminosa que, mediante o pagamento de vantagens indevidas a agentes públicos, mantinha-se hegemônica no mercado por vencer indevidamente licitações públicas. Parte dos recursos era movimentado para fora do país mediante companhias offshore.
Após diligências investigativas de interceptação telefônica e quebras de sigilo, houve a expedição de ordens de busca apreensão e mandados de prisão temporária contra os cinco dirigentes. Sabendo-se da existência de fortes indícios de atividade delitiva nos materiais apreendidos, dando conta de reiterada prática criminosa, dois dos cinco alvos, por recomendação de seus respectivos advogados, buscam o Ministério Público para a propositura de um acordo de colaboração premiada. Embora o MP já detivesse informações suficientes para a desarticulação da organização criminosa, percebeu, na busca, que os agentes possuíam outras informações relevantes do modus operandi da organização, bem como outras informações que poderiam levar ao desbaratamento de outras organizações criminosas conexas. Por isso, o MP dá início a tratativas com os dois potenciais colaboradores que, por sua vez, apresentam documentos relevantes que corroboram outros dados já arrecadados, de modo a guiar novas diligências em investigações que já estavam em curso, bem como auxiliam na compreensão da estrutura organizacional e na interpretação dos inúmeros documentos coletados.
São realizadas as tratativas pré-acordo, assinados termos de confidencialidade e entregues anexos com rica descrição das atividades criminosas desenvolvidas, acompanhadas de documentos ainda desconhecidos pelas autoridades e indicações de linhas frutíferas para as investigações em curso. Em síntese, estão preenchidos todos os requisitos para a celebração do acordo, resultante em benefícios aos colaboradores e em provas para serem usadas pelo Ministério Público. Contudo, sob a justificativa de que as informações apresentadas seriam insuficientes – alegação de suposta justa causa – o membro do Ministério Público rejeita a oferta de acordo, devolvendo os documentos e encerrando as tratativas com os pretensos colaboradores. Todos os alvos são denunciados, e a peça acusatória apresenta peculiar riqueza de detalhes sobre os fatos em apuração, não descrita no requerimento de busca e apreensão e prisão temporária dos alvos. Indica-se ter havido novas diligências investigativas posteriormente às buscas e prisões. Tais medidas foram baseadas nas informações obtidas nas tratativas com os pretensos colaboradores?
Há uma questão relevante surgida a partir do exemplo hipotético. Tendo em vista o aparente uso das informações fornecidas pelos alvos durante as tratativas, não se pode simplesmente afirmar que as novas provas, obtidas a partir de diligências investigativas posteriores, tenham sido obtidas por fonte propriamente independente. Caso a investigação tenha sido direcionada para obter algo que não estava ao alcance das autoridades antes das tratativas preliminares de acordo, pode-se reconhecer que os pretensos colaboradores auxiliaram na elucidação do fato e na construção da narrativa acusatória. Caberia um argumento pela impossibilidade de rejeição unilateral do acordo diante de uma efetiva colaboração pelos investigados.
Tendo em vista que as diligências investigativas resultaram na obtenção de provas inicialmente identificadas nas tratativas iniciais para a colaboração premiada, pode-se efetivamente dizer que as informações obtidas dos pretensos colaboradores foram efetivamente utilizadas? Desse questionamento surgem outros, referentes à eventual quebra de custódia da prova e quanto à criação de um mecanismo interno de controle da discricionariedade do Ministério Público na celebração/recusa de acordos.
É neste contexto que identificamos o fenômeno da lavagem de provas, compreendida como a dissimulação ou a ocultação da origem de uma informação inutilizável no processo como fonte de meios de prova, a fim de conferir aparência de legitimidade à sua origem.
Ainda que este fenômeno possa ter lugar em outros momentos processuais, optamos por explorá-lo justamente à luz de sua potencial incidência na formação dos acordos de colaboração premiada, em artigo recente publicado na Revista Brasileira de Direito Processual Penal, v. 7, n. 3, sob o título “Perspectivas quanto à lavagem de provas na colaboração premiada: proposta para controle de abuso processual”. [3]
O artigo busca compreender o fenômeno da lavagem de provas, a partir da definição proposta, analisando os contornos legais do fenômeno e a (i)licitude das provas dele derivadas. Ademais, também examinamos a lavagem de provas também à luz da cadeia de custódia das provas, de modo a verificar se a obtenção — premeditada ou não — de informações fornecidas pelo pretenso colaborador, sem a concessão de um benefício premial, viola alguma regra processual penal. Por fim, buscando estabelecer medidas para controle da ocorrência do fenômeno, apresentamos possíveis soluções extraídas a partir da experiência do programa de leniência do CADE.
Tratando-se de discussão ainda incipiente na práxis dos acordos de colaboração premiada, de relativa complexidade teórica e prática, o tema da lavagem de provas merece discussão qualificada na doutrina processual penal. Enfatiza-se que, mais do que trazer as consequências jurídicas e as eventuais soluções definitivas, o trabalho buscou explorar uma possível saída, assim como um modo de controlar a lavagem de provas na colaboração premiada, convidando a comunidade jurídica ao diálogo quanto às potenciais soluções apresentadas.
[1] Advogado sócio da Lucchesi Advocacia. Professor da Faculdade de Direito da UFPR. Foi Presidente do IBDPE (2017-2021).
[2] Advogado sócio da Gustavo Alberine Pereira Advocacia. Pincadista da 40ª Edição do Programa de Intercâmbio do CADE. Membro do IBDPE.
[3] LUCCHESI, Guilherme Brenner; VIDA, Lucas Gandolfi. Perspectivas quanto à lavagem de provas na colaboração premiada: proposta para controle de abuso processual. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, v. 7, n. 3, p. 2203-2243, set./dez. 2021. https://doi.org/10.22197/rbdpp.v7i3.542
Este artigo reflete a opinião de seus autores e não necessariamente a opinião do IBDPE.
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O recebimento de propina mediante utilização de conta bancária de terceiros
Por: Claudia da Rocha e Gabriel Bertin de Almeida
A lavagem de dinheiro pode ser conceituada como a conduta por meio da qual pretende-se ocultar ou dissimular a origem, localização, disposição ou movimentação de ativos provenientes da prática de uma infração penal. Quanto a esses ativos, há a finalidade de sua reinserção na economia formal, revestida de aparência de licitude.
Por isso, o processo penal envolvendo esse crime necessita da presença de justa causa duplicada, devendo haver lastro probatório mínimo quanto à lavagem e quanto à infração antecedente, que tenha gerado bens, direitos e valores passíveis de serem lavados.
Dessa maneira, não basta a existência de um crime anterior e uma operação posterior. É necessário que haja um nexo entre os bens ocultados, dissimulados e reinseridos e a prática delitiva prévia. Em outros termos, além de existir o crime anterior, ele necessariamente deve ter gerado um proveito (produto em sentido amplo), já que não é possível lavar-se o que não existe.
Fixadas essas premissas, questiona-se se o recebimento de propina mediante utilização de conta bancária de terceiros configura corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Trata-se de concurso de crimes ou mera consumação do crime de corrupção passiva?
Conforme elucida Pierpaolo Bottini, a situação ora discutida é bastante recorrente em processos penais:
Personagens corriqueiros nos processos penais atuais, a corrupção e a lavagem de dinheiro andam de mãos dadas em denúncias e condenações. Sempre que algum servidor público recebe vantagem indevida por interpostas pessoas (esposa, mãe, irmão, sócio) ou empresas laranjas é acusado por ambos os crimes — corrupção pela vantagem indevida, e lavagem de dinheiro pelo recebimento dissimulado.
No entanto, é de ver-se que no crime de corrupção passiva, consoante expressa previsão do artigo 317 do Código Penal, o recebimento da vantagem indevida pode dar-se de forma direta ou indireta .
Na forma direta, o próprio agente recebe a vantagem indevida. Já na indireta o recebimento dá-se por terceiros, por interpostas pessoas, físicas ou jurídicas.
Nesse sentido, BOTTINI esclarece que se um funcionário público recebe vantagens indevidas por intermediários, há corrupção passiva consumada. Mas não há lavagem de dinheiro, pois o recebimento de valores por interposta pessoa já está previsto no tipo penal da corrupção, de modo que o reconhecimento de concurso de crimes, nessa situação, implicaria na punição duplicada pelo mesmo fato.
Por outro lado, HOFFMANN e SANNINI pontuam que na corrupção passiva, o delito consuma-se com a mera solicitação, de modo que se a propina é recebida de forma dissimulada e em um contexto distinto da solicitação anteriormente realizada pelo agente público, estar-se-ia diante de um caso típico de concurso material.
Todavia, o argumento de que a consumação do crime de corrupção passiva já teria ocorrido na solicitação da vantagem indevida, também prevista no tipo penal, não afasta a conclusão de que inexiste o concurso de crimes.
Como se sabe, muito embora a solicitação seja suficiente para a consumação do crime de corrupção passiva, o posterior recebimento da vantagem indevida consubstancia a renovação do fato típico, com nova consumação que absorve a precedente.
Do mesmo modo, TORON aduz o seguinte:
Em outras palavras, para a corrupção passiva consumada, basta a ‘solicitação’, não é necessário o ‘recebimento’, mas se este efetivamente ocorrer, consubstancia ato típico novo, que absorve o precedente, e renova inclusive o início do prazo prescricional. [...] Por isso, a conduta típica da corrupção passiva em análise é o recebimento, e não a solicitação prévia que – embora típica – é absorvida pelo segundo ato. Vale repetir: a consumação da corrupção passiva se dá – sem dúvida – pela solicitação, mas o recebimento posterior é nova consumação, um ato de renovação do fato típico, a partir do qual, inclusive, recomeça a contagem do prazo prescricional, sendo este o núcleo típico que justificou a condenação.
Nesse quadro, para que se possa falar em concurso material entre lavagem de dinheiro e corrupção passiva, deve houver outro ato de ocultação ou dissimulação, para além do recebimento indireto, como, por exemplo, na hipótese de simulação de negócios posteriores com o intuito de conferir aparência lícita aos recursos recebidos.
Sobre o assunto, vale destacar o entendimento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça, no julgamento da Ação Penal 804-DF, na qual tratou justamente do tema em discussão:
11. Está documentalmente provado nos autos o depósito de R$ 30.000,00 (trinta mil reais) por pessoa interposta na conta de uma assessor do acusado (...)
12. Dessa forma, o tipo legal reportado no art. 317 do Código Penal (corrupção passiva) se encontra devidamente configurado, e, ao contrário do alegado pelo réu, entendo que incide no caso a causa de aumento do art. 317, § 1º, do Código Penal (...)
13. No que tange ao delito de lavagem de capitais, previsto no art. 1º, inc. V, § 4º, da Lei n. 9.613⁄1998, destaca-se que (...) Por mais que o crime antecedente - "a corrupção passiva qualificada" - tenha existido, a dissimulação ocorrida no caminho que o dinheiro percorreu até chegar nas mãos do acusado não caracteriza a lavagem de capitais, mas apenas a ocultação normal que ocorre no pagamento de propinas. Ou seja, trata-se da mera consumação do crime de corrupção, e não de crime autônomo de lavagem de dinheiro.
15. É admissível a punição pelo crime de autolavagem no Brasil. Precedentes do STF e do STJ. Entretanto, a utilização de terceiros para o recebimento da vantagem indevida não configura, per si , o delito de lavagem de dinheiro, conforme precedente do STF na AP 694⁄MT (Rel. Min. Rosa Weber, Primeira Turma, julgado em 2⁄5⁄2017, publicada do DJE 195, de 31⁄8⁄2017). Assim, não há que se falar, no caso concreto, de "autolavagem de capitais", pois o réu não realizou ações posteriores e autônomas com aptidão para convolar os valores obtidos com a prática delituosa em valores com aparência de licitude na economia formal.
(STJ - APn: 804 DF 2015/0023793-9, Relator: Ministro Og Fernandes, Data de Publicação: DJe 07/03/2019 - grifou-se).
O Supremo Tribunal Federal, já no caso denominado Mensalão, ao julgar o ex-Presidente da Câmara dos Deputados, João Paulo Cunha, acusado da prática do crime de corrupção passiva, consistente no recebimento de R$ 50.000,00, para favorecer determinada agência de publicidade, e lavagem de dinheiro, porque o recebimento da propina teria ocorrido por meio de sua esposa, a qual sacou a respectiva quantia, decidiu da seguinte maneira:
EMBARGOS INFRINGENTES NA AP 470. LAVAGEM DE DINHEIRO . 1. Lavagem de valores oriundos de corrupção passiva praticada pelo próprio agente:
1.1. O recebimento de propina constitui o marco consumativo do delito de corrupção passiva, na forma objetiva “receber”, sendo indiferente que seja praticada com elemento de dissimulação. 1.2. A autolavagem pressupõe a prática de atos de ocultação autônomos do produto do crime antecedente (já consumado), não verificados na hipótese. 1.3. Absolvição por atipicidade da conduta.
(STF - AP: 470 MG, Relator: Min. LUIZ FUX, Data de Julgamento: 13/03/2014, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 21/08/2014 – grifou-se).
Portanto, tendo em vista que o delito de lavagem de dinheiro caracteriza-se pelo emprego de meios para ocultar ou dissimular a origem, natureza, movimentação e propriedade do produto do crime antecedente, o ato configurador do crime de lavagem de capitais deve ser distinto e posterior à disponibilidade sobre o produto do crime.
Por conseguinte, não é possível a imputação de qualquer mecanismo de lavagem de produto de ilícito que anteceda a consumação do crime de corrupção passiva (em modalidade que tenha gerado recursos), como delito autônomo de lavagem de dinheiro, pois, repita-se, não é possível lavar-se o que ainda não existe.
Claudia da Rocha é advogada, pós-graduada em Direito Constitucional pelo IDCC, em Direito e Processo Penal pela UEL, pós-graduada em Direito Penal Econômico pelo IDPEE/IBCCRIM, mestranda em Direito Negocial na UEL, professora de Direito Penal, Processo Penal e Prática Penal no Centro Universitário Unifamma e Conselheira Fiscal no IBDPE.
Gabriel Bertin de Almeida é advogado, mestre e doutor em Filosofia pela USP e professor de Processo Penal na PUC-PR.
Este artigo reflete a opinião de seus autores e não necessariamente a opinião do IBDPE.
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LAVAGEM DE DINHEIRO: BREVES APONTAMENTOS SOBRE O EXAURIMENTO DO DELITO ANTECESSOR
Por: Ludmilla Braga Gomes[1] eMatheus Cordeiro Distler[2]
A lavagem de dinheiro tem sua tipificação penal disposta na Lei n. 9.613/98, podendo ser definida como o processo complexo que visa dar aparência de licitude vantagens de origem ilícita.
Nesse sentido, assevera Guilherme Lucchesi[3], citando Blanco Cordero “que a lavagem de dinheiro é um processo, o que significa não tratar de um fato pontual, mas sim de uma série de atos realizados progressivamente, com um determinado objetivo”, e complementa conceituando a lavagem de dinheiro como “o processo em virtude do qual os bens de origem delitiva se integram no sistema econômico legal com aparência de terem sido obtidos de forma lícita”[4].
Segundo Sánchez Rios[5], o Grupo de Atuação Financeira (GAFI)[6] indica que o processo de “lavar dinheiro” consiste em três fases, a colocação (placement), fase em que o bem ilícito é inserido no sistema financeiro, a dissimulação ou mascaramento (layering), que compreende dificultar o rastreamento desse ilícito para impedir sua localização, e por fim, a integração (integration), momento qual o capital volta para o sistema financeiro como se de origem legal fosse.
Retratando cada uma das fases, Badaró e Bottini descreve a primeira como “ocultação” (também, como anteriormente mencionado, placement/colocação/conversão), qual se refere ao movimento inicial, que busca “distanciar o valor de sua origem criminosa, como a alteração qualitativa dos bens, seu afastamento do local da prática da infração antecedente, ou outras condutas similares”, destacando que é a fase em que há “maior proximidade entre o produto da lavagem e a infração penal que o origina”. A segunda etapa, o mascaramento ou dissimulação do capital, caracteriza-se “pelo uso de transações comerciais ou financeiras posteriores à ocultação que, pelo número ou qualidade, contribuem para afastar os valores de sua origem ilícita”. Por último, a integração, marcada “pelo ato final da lavagem: a introdução dos valores na economia formal com aparência de licitude”.[7]
As três fases caracterizam o exemplo de uma movimentação completa e “bem-sucedida” de lavagem de dinheiro, contudo, não é necessário a realização de todas as fases para a configuração do delito, bem como adequação ao tipo penal. Ou seja, ocorrendo a prática somente da fase de mascaramento já estará configurado o crime de lavagem. No mesmo sentido é o entendimento da jurisprudência pátria, que compreende a desnecessidade da realização das três etapas para a configuração do delito de lavagem de dinheiro, igualmente desnecessário a prática de atos complexos ou uso da rede bancária.
Ademais, como observado acima, o crime de lavagem de dinheiro é delito que necessita de outro crime anterior, pois está vinculada a este, bem como os atos realizados com os bens, direitos ou valores provenientes daquele crime que visem torná-lo aparentemente lícito e tão somente podemos dizer que se tornou devidamente delito[8].
Nesse sentido, o crime de lavagem de dinheiro somente aceita a modalidade dolosa, o que implica dizer que somente quando o agente tem vontade dirigida consciente de ocultar ou dissimular a ilicitude do bem, direito ou valores a ser reciclado[9], pode ser considerado que cometeu o crime de lavagem de dinheiro. Se, ao contrário, o agente usufrui o objeto ilícito, sem que, de modo algum, tenha a “vontade dirigida” para reciclar esse objeto ilícito, não há que se falar em lavagem de dinheiro, senão em exaurimento do delito que originou o objeto ilícito.[10]
Sob este viés, o mero recebimento dos proveitos do crime anterior, bem como sua utilização sem o objetivo de fazer parecer que é lícito não configura o crime de lavagem de dinheiro, senão o mero exaurimento do delito anterior.
Voltemos, desta forma, às fases da lavagem de dinheiro, a jurisprudência entende que a realização da segunda etapa do processo (mascaramento) já basta para a configuração da lavagem de dinheiro. No entanto, não podemos confundir o uso dos bens, direitos ou valores derivados do delito anterior, o que se busca quando da realização de qualquer delito, com a fase de mascaramento, assim assevera André Luis Callegari[11], que o artigo 1º da lei 9.613/98 “exige que o autor dos fatos tenha que atuar com alguma das finalidades previstas legalmente, é dizer, seja a de ocultar ou dissimular a origem criminosa dos bens”.
É importante ressalva, haja visto o atual cenário das grandes operações contra os delitos citados e seus julgamentos, podemos relembrar, como meio exemplificativo, a malversação em alguns momentos do exaurimento do delito anterior e a configuração da lavagem de dinheiro no julgamento do mensalão (Ação Penal 470/MG), resultando em muito dos entendimento dos ministros em bis in idem.
Desta forma, a conclusão acima é extremamente importante para evitar-se, portanto, o bis in idem, não é necessário explicar a preocupação que o ordenamento jurídico brasileiro tem quanto à proibição, e a busca para que este não ocorra, ainda mais, em crimes no âmbito do direito penal econômico, contra a administração pública e contra o sistema financeiro.
[1] Acadêmica de Direito no Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA.
[2] Acadêmico de Direito no Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA.
[3] BLANCO CORDERO, Isidoro, 2012 apud LUCCHESI, Guilherme Brenner. Lavagem de dinheiro como mascaramento: limites à amplitude do tipo penal. Revista de Direito Penal Econômico e Compliance, v. 1/2020, p. 143 – 162, jan-mar, 2020, p. 4. Disponível em: <https://www.revistadostribunais.com.br/maf/app/resultList/document?&src=rl&srguid=i0ad6adc50000017939a2767024d456c1&docguid=I24e8c44070b411ea915da7cefb575693&hitguid=I24e8c44070b411ea915da7cefb575693&spos=1&epos=1&td=1&context=105&crumb-action=append&crumb-label=Documento&isDocFG=false&isFromMultiSumm=&startChunk=1&endChunk=1>. Acesso em: 31/04/2021.
[4] BLANCO CORDERO, 2012 apud LUCCHESI. 2020.
[5] SÁNCHEZ RIOS, Rodrigo. Advocacia e lavagem de dinheiro: questões de dogmática jurídico-penal e de política criminal. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 48.
[6] Em 1989 foi instituído o Grupo de Ação Financeira – GAFI, “uma organização intergovernamental cujo propósito é desenvolver e promover políticas nacionais e internacionais de combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo.”. BRASIL. Ministério da Fazenda. Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo (Gafi/FATF). Disponível em: <https://www.gov.br/coaf/pt-br/assuntos/o-sistema-de-prevencao-a-lavagem-de-dinheiro/sistema-internacional-de-prevencao-e-combate-a-lavagem-de-dinheiro/o-coaf-a-unidade-de-inteligencia-financeira-brasileira>. Acesso em: 04 mai. 2021.
[7] BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais: comentários à Lei 9.613/1998, com as alterações da Lei 12.683/2012. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 81.
[8] BITENCOURT, Cezar Roberto; MONTEIRO, Luciana de Oliveira. Lavagem de dinheiro segundo a legislação atual money laundry according to current legislation. Revista Brasileira de Ciências Criminais, Local, v. 102/2013, p. 163-220, maio-Jun, 2013. p. 8. Disponível em: <https://www.revistadostribunais.com.br/maf/app/resultList/document?&src=rl&srguid=i0ad6adc60000017939a87320903922ff&docguid=Ide470a70beb211e29562010000000000&hitguid=Ide470a70beb211e29562010000000000&spos=1&epos=1&td=1&context=255&crumb-action=append&crumb-label=Documento&isDocFG=false&isFromMultiSumm=&startChunk=1&endChunk=1>. Acesso em 31/04/2021.
[9] Ibid., p. 14.
[10] No mesmo sentido, assevera Mendroni: “Importa, entretanto, sobremaneira, a caracterização do elemento subjetivo do tipo – o dolo específico. Deve haver indícios suficientes de que o agente efetivamente pretenda “ocultar” ou “dissimular”, e não somente “guardar”, o provento do crime.”. Ainda, há que se falar da modalidade tentada, que será definida a partir dos acontecimentos da primeira fase, desde que por vontade alheia a do agente, seja impedida a ocultação. MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime de Lavagem de dinheiro: Consumação e Tentativa. Portal Jurídico Investidura, Florianópolis/SC, 29 Ago. 2009. Disponível em: <investidura.com.br/biblioteca-juridica/artigos/direito-penal/4221-crime-de-lavagem-de-dinheiro-consumacao-e-tentativa>. Acesso em: 04 Mai. 2021.
[11] CALLEGARI, C.A.L.; BARAZZETTI, W.A. Lavagem de Dinheiro [Livro eletrônico]. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2017. p. 184.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais: comentários à Lei 9.613/1998, com as alterações da Lei 12.683/2012. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.
BITENCOURT, Cezar Roberto; MONTEIRO, Luciana de Oliveira. Lavagem de dinheiro segundo a legislação atual money laundry according to current legislation. Revista Brasileira de Ciências Criminais, Local, v. 102/2013, p. 163-220, maio-Jun, 2013. <https://www.revistadostribunais.com.br/maf/app/resultList/document?&src=rl&srguid=i0ad6adc60000017939a87320903922ff&docguid=Ide470a70beb211e29562010000000000&hitguid=Ide470a70beb211e29562010000000000&spos=1&epos=1&td=1&context=255&crumb-action=append&crumb-label=Documento&isDocFG=false&isFromMultiSumm=&startChunk=1&endChunk=1>. Acesso em 31/04/2021.
BRASIL, Lei n.º 9.613, de 3 de Março de 1998. Dispõe sobre os crimes de "lavagem" ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos nesta Lei; cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras - COAF, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9613.htm>. Acesso em 30/04/2021.
BRASIL. Ministério da Fazenda. Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo (Gafi/FATF). Disponível em: <https://www.gov.br/coaf/pt-br/assuntos/o-sistema-de-prevencao-a-lavagem-de-dinheiro/sistema-internacional-de-prevencao-e-combate-a-lavagem-de-dinheiro/o-coaf-a-unidade-de-inteligencia-financeira-brasileira> Acesso em 04/05/2021.
CALLEGARI, C.A.L.; BARAZZETTI, W.A. Lavagem de Dinheiro [Livro eletrônico]. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2017.
LUCCHESI, Guilherme Brenner. Lavagem de dinheiro como mascaramento: limites à amplitude do tipo penal. Revista de Direito Penal Econômico e Compliance, v. 1/2020, p. 143–162, jan-mar, 2020. Disponível em: <https://www.revistadostribunais.com.br/maf/app/resultList/document?&src=rl&srguid=i0ad6adc50000017939a2767024d456c1&docguid=I24e8c44070b411ea915da7cefb575693&hitguid=I24e8c44070b411ea915da7cefb575693&spos=1&epos=1&td=1&context=105&crumb-action=append&crumb-label=Documento&isDocFG=false&isFromMultiSumm=&startChunk=1&endChunk=1>. Acesso em: 31/04/2021.
MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime de Lavagem de dinheiro: Consumação e Tentativa. Portal Jurídico Investidura, Florianópolis/SC, 29 Ago. 2009. Disponível em: <investidura.com.br/biblioteca-juridica/artigos/direito-penal/4221-crime-de-lavagem-de-dinheiro-consumacao-e-tentativa>. Acesso em 04/05/2021.
SÁNCHEZ RIOS, Rodrigo. Advocacia e lavagem de dinheiro: questões de dogmática jurídico-penal e de política criminal. São Paulo: Saraiva, 2010.
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AS IMPLICAÇÕES DO ANPP NAS ESFERAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR
Jéssyca Priscila Hayume Tamiya e Joelson Pereira Alves
O Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) é um instituto que foi inserido
no art. 28-A do CPP, a partir da vigência da Lei 13.964/2019, conhecida como pacote ou lei
anticrime. É válido salientar que a justiça penal negocial não é recente na legislação brasileira,
uma vez que a Lei 9.099/95 já elencava a possibilidade de transação penal e a suspensão
condicional do processo, ao lado do acordo de leniência (Lei 12.846/2013) e da colaboração
premiada (Lei 12.850/13).
Por certo, começaram a surgir inúmeras críticas por parte da doutrina. A
saber, não era nítido como o Acordo de Persecução Penal reagiria diante dos princípios da
segurança jurídica, da indisponibilidade da ação penal pública, da impessoalidade, da ampla
defesa, do contraditório e, de certa forma, como responderia diante do devido processo legal
em geral. Afinal, esse instituto veio para aprimorar o consenso, o diálogo, ou seja, a justiça
negociada no processo penal.
Em suma, o ANPP é um negócio jurídico extrajudicial que acontece
mediante proposta do Ministério Público para o investigado que deve estar sendo assistido
pelo seu defensor em todas as tomadas de decisões. Caso o acordo seja aceito pelo
investigado, deverá ser, em seguida, homologado pelo juízo competente, no qual será passado
para o mesmo todas as condições do acordo, ou seja, as condições não privativas de liberdade,
que geralmente é algum tipo de serviço comunitário e/ou multa, em troca do compromisso de
o Parquet não oferecer a denúncia, tendo em vista, que esse acordo acontece, geralmente, antes da persecução penal iniciar. Assim sendo, se o acordo for cumprido integralmente, a
punibilidade do agente é extinta.
Com efeito, pode ser celebrado independentemente da natureza do
procedimento investigatório – seja ele um inquérito policial ou um PIC – procedimento
investigatório criminal. Nessa toada, em observância ao sistema acusatório, outorgou-se ao
titular da ação penal pública a legitimidade para o oferecimento do referido instituto
despenalizador.
O art. 28-A, §3º, CPP dispõe que: “O acordo de não persecução penal será
formalizado por escrito e será firmado pelo membro do Ministério Público, pelo investigado e
por seu defensor.” Logo, Note-se que o Ministério Público detém a legitimidade para propor o
ANPP “desde que necessário e suficiente para reprovação do crime” diante dos requisitos de
confissão formal e circunstancial da prática da infração penal, sem violência ou grave ameaça
e com pena mínima inferior a quatro anos.
Vale ressaltar que, a confissão formal e circunstanciada do crime tem esse
problema: a partir do momento que a pessoa confessa, de forma detalhada, essa confissão
pode ser levada a outros processos. Mas como faz? Porque o ANPP só atinge a esfera penal,
como que faz lá no PAD, na Improbidade.
Nesse sentido, é visível as dificuldades que surgem com o acordo
extrajudicial e pré-processual, razão pela qual deve haver uma diferenciação do que seja um
ilícito penal e administrativo. Por um lado, se o réu confessar o crime de forma detalhada
conseguirá a não persecução penal, já por outro lado, toda essa confissão detalhada poderá ser
utilizada em uma possível Improbidade administrativa e até mesmo em um PAD.
A Lei 12.850/13, em seu artigo 4º, § 10, estabelece que: “As partes podem
retratar-se da proposta, caso em que as provas autoincriminatórias produzidas pelo
colaborador não poderão ser utilizadas exclusivamente em seu desfavor.” Assim, é evidente
que havendo a retratação, as provas produzidas não poderão ser utilizadas. No entanto, o
debate acerca da possibilidade de valer-se da confissão como meio de prova após a rescisão
do ANPP gera polêmica.
Um dos requisitos para que aconteça o Acordo de Não Persecução Penal é a
exigência de confissão formal e circunstanciada do investigado, ou seja, na prática o
investigado deverá confessar o crime, com detalhes. Logo, na esfera penal, depois de
cumprida as exigências, e extinta a punibilidade, o Ministério Público poderá se valer dessa
confissão formal e circunstanciada para usar no direito administrativo sancionador.
Sobre isso, afirma a doutrina:
“A unidade do jus puniendi do Estado obriga a transposição de garantias
constitucionais e penais para o direito administrativo sancionador. As
mínimas garantias devem ser: legalidade, proporcionalidade, presunção de
inocência e ne bis in idem” (OLIVEIRA, Ana Carolina. Direito de
Intervenção e Direito Administrativo Sancionador, 2012, p. 241).
A partir dessa compreensão, é visível que, o princípio do ne bis in idem, está
elencado para que não haja condenação nas duas esferas, ou seja, se o investigado fez o
Acordo de Não Persecução Penal, indicando e confessando com detalhes o ilícito, essa
confissão não deve ser utilizada para que o mesmo seja condenado no âmbito administrativo,
como, por exemplo, perdendo a função pública que exerce.
Com isso, vale ressaltar o artigo 935 do Código Civil, o qual disciplina que:
“A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a
existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem
decididas no juízo criminal.”
Destarte, se as questões já foram decididas no juízo criminal, mesmo com
natureza administrativa, não se deve falar em responsabilização no âmbito administrativo,
uma vez que as questões já foram resolvidas através de um Acordo de Não Persecução Penal.
A Constituição Federal anuncia, no art. 37, § 4º, uma noção de
independência entre as diferentes esferas sancionadoras:
“Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos
políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário,
na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.”
4
Explica-se: o subsistema do direito penal comina, de modo geral, sanções
mais graves do que o direito administrativo sancionador. Isso significa que mesmo que se
venha a aplicar princípios penais no âmbito do direito administrativo sancionador – premissa
com a qual estamos totalmente de acordo, o escrutínio do processo penal será sempre mais
rigoroso. A consequência disso é que a compreensão acerca de fatos fixada definitivamente
pelo Poder Judiciário no espaço do subsistema do direito penal não pode ser revista no âmbito
do subsistema do direito administrativo sancionador. Todavia, a construção reversa da
equação não é verdadeira, já que a compreensão acerca de fatos fixada definitivamente pelo
Poder Judiciário no espaço do subsistema do direito administrativo sancionador pode e deve
ser revista pelo subsistema do direito penal – este é ponto da independência mitigada.
REFERÊNCIA
OLIVEIRA, Ana Carolina. Direito de Intervenção e Direito Administrativo Sancionador,
2012, p. 241.
Jéssyca Priscila Hayume Tamiya: Pós-graduanda em Direito Penal Econômico pela Pontifícia Universidade Católica – PUC/PR, campus
Londrina-PR. Advogada.
Joelson Pereira Alves: Estudante de Direito na Universidade Federal do Paraná - UFPR.
Da (im)prescindibilidade do periculum in mora nas medidas cautelares patrimoniais no processo penal
Por: Gabriel Henrique Halama e Pedro Henrique Nunes
A fim de assegurar os efeitos da condenação consistentes na perda do produto do crime e na reparação do dano causado pelo delito (art. 91, I e II, CP), o Código de Processo Penal prevê, no Capítulo VI do Título VI, as "medidas assecuratórias", também denominadas "medidas cautelares patrimoniais". Tendo em vista a disposição do CPP, a doutrina costuma dividi-las em: (i) sequestro de bens (arts. 125 a 132), (ii) especialização e registro da hipoteca legal (arts. 134 a 135) e (iii) arresto prévio e de bens móveis (arts. 136 e 137)1.
De modo geral, são necessários dois elementos para a decretação dessas medidas: (i) o fumus commissi delicti, traduzido na necessidade de indícios suficientes de autoria e materialidade delitiva; e (ii) o periculum in mora, o qual "se relaciona aos riscos provenientes da natural demora da prestação jurisdicional dita principal, vale dizer, do perigo concreto que a delonga no acertamento do direito pode acarretar à eficácia prática de futura sentença"2.
Quanto ao segundo elemento, a acusação deve demonstrar que o réu estaria praticando atos que poderiam acarretar a alteração ou a redução do seu patrimônio, capazes de colocar em risco eventual ressarcimento ao lesado, o pagamento de penas pecuniárias, as despesas processuais e o perdimento dos proventos do crime. Para tanto, não basta a manifestação de um risco abstrato ou suposição (presunção) de que, como decorrência do recebimento da denúncia, ocorrerá o desfazimento ou dissipação dos bens pelo réu3.
Ocorre que a necessidade de demonstração do periculum in mora para a decretação das medidas cautelares patrimoniais no processo penal tem sido relativizada pela jurisprudência pátria. Observa-se o alastramento de precedentes propugnando ser dispensável a demonstração concreta do perigo na demora do acautelamento dos bens do acusado.
À vista disso, foram levantados, selecionados e analisados acórdãos do Tribunal Regional Federal da 4ª região (TRF-4) proferidos nos últimos dois anos, a fim de compreender quais os fundamentos de que os julgadores se valem para embasar a dispensa desse requisito das medidas cautelares patrimoniais4.
A partir do exame realizado, averiguou-se que o TRF-4, em uníssono, entende ser prescindível a demonstração concreta de que há algum perigo na satisfação final do processo para o acautelamento patrimonial. Vale mencionar, não foi encontrada nenhuma decisão em sentido contrário, isto é, exigindo que a acusação demonstre o perigo na dissipação dos bens. Ademais, observou-se que a maior parte das decisões encontradas tem o tema por consolidado jurisprudencialmente, razão pela qual a fundamentação não ultrapassa o fundamento de que "o periculum in mora é pressuposto pela lei, conforme precedentes".
Por exemplo, há reiterados votos do Desembargador Federal João Pedro Gebran Neto de que "não há necessidade de se evidenciar com elementos concretos e específicos o periculum in mora, pois este é pressuposto pela lei, notadamente nos casos de crimes praticados contra a administração pública". Este trecho é reproduzido em vários julgados, em alguns casos acompanhado de poucos acréscimos5. Por vezes, suas decisões trazem complemento no sentido de que por conta do "risco de não ser garantido o valor fixado na sentença a título de reparação de danos, deve vigorar nesse momento processual o elemento da cautelaridade".
Do mesmo modo, há julgados de relatoria dos Desembargadores Federais Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, Danilo Pereira Junior, Cláudia Cristofani, Márcio Antônio Rocha e Marcelo Malucelli apontando para a jurisprudência já consolidada daquela Corte de que o periculum in mora, nas cautelares penais, se dá por presunção legal, prescindindo de demonstrações de dilapidação do patrimônio ou má-fé do acusado6.
Em todos esses precedentes, a despeito da menção abstrata à presunção do periculum in mora na decretação das medidas cautelares patrimoniais, deixa-se de indicar o fundamento legal de que se extrai tal entendimento. Quando muito, são citados acórdãos do próprio TRF-4, em um movimento jurisprudencial que se retroalimenta.
No recorte jurisprudencial analisado, os votos da Desembargadora Federal Salise Monteiro Sanchotene foram os que mais se destacaram, porquanto fundamentam com maiores detalhes os decretos de medidas constritivas. Também prepondera em seus votos a presunção quanto ao periculum in mora nas medidas cautelares patrimoniais, porém se avança um pouco mais ao adaptar o fundamento jurídico ao caso concreto. No julgamento da Apelação n.º 5008589-29.2019.4.04.7000, referente à "Operação Integração II", por exemplo, o acórdão adota como norte a natureza dos delitos imputados (corrupção, fraude em licitações, peculato, associação criminosa e lavagem de dinheiro, entre outros) para fundamentar a imposição das medidas assecuratórias em desfavor dos acusados. Especificamente nos casos de lavagem de capitais, consigna-se que o periculum in mora seria presumido, pois "a própria natureza do crime em tela, que tem na sua estrutura as fases de dissimulação, ocultação e integração, autorizam presumir uma disposição dos agentes envolvidos em não facilitar o acesso aos bens ou valores". Outrossim, retoma-se o argumento acima exposto no sentido de que haveria "uma plausível possibilidade de dissipação do patrimônio existente até o trânsito em julgado, ao saber que são investigados"7. No que tange aos delitos contra a Administração Pública, - diferentemente dos demais precedentes analisados - o acórdão faz referência a dispositivos legais em que embasa a presunção do periculum in mora nas medidas impostas. Aduz-se que "os delitos imputados podem configurar atos de improbidade que importem em enriquecimento ilícito, tendo as apelantes como beneficiárias", de modo que "a indisponibilidade dos bens obtidos decorre de imposição constitucional e legal, prescindindo da demonstração de perigo de demora para sua decretação, nos termos do art. 37, § 4º, da Constituição Federal e artigos 6º e 7º da lei 8.429/1992".
Dentre as decisões analisadas, esta última foi a que mais forneceu elementos para compreender os fundamentos da presunção absoluta do "perigo na demora" para a decretação das medidas assecuratórias. Porém, trata-se de fundamentação que não pode ser aplicada a todo e qualquer caso, vez que se refere especificamente a crimes de lavagem - considerando os atos de dissimulação patrimonial que inexoravelmente se conectam a esse tipo de delito -, ou a condutas que, além de punidas penalmente, configurem atos de improbidade - utilizando-se como fundamento legal, neste caso, a lei 8.429/1992.
A partir do observado, é possível concluir que o entendimento do TRF-4 acerca da presunção legal de periculum in mora para a decretação de medida cautelares patrimoniais, dispensando a demonstração concreta de sua ocorrência, viola uma série de princípios inerentes às medidas cautelares.
De início, o entendimento jurisprudencial ora exposto viola a necessária preventividade das medidas cautelares, princípio segundo o qual a finalidade desse tipo de tutela é a prevenção da ocorrência de um dano irreparável ou de difícil reparação, como a dilapidação do patrimônio8. Por se tratar de medidas que visam garantir um provimento final - este, sim, de caráter definitivo -, as medidas assecuratórias não podem ser consideradas como um fim em si mesmas. Somente podem ser aplicadas quando demonstrado o perigo na eficácia do mencionado provimento final, sob pena de com este se confundirem e de possibilitar sua aplicação automática em todo e qualquer caso. Isso também viola a provisoriedade da medida, vez que inexistiriam argumentos aptos a possibilitar a sua revisão.
Além disso, salienta-se que as medidas cautelares não se baseiam em um juízo de certeza, mas em cognição sumária sobre os elementos constantes no inquérito policial ou na ação penal. Tendo em vista essa particularidade, a inexigibilidade do periculum in mora ofende o estado de inocência, uma vez que antecipa os efeitos patrimoniais da condenação - a indisponibilidade dos bens - sem que exista uma condenação criminal, baseando-se apenas em indícios de autoria e na materialidade do delito9.
Ademais, as medidas cautelares patrimoniais existem exatamente para assegurar a eficácia dos efeitos da condenação declarados em sentença nas hipóteses em que se aguardar até o trânsito em julgado da condenação pode tornar ineficaz o provimento final. Sob essa perspectiva, negar a necessidade de demonstração do "perigo na demora" significa negar uma característica da própria medida cautelar aplicada10.
Não se pode olvidar, ainda, que as medidas assecuratórias incorrem em restrição ao patrimônio do acusado sem a existência de uma cognição exauriente sobre os fatos imputados, razão pela qual deve ser demonstrada a efetiva necessidade de sua aplicação, sob pena de se violar o princípio da proporcionalidade11.
Os precedentes analisados também afrontam o princípio da motivação, uma vez que, ao não enfrentarem devidamente a questão da necessidade de demonstração do periculum in mora, limitando-se a alegar uma suposta presunção abstrata do requisito, sem apresentar um fundamento legal para tanto, há o descumprimento do dever constitucional de fundamentação das decisões (art. 93, IX, CF), o que dificulta, ainda, o exercício do direito ao recurso pelos acusados.
Por fim, eventual argumentação no sentido de que a lei processual penal não exige expressamente a demonstração do periculum in mora para a concessão de medidas cautelares patrimoniais perdeu sentido com a previsão do §1º do art. 315 do CPP (introduzido pela lei 13.964/2019). O dispositivo determina que "na motivação da decretação da prisão preventiva ou de qualquer outra cautelar, o juiz deverá indicar concretamente a existência de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada". Essa exigência de apresentação de "fatos novos ou contemporâneos" representa o fundamento legal do periculum in mora, uma vez que as medidas cautelares - inclusive as patrimoniais - não podem ser aplicadas com base em presunções abstratas, tal como sustentou os acórdãos analisados12.
Ante o exposto, o entendimento jurisprudencial - mais especificamente, do Tribunal Regional Federal da 4ª região para fins desse estudo - de que o periculum in mora é presumido pela lei, de modo a não se exigir a sua demonstração para a decretação das medidas assecuratórias, não se coaduna aos princípios inerentes às medidas cautelares, do que decorre a urgência de um olhar mais detido sobre este posicionamento, evitando-se que seja aplicado de modo automático sem um enfrentamento ponderado acerca do tema.
O conteúdo desta coluna é produzido pelos membros do Núcleo de Pesquisa em Direito Penal Econômico da Universidade Federal do Paraná - NUPPE UFPR.
*Gabriel Henrique Halama De Lima é acadêmico de Direito da UFPR. Estagiário do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Membro do Núcleo de Pesquisa em Direito Penal Econômico da UFPR.
**Pedro Henrique Nunes é acadêmico de Direito da UFPR. Estagiário do escritório Lamers Advogados. Membro fundador e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Direito Penal Econômico da UFPR.
__________
1 BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 8. ed. São Paulo: RT, 2020. p. 1263.
2 SOUZA, Alexander Araújo de. O abuso do direito no requerimento de medidas cautelares típicas e atípicas no processo penal vol. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. [Ebook].
3 TORNAGHI, Hélio. Curso de processo penal vol. 1. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 210.
4 Para melhor compreender a fundamentação, também foram analisados os acórdãos citados ao longo dos julgados encontrados.
5 Com esses exatos termos, todos de relatoria do Des. Fed. João Gebran Neto, pela 8.ª Turma: ACR 5030548-22.2020.4.04.7000, j. 25 fev. 2021; ACR 5061219-62.2019.4.04.7000, j. 9 dez. 2020; ACR 5032072-88.2019.4.04.7000, j. 15 out. 2020; ACR 5031321-04.2019.4.04.7000, j. 24 jun. 2020; ACR 5031320-19.2019.4.04.7000, j. 21 mai. 2020.
6 Nesse sentido, todos do TRF-4: ACR 5020767-98.2019.4.04.7100, 7ª T, Rel. Des. Fed. Danilo Pereira Junior, j. 10 jun. 2021; ACR 5041275-84.2013.4.04.7000, 8ª T, Rel. Des. Fed. Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, j. 19 dez. 2019; ACR 5001092-66.2017.4.04.7118, 7ª T, Rel. Des. Fed. Cláudia Cristina Cristofani, j. 28 nov. 2019; ACR 5002476-04.2016.4.04.7117, 7ª T, Rel. Des. Fed. Márcio Antônio Rocha, j. 18 abr. 2017; ACR 5009018-35.2015.4.04.7000, 7ª T, Rel. Des. Fed. Marcelo Malucelli, j. 14 out. 2015.
7 TRF-4, 7ª T, ACR 5008589-29.2019.4.04.7000, Rel. Des. Fed. Salise Monteiro Sanchotene, j. 21 ago. 2019. Fundamento semelhante atrelado ao risco de dissipação dos bens devido ao conhecimento das investigações, foi utilizado em outros recursos de sua relatoria, tais como na ACR 5019811-91.2019.4.04.7000, julg. 07 nov. 2019 e na ACR 5008581-52.2019.4.04.7000, julg. 21 ago. 2019.
8 BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018. p. 939.
9 ESSADO, Tiago. A perda de bens e o novo paradigma para o processo penal brasileiro. Tese (Doutorado em Direito) - Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo - SP, 2014. p. 195-196.
10 Ibid, p. 941-942.
11 LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal.18. ed. São Paulo: Saraiva, 2021. p. 659.
12 DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de processo penal. 7ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021[Ebook].
“O DUPLO BINÁRIO COMO SUPER TRUNFO NOS FATOS ECONÔMICOFINANCEIROS: APROXIMAÇÃO CRÍTICA À LUZ DA VEDAÇÃO AO BIS IN IDEM”
Por: Marco Jorge Eugle Guimarães
Há muito se constrói um racional, em nosso mundo jurídico, que as esferas cível, administrativa e penal são independentes entre si e, eventual fato poderá ser objeto de avaliação judicante em todos os ramos do direito, ressalvada a hipótese de reconhecimento, pela esfera penal, de que o fato não constitui delito ou não se tenha verificado que o imputado seja o autor do fato.
Nesse norte, a doutrina1 acerca de tal temática se debruça numa interpretação literal de nossa Carta Magna, a qual, em seu arquétipo analítico, não fez consignar o impedimento do cognominado bis in idem interdisciplinar ou transversal e, muito pelo contrário, reforçou a possibilidade persecutória nas instâncias administrativo sancionatória e penal, quando determinado fato jurídico comporte responsabilização em ambas as esferas. Por exemplo, no âmbito de questões que envolvam atos de improbidade administrativa, o artigo 37, §4º da Lex Legum aduz que, uma vez constatados tais fatos e, erigido um julgamento procedente da demanda, “importarão na suspensão de direitos políticos, perda da função pública, a indisponibilidade dos bens do autor dos fatos e o ressarcimento ao erário, sem prejuízo de ação penal cabível”.
Por mais que a abalizada doutrina clássica e as normas consuetudinárias sustentem a impossibilidade de dupla sanção penal pelo mesmo fato, hodiernamente, o direito penal econômico nos confere facetas que visam estrangular o particular nas mais variadas frentes de atuação, em detrimento de um determinado fato. Fato é que, quando a abordagem da casuística aporta à seara penal, muitas das vezes já o fazem pela mera condição protocolar, visto que a esfera precedente, logrou intento na coleta de todas as evidências, com adoção de medidas acautelatórias pessoais e reais, assim como medidas assecuratórias para garantir o ressarcimento dos danos ao Estado-Persecutor. Trata-se de uma prevalência sem fim do Estado em detrimento do particular, isto é, a hipertrofia do Poder Público2 por meio dos órgãos reguladores e de persecução, em desfavor da hipotrofia do particular, que se encontra desamparado pelo próprio ordenamento jurídico, o qual fomenta esse blitzkrieg persecutório.
Ao nosso sentir, o texto constitucional acima apontado nos permite uma margem interpretativa a partir de remissões do Poder Legislativo, o qual encontra-se incumbido de estabelecer gradações e formas de sanções em casos alusivos ao direito administrativo sancionador que ricocheteiem no direito penal. E é a partir dessa margem interpretativa – que até então não fora clarificada pelo órgão legiferante – que compreendemos pela vedação do bis in idem entre as esferas da administrativização do direito penal e do direito penal originário dos órgãos persecutores.
Há muito, propugna-se, no âmbito do direito penal que, tal ramo do direito tão somente será instado a exercer seu poder coercitivo quando as esferas precedentes – civil ou administrativa – não alcançarem uma satisfação real de tutela do bem jurídico posto à prova. Ou seja, fazendo alusão à Teoria dos Círculos, inicialmente, verifica-se que, se o bem jurídico tutelado é socorrido pela primeira camada de controle social, qual seja, do direito civil. Se houver solução à contenda instalada, restabelecida está a pacificação social. Caso não tenha solucionado adequadamente a celeuma, convém a manutenção da persecução, porém, em outro ramo do direito, qual seja, o direito administrativo. Uma vez mais, se tal ramo jurídico alcançar a resolução do conflito com o restabelecimento da ordem, não se faz necessário a continuação da via crucis sancionatória. No entanto, caso tal esfera jurídica prevarique na obtenção de eficácia plena à luz da casuística, impõe-se o chamamento da ultima ratio para solução da controvérsia.
Vejamos que esse estabelecimento de gradação, com alcance da seara penal, é conferido ao Poder Legislativo, sob o holofote do Princípio da Necessidade Penal3, que ao nosso olhar, data máxima vênia, vem sendo escanteado pelos órgãos de controle social, com fulcro num direito penal midiático.
Alguns exemplos que conseguimos deduzir, de plano, com enfoque no direito penal econômico, seriam: (i) cobranças de débitos tributários e seu respectivo processo administrativo – ausência de pagamento voluntário após procedimento fiscal culmina na imediata comunicação, por meio de representação fiscal para fins penais, ao Ministério Público correlato, para adoção das medidas criminais em desfavor do responsável tributário. Uma vez quitado o valor atinente ao débito tributário no curso da persecutio criminis in judicio acarreta a extinção da punibilidade da pena alusiva ao delito contido na Lei nº. 8.137/1990 e, conseguintemente, ao procedimento fiscal arrecadatório atrelado ao Fisco; (ii) instauração de procedimento administrativo perante a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) por suposta prática de oferta de investimentos coletivos sem autorização legal para tanto – pessoa jurídica que se encontra sujeita a apuração prévia perante a autarquia federal, que será julgada por membros do alto escalão do próprio órgão, está um passo atrás de um fairplay processual administrativo. Ao final desse processo administrativo, é condenado a paralisar suas atividades por determinação da aludida autarquia (stop order), com sujeição à multa arbitrada em valores astronômicos e imediata comunicação o dominus litis, visando a responsabilização penal de seus sócios administradores. Paralelamente, ante o engessamento da sua atividade empresarial decorrente de uma decisão administrativo-estatal (intervenção do estado na liberdade econômica do sujeito), os clientes da empresa voltam-se contra a ela, visando indenização dos valores investidos que não foram ressarcidos.
As indagações que se colocam são: o Estado-Persecutor não teria meios coercitivos, no âmbito da via administrativa, para exigir a quitação dos tributos em aberto? Precisaria, de fato, submeter uma cobrança fiscal à conhecimento do dominus litis para se deflagrar uma ação penal, visando o recolhimento de tributos? Estaria o Estado lançando mão de uma arrecadação predatória em face do contribuinte, que poderia ser solvida no âmbito do próprio processo administrativo? Quanto ao exemplo lançado acerca da suposta oferta de investimentos coletivos, seria necessária a interrupção das atividades da empresa, afetando inúmeras vidas, direta e indiretamente, máxime a condição reputacional posta em face da empresa alvo das apurações? Qual seria vantagem conferida ao Estado a partir da interrupção de operação de empresa atrelada à investimentos coletivos?
Questionamentos tais deveriam ser aviados ex ante a edição de normas de conotação delitiva.
Como tais indagações não foram consideradas previamente à elaboração das legislações penais extravagantes atinentes à matéria, pressupõe-se a constitucionalidade das normas, até que o órgão judicante Supremo interprete de forma diversa. Logo, se há vigência e aplicação dos mecanismos legais disponíveis ao Estado-Persecutor, temos que as normas procedimentais administrativas acabam por integrar o espectro penal, ainda que de forma relutante, tornando-se um subsistema penal indispensável4, pois sem ele, não se poderá recorrer a última esfera do ramo do direito.
Ante tal explanação, temos que o direito administrativo sancionador, inspirado num viés de intervenção da propriedade do sujeito estabelece, ainda que embrionariamente, um vínculo umbilical com o direito penal substantivo e adjetivo, visto que no âmbito processual, os elementos de informação e provas produzidas na via administrativa, por regra, são aproveitados nas fases preliminar e de instrução criminal, sumarizando as ações persecutórias dos órgãos de controle institucionais.
Vejamos que, em tempos modernos, pode-se suscitar a existência de um modelo processual penal tripartido, quando o enfoque material versar sobre questões atreladas ao direito penal econômico, pois o processo administrativo sancionador, por ricochete, já integra a persecução criminal por tudo que se instrumentaliza em seu bojo e, por tudo que representa no tocante a instrução criminal – como cediço, autarquias e órgãos reguladores servem como assistentes à acusação do Ministério Público, visando fortalecer as teses acusatórias. Estamos diante, verdadeiramente, da caças às bruxas!
De outra banda, inspirados em Tratados e Convenções Internacionais, bem como em decisões reiteradas de Tribunais Internacionais, conseguimos apurar, de maneira mais consolidada, a existência de uma tese fronteiriça entre hipertrofia Estatal e a hipotrofia do particular no âmbito dos processos administrativos sancionadores e penais, qual seja, o Princípio da Independência Mitigada, o qual tem por escopo limitar a elasticidade a imputação pela via do duplo binário.
Tal princípio consiste, precipuamente, na compressão da independência das esferas do ramo do direito, a fim de se evitar sanções que culminem na bancarrota do particular, violando, de forma inconteste, a dignidade da pessoa humana.
Estribado na premissa do direito administrativo sancionador como subsistema do ordenamento jurídico-penal, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), nos idos de 2014, aderiu à tese da vedação de bis in idem entre o direito administrativo sancionador e o direito penal, por compreender que, ante a preexistência da sanção administrativa perante o órgão público respectivo, fulmina a necessidade de uma persecução penal em juízo, visto que já houve um severa punição por fato idêntico, ofendendo assim, as garantias individuais do cidadão, no mesmos termos do que predispõe a Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais.
Em oportunidade pretérita, a mesma Corte, analisando uma situação em que envolvia sanções administrativas castrenses do Estado Russo e a persecução penal decorrente do mesmo fato, que imputou a um homem a sanção de 03 (três) dias de detenção, por ter inserido sua namorada em instalações militares, reconheceu que não seria o caso de atribuir nova sanção oriunda do mesmo fato5.
Como fundamento da decisão, se basearam nos “critérios Engel” (Engel criteria) consistente em: (i) analisar o grau de importância do ato perpetrado e, se tal ato já reflete um caráter penal em sua essência; (ii) verificar qual seria a esfera de proteção do bem jurídico tutelado no âmbito do direito administrativo sancionador e, certificar se tal proteção não guarda relações íntimas com o direito penal, e; (iii) apurar se a sanção imposta ao apenado implica em alguma limitação ambulatória. No caso concreto, o ato de desordem na seara militar já se reveste de caráter penal, preenchendo, portanto, o primeiro critério. O bem jurídico tutelado na presente situação se ilustra na ordem pública e na dignidade humana, bens estes que já se encontram protegidos pela ultima ratio. E, por fim, a sanção administrativa de 03 (três) dias de detenção em caserna consignou um caráter penal, pois cerceou o direito de ir e vir do apenado.
Pelos procedimentos punitivos instaurados guardarem os mesmos fatos, substancialmente, determinou-se o afastamento de eventual sanção criminal com fulcro na vedação do ne bis in idem.
Já em território tupiniquim, tivemos a grata surpresa de, ao final de 2020, sermos agraciados com uma posição semelhante às Cortes Internacionais.
Nosso Pretório Excelso enfrentou a temática no âmbito de Reclamação Constitucional em sede Ação Civil Pública por atos de Improbidade Administrativa, haja vista a preexistência de um trancamento de Ação Penal, escorado de Habeas Corpus, com fundamento elementar na negativa de autoria do recorrente. Na espécie, o Ministro Relator, sua Exa. Gilmar Mendes6, aprofundando seus estudos na narrativa de ambos os procedimentos existentes em face do recorrente, vislumbrou que havia: (i) identidade de narrativas; (ii) identidade de conjunto fático e acervos probatórios na fundamentação dos procedimentos
paralelos.
O douto Ministro Relator passou a avaliar o artigo 37, § 4º, da Carta Constitucional e, estruturou, a partir de tal verbete, o Princípio da Independência Mitigada no âmbito do ordenamento jurídico pátrio. Em seus fundamentos, se estabeleceu, casuisticamente, uma lógica irrefutável sob a seguinte óptica: a profundidade do processo penal no tocante a coleta de evidências e demais provas é infinitamente maior do que de uma Ação Civil Pública por atos de Improbidade Administrativa. Ainda, a seleção desse arcabouço probatório para edificar um édito condenatório no âmbito do processo penal é muito mais rigoroso frente a um processo administrativo sancionador. Como, no caso concreto, o recorrente fora beneficiado pelo trancamento de Ação Penal, haja vista a sua ausência de autoria ou participação na empreitada criminosa, não havia motivos ótimos para sua manutenção da Ação de Improbidade Administrativa, em sede de processo administrativo sancionador, com espeque nos princípios da proporcionalidade, subsidiariedade e da necessidade.
Concluímos que, diante de tudo o que fora abordado no presente texto, o Estado arrimado na sua tríplice função, tem o dever constitucional de, inicialmente, analisar os projetos de leis incriminatórios – novatio legis incriminador – abalizados no Princípio da Necessidade Penal e seus corolários (Princípio da Fragmentariedade, Subsidiariedade e Intervenção Mínima) e desvencilhados de qualquer repercussão simbólica ou midiática, confrontar as normas administrativo-sancionatórias para checar se estas não supririam, a contento, o ajuste pretendido.
Superada a fase de lege ferenda, cabe ao Poder Judiciário o necessário controle, não só das normas postas, mas também dos excessos e arbítrios das Autoridades que se valem de super trunfos ou blitzkriegs procedimentais para, não só, alcançar seu intento persecutório, como também açoitar a dignidade humana do particular. Controle dos excessos são necessários!
Advogado Criminalista, Pós-Graduado em Direito e Tecnologia da Informação pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (POLI-USP) e Pós-Graduando em Direito Penal Econômico pela Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP).
1 CAVALLI, Marcelo Costenaro. Fundamento e limites da repressão penal da manipulação do mercado de capitais: uma análise a partir do bem jurídico da capacidade funcional alocativa do mercado. Tese para obtenção do título de Doutor em Direito. Universidade de São Paulo – USP. 2017.
2 MALAN, Diogo. Processo Penal aplicado à criminalidade econômico-financeira. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. 2015. RBCCrim 114.
3 MARTINELLI, João Paulo Orsini. DE BEM, Leonardo Schmitt. Lições fundamentais de direito penal – parte geral. 3ª Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2018, p. 173.
4 OLIVEIRA, Ana Carolina. Direito de Intervenção e Direito Administrativo Sancionador: o pensamento de Hassamer e o direito penal brasileiro 2012. Tese para obtenção do título de Mestre em Direito. Universidade de São Paulo – USP. 2012.
5 Öztürk c. Allemagne (Requête n. 8544/79), ECHR, 21 de fevereiro de 1984.
6 STF, Rcl. 41.557/SP, 2ª Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 14.12.2020.
DA IMPOSSIBILIDADE DA PRÁTICA DO CRIME DE FRUSTRAÇÃO DO CARÁTER COMPETITIVO DO PREGÃO POR MEIO DE BLOQUEIO
Por: Carolina Lopes Pinheiro[1] e Carolina Schmidt[2]
Visando o combate a cartéis em contratações públicas, tem se tornado cada vez mais comum a existência de processos criminais, tanto na esfera Estadual, quanto na Federal, em que se imputa a prática do crime de frustração do caráter competitivo de licitação[3], na modalidade pregão presencial, por meio da utilização da técnica conhecida como bloqueio ou paredão.
O bloqueio em pregão presencial é definido pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), como uma estratégia anticompetitiva caracterizada pela atuação concertada entre uma empresa que fornece determinado bem ou serviço
Na prática, o objetivo é reduzir as chances das demais licitantes de se classificarem para a fase de lances do pregão, restringindo, com isso, a concorrência no certame.
No entanto, conclui-se que, a tese de bloqueio em pregão presencial, seja na modalidade menor ou maior preço, é incabível, dada a própria lógica desse tipo de licitação.
Assim, o escopo desse artigo é demonstrar que o crime previsto no Art. 337-F, do Código Penal, não pode ser realizado mediante a utilização desse modus operandi, devendo, nesses casos, ser reconhecida a atipicidade da conduta.
Da impossibilidade de bloqueio em pregão
De acordo com o contido na Lei nº 10.520/2002, nas situações em que a Administração Pública necessite da prestação de um serviço ou da aquisição de bens comuns, deverá realizar licitação através da modalidade do pregão, que pode ser presencial ou eletrônico.
Tendo em consideração que o pregão eletrônico não está sujeito à regra dos 10%[4], a discussão nesse artigo se dará somente em torno do pregão presencial.
O pregão presencial, independentemente do seu critério, maior ou menor preço, possui dois momentos distintos de disputa de valores: i) apresentação das propostas de todos os licitantes cadastrados e ii) fase de lances verbais e sucessivos. Nessa última fase participarão somente os licitantes classificados na fase de abertura dos envelopes.
Dessa maneira, de acordo com o artigo 4º, VIII, da Lei 10.502/2002, serão classificados para a fase de lances verbais, o licitante com a melhor proposta e, todos os demais, que atingirem a diferença de, no máximo, 10% (dez por cento) da primeira classificada, devendo ser classificados no mínimo três licitantes.
Destaca-se que as propostas iniciais entregues pelos licitantes ao pregoeiro estarão lacradas nos envelopes, de forma que os demais concorrentes não conseguem visualizá-las antes da classificação inicial, portanto, é impossível aos licitantes possuírem controle das ofertas de todos os seus concorrentes, de modo a restringir ou bloquear a competitividade do certame.
Deste modo, verifica-se em processos dessa natureza, que a argumentação que vem sendo apresentada pelo Órgão acusador, de que os acusados se utilizam do bloqueio com intuito de afastar concorrentes da fase de lances e, assim, inviabilizar a disputa, é completamente descabida. Isso porque, essa tese tem se fundamentado em eventos inviáveis, dada a dinâmica da modalidade licitatória, pois a própria normativa dispõe de mecanismos que proporcionam um maior número de participantes para a fase de lances, estabelecendo apenas a quantidade mínima e, não máxima.
Isto é, não há como um licitante impedir que seus concorrentes participem da fase aludida, pelos simples fatos de: i) não terem domínio sobre as propostas ofertadas por todos os concorrentes; e ii) a lei determinar que serão classificados no mínimo três - e não somente três – concorrentes.
Nessa lógica, Carlos Ari Sundfeld[5] aduz que
“Eventual acerto prévio entre três licitantes quanto a suas ofertas iniciais pode existir, claro, mas não tem como lhes garantir a passagem, nem pode gera o bloqueio de terceiros; isso depende dos valores de todas as propostas iniciais, o que o acerto só entre três licitantes não é capaz de afetar. ” (2020, p. 580)
“Se três licitantes não têm poder de dominação sobre os demais e não mandam no mercado (ditando comportamentos e impondo condutas no ambiente da licitação como um todo), não há como supor a existência de cartel entre eles. Não há como supor acordo ilógico, o qual, por conta das regras, não poderia garantir a exclusão de competidores não alinhados. ” (2020, p. 580)
Ainda, conclui:
“À luz das regras do pregão presencial, não é possível que um acordo entre licitantes bloqueie a ida de terceiro à fase de Lances. Não há número máximo para a passagem de concorrentes à segunda fase (passam todos com propostas iniciais até 10% superiores à menor), sendo impossível que algum acordo bloqueie a passagem de terceiro”. (2020, p. 582)
Nesse sentido, cumpre ressaltar ainda, que mesmo não se tratando do entendimento perfilhado por essas autoras, a tese de bloqueio, só seria minimamente cabível, em certames cujo critério é o do menor preço, visto que, nesses casos, a Administração Pública consegue observar se as propostas dos licitantes na primeira fase são irrisórias, ou seja, ofertas que claramente estão em desacordo com o mercado e, portanto, são impraticáveis.
Já, em se tratando de um pregão pelo critério do maior preço, o objetivo da Administração Pública é justamente o oposto, isto é, a obtenção da maior oferta. Assim, será vencedor o participante que apresentar a proposta de maior valor. O que torna descabida a alegação de lesão a competitividade e eventual prejuízo à Administração Pública.
Conclusão
Ainda que o bloqueio em pregão presencial, venha sendo indicado pelo Ministério Público como um meio utilizado para a prática do crime de frustração do caráter competitivo das licitações, pela argumentação acima apresentada, é possível concluir que, dada a própria dinâmica desse tipo de certame, o bloqueio não é um instrumento hábil para impedir o caráter competitivo das contratações públicas.
Sendo assim, este tipo de acordo colusivo não seria capaz de eliminar ou mesmo, restringir, a participação dos demais licitantes para a 2ª fase da disputa, de modo a impedir a concorrência dos processos de contratação de bens e serviços pela Administração Pública.
Dessa forma, nos processos em que o Órgão acusador indicar o bloqueio como sendo o único método empregado para a configuração desse delito, a atipicidade da conduta deve ser reconhecida, com a consequente absolvição do acusado.
[1]Advogada especialista em Direito Penal e Criminologia (UFPR) e mestre em Direitos Fundamentais e Democracia (Unibrasil).
[2]Advogada especialista em Direito Administrativo (Instituto de Direito Bacellar) e bacharelanda em Gestão Pública (UFPR).
[3]Art. 337-F, do Código Penal: Frustrar ou fraudar, com o intuito de obter para si ou para outrem vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação, o caráter competitivo do processo licitatório: Pena - reclusão, de 4 (quatro) anos a 8 (oito) anos, e multa.
[4] A estratégia de bloqueio não se aplica ao pregão eletrônico, pois nesta modalidade todas as empresas com propostas dentro dos parâmetros estabelecidos pelo Edital podem participar da fase competitiva, em que são apresentados os lances (art. 29 do Decreto nº 10.024/2019).
[5] SUNDFELD, Carlos Ari et. al. Controle Concorrencial nas licitações: a tese do bloqueio em pregão presencial. Revista Jurídica da Presidência. Brasília, v. 21, n. 125, p. 564-589, Out. 2019/Jan. 2020.
Referências
BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Institui o Código Penal.
BRASIL. Decreto nº 10.024, de 20 de setembro de 2019. Regulamenta a licitação, na modalidade pregão, na forma eletrônica.
CADE. Guia - Combate a Cartéis em Licitação. Disponível em:
https://cdn.cade.gov.br/Portal/Not%C3%ADcias/2019/Cade%20publica%20Guia%20de%20Combate%20a%20Cart%C3%A9is%20em%20Licita%C3%A7%C3%A3o__guia-de-combate-a-carteis-em-licitacao-versao-final-1.pdf.
SUNDFELD, Carlos Ari et. al. Controle Concorrencial nas licitações: a tese do bloqueio em pregão presencial. Revista Jurídica da Presidência. Brasília, v. 21, n. 125, p. 564-589, Out. 2019/Jan. 2020.
ORDEM ECONÔMICA E A (IM)POSSIBILIDADE DE SER CONSIDERADA BEM JURÍDICO AUTÔNOMO
Por: Lívia Maria Alves Teixeira Lima[1]
Delimitar os bens jurídicos tutelados pelo Direito Penal é uma garantia do controle do ius puniendi do Estado contra os cidadãos. O primeiro a desenhar a teoria do bem jurídico foi Franz Birnbaum (século XIX) que dizia que o delito não lesiona direitos, mas sim lesiona bens fundamentais imateriais; esses são valores da existência social, valores esses instituídos pela própria vida em sociedade. Quando ocorre um homicídio, por exemplo, o bem violado é, evidentemente, a vida humana. Ademais, implicitamente são violados de forma secundária a integridade física e a liberdade, pois o corpo da vítima é destruído e seu direito de ir e vir cerceado de forma definitiva e irremediável. No âmbito do direito penal econômico, como a natureza dos bens jurídicos tutelados é transindividual ou metaindividual, há ainda muitas controvérsias e polêmicas sobre quais bens jurídicos são tutelados quando da análise de alguns tipos penais econômicos.
Como ponto de partida, o crime de lavagem de dinheiro ainda levanta dúvidas na doutrina e jurisprudência, nacionais e estrangeiras, de qual seria o bem jurídico violado quando da prática do mencionado fato típico. Existem três correntes distintas sobre qual bem jurídico é ofendido quando da prática do branqueamento de capitais: a primeira defende ser a ordem econômica; a segunda defende ser a administração da justiça e, por último, a mais complexa em que os bens jurídicos tutelados são múltiplos: a administração da justiça, a ordem econômica e o bem jurídico protegido pelo crime antecedente. A dificuldade encontrada pelos órgãos de persecução penal para delimitar as condutas praticadas pelos agentes e para a obtenção de provas coloca em risco as funções de investigar, processar e julgar dos órgãos de justiça criminal.
Os tipos penais econômicos, em sua maioria, são normas penais em branco e crimes de perigo abstrato. Esses tipos penais vazios, geralmente, precisam de complementos de resoluções emanadas de órgãos do Poder Executivo, tais como Banco Central, Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), Conselho Monetário Nacional (CMN), entre outros.
Conceituar o que seria ordem econômica é uma tarefa complexa, pois nem mesmo os especialistas chegaram a um consenso do que objetivamente seria esse “possível” bem jurídico. A Constituição Federal, em seu artigo 170, expressa quais são os fundamentos que norteiam a ordem econômica: a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa. A constitucionalização da ordem econômica mostra o quão ela é importante e cara ao estado democrático de direito, pois ela objetiva assegurar uma vida digna e igualitária para todos os cidadãos.
Existem diversas leis esparsas que tipificam condutas contra a ordem econômica, mas no presente artigo destacam-se duas legislações: a lei 8.137/90, conhecida como crimes contra a ordem tributária e a lei 8.176/91. A primeira, nos incisos do seu artigo 4º, elenca as condutas contra a ordem econômica, consideradas crimes. A segunda, as condutas tipificadas estão previstas no artigo 1º da referida lei. O Código de Processo Penal Brasileiro, em seu artigo 312, também traz o termo “ordem econômica” de forma muito vaga, pois como decretar prisão preventiva baseado em termos genéricos (ordem econômica, ordem pública)?
O professor Luís Greco, catedrático da Universidade Humboldt de Berlim, em um vídeo para o canal no YouTube intitulado Senhor Criminologia[2], com apoio da Universidade Federal de Minas Gerais, afirma que ele tem tendências a não aceitar a ordem econômica como bem jurídico autônomo, porém ele afirma ser necessário um estudo mais aprofundado do tema e análise dos tipos penais. Essa palestra ministrada pelo professor Greco trouxe uma inquietude nessa que vos escreve sobre o tema apontado no título e objeto desse artigo. Ele menciona também que provavelmente, quando da análise dos tipos penais ditos ofensivos a ordem econômica, concluiríamos que em todos esses tipos penais existe um perigo abstrato para bens individuais (patrimônio, propriedade) ou bens coletivos, por exemplo, a concorrência (professor Luís Greco considera como um bem jurídico).
As leis 8.137/90 e a lei 8.176/91, a título de exemplo, possuem em seu bojo um tipo penal conhecido como “cartel”: acordo feito entre duas ou mais empresas do mesmo ramo, que combinam os preços dos seus produtos a fim de maximizar os lucros e estabelecer clientes e mercados de atuação, entre outras finalidades. Podemos perceber de plano que a livre concorrência é afetada, pois as outras empresas que não participam do processo de cartelização inevitavelmente vão perder espaço no mercado e, por consequência, serão obrigadas a encerrar seus empreendimentos. Os consumidores também são afetados porque não possuem direito a escolha do melhor produto em termos de qualidade e preço, forçando-os a comprarem produtos por preços abusivos. É instantâneo a nossa vontade de apontar a ordem econômica como bem jurídico autônomo, mas a conclusão que se chega é que bens jurídicos individuais são afetados com esse tipo de conduta, sobretudo o patrimônio.
A ordem econômica, possivelmente, não pode ser entendida como um bem jurídico autônomo, mas a base de outros bens jurídicos que fundamental a tutela penal (concorrências, relações de consumo, administração pública, entre outros). Os crimes contra a ordem econômica nada mais são que delitos que ofendem um conjunto de princípios de um sistema amplo de normas; a ordem econômica é atingida através dos bens jurídicos nos quais ela se presta a regulamentar, mas aquela, por si só, não é capaz de ser lesada de forma independente. A ordem econômica precisa de um complemento: ordem econômica + bem jurídico individual ou supraindividual penalmente relevante. Há a diminuição do patrimônio das empresas que não formalizaram o cartel e, claro, dos consumidores. Não há um entendimento claro sobre isso, nem tão pouco pacífico sobre se a ordem econômica figura como bem jurídico autônomo no direito penal econômico. Considerações mais aprofundadas e atentas, no futuro, serão de grande utilidade e fonte de debates e reflexões acerca desse assunto.
Ainda pairam muitas dúvidas acerca desse tema, uma temática inclusive pouco explorada pela doutrina especializada. O objetivo primordial do presente texto não é esgotar ou trazer respostas definitivas ao tema; a finalidade é fomentar a reflexão do que podemos ou não considerar bens jurídicos tutelados pelo direito penal, haja vista que não se pode considerar tudo como bem jurídico penalmente relevante.
A maioria dos autores que produzem sobre Direito Penal, sobretudo o Direito Penal Econômico não fazem maiores questionamentos, aceitando de pronto a ordem econômica como bem jurídico. O recrudescimento da chamada sociedade de risco de Ulrich (1986) não pode legitimar a desenfreada “intromissão” do Direito Penal em condutas que podem ser combatidas pelo direito administrativo ou civil. Se o Estado não souber os seus limites, até onde pode punir e como punir, abre-se espaço para arbitrariedades e flexibilização de garantias constitucionais, ainda mais em um ramo do direito em que se cerceia a liberdade, bem jurídico este tão caro que não pode ser restituído, pois o tempo perdido não pode mais ser recuperado, nem mesmo com indenizações na esfera cível. Há de se ter um olhar mais cuidadoso dos estudiosos em delimitar quais bens jurídicos merecem a tutela penal e quais podem ser preservados por outros ramos do direito.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Disponível em: www.planalto.gov.vr/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm Acesso em: 01 out. 2021
BRASIL. Lei n. 8.137, 1990. Define crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo, e dá outras providências. Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8137.htm. Acesso em: 01 out. 2021
BRASIL. Lei n. 8.176, 91. Define crimes contra a ordem econômica e cria o Sistema de Estoques de Combustíveis. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8176.htm Acesso em: 01 out. 2021
SOUZA, Luciano Anderson. Análise da legitimidade da tutela penal da ordem econômica. 2011. Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Direito Penal, USP, São Paulo.
WUNDERLICH, Alexandre, et al. Direito penal econômico: crimes financeiros e correlatos. São Paulo: Saraiva, 2011
[1] Graduada em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis; Pós-graduanda em Direito Penal Econômico pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; Advogada.
[2]CALHAU, Lélio. Senhor Criminologia. Criminalidade Econômica – Professor Luís Greco – UFMG/Canal Senhor Criminologia. YouTube, Maio 2021. Disponível em: https://youtu.be/L9UCXag6cPo
O ESCRIVÃO E O MINISTRO
Por: Beno Brandão e Alessi Brandão
É fato que todos os advogados, ainda que neófitos, têm alguma passagem pitoresca para relatar do dia a dia da relação com a Justiça. Histórias de audiências conturbadas, de bons ou maus atendimentos nos fóruns, delegacias ou outros órgãos públicos. Muitas delas são recheadas de nulidades e salpicadas de situações que requerem do advogado, além do conhecimento jurídico, um certo traquejo para contorná-las, ou, ao menos, para minorar o desgaste do momento.
Dentro desse contexto, recentemente vivemos duas situações, ne- gativas infelizmente, contendo alto grau de desprezo com a atuação pro- fissional do advogado, ocorridas em competências, digamos, diametral- mente opostas do nosso sistema processual. Em uma delas, a negativa de acesso aos autos pela defesa, cuja ordem emanou de um integrante da mais alta Corte do país, no Inquérito n. 4781, conhecido como o Inquérito das Fake News; o outro caso, o impedimento de acesso à defesa, oposta por um escrivão de Polícia Civil, a um mero boletim de ocorrência e de- poimento dos policiais militares antes da realização do interrogatório.
Comecemos pela situação de piso, ocorrida ao final de uma noite, quando solicitados a atender um cliente, que se encontrava na Delegacia da Mulher de Curitiba, acusado de ter agredido sua esposa. Embora não seja algo absoluto, não se pode negar que boa parte das vezes os advoga- dos sofrem certo preconceito quando defendem investigados de prática de agressão contra mulheres; o mesmo ocorre quando se trata de crime contra crianças e adolescentes. Nesse panorama é que se desenrolou o caso em apreço.
Logo no primeiro contato com o cliente, um senhor de mais de 60 anos que havia, pouco tempo antes, se submetido a uma cirurgia na prós- tata para a retirada de um tumor e que lhe rendeu uma incontinência urinária, verificou-se que ele havia se urinado e estava com uma das mãos algemada a um pedaço de ferro no interior da delegacia; não havia tido a oportunidade de ir ao banheiro, apesar de suas súplicas para os policiais que lá estavam.
Após breve conversa com o cliente, pediram os advogados que a família lhe trouxesse uma outra calça, posto que já passava de meia-noite e certamente a madrugada seria longa até que fosse lavrado o flagrante, pois a delegacia estava com muitas ocorrências. Perto das 3 horas da ma- drugada e sem nenhum sinal de início do seu interrogatório, solicitou-se aos policiais que entregassem a calça limpa e um casaco ao detido, que, apesar da idade avançada e sem registro de antecedentes, permanecia sendo tratado como uma pessoa de alta periculosidade: algemado a um cano no interior da delegacia. Um dos policiais até chegou a se sensibili- zar com a situação, ali, na fria madrugada curitibana, todo urinado e al- gemado. Contudo, foi repreendido por outra policial, que disse que se ele, o cliente, quisesse se trocar, que o fizesse após ser interrogado. A sensação que se tem – e cremos que muitos colegas já a tiveram – é de que para alguns não bastam as penalidades previstas no Código Penal após a con- denação. O escárnio e o constrangimento já são impostos na partida, já no início do procedimento investigatório.
Mas esse não é o ponto forte do nosso relato; apenas serve como pano de fundo para a arbitrariedade maior que veio a ocorrer. Pouco an- tes do interrogatório, isso já passado das 4 horas da madrugada, verificou- se que a sedizente vítima havia cansado de esperar sua inquirição, pelo que deixou a delegacia sem prestar esclarecimentos – e, portanto, forma- lizar a acusação contra o cliente; pediram os advogados, então, para ler os depoimentos prestados pelos policiais militares que atenderam a ocor- rência e verificar exatamente o que havia sido registrado no respectivo boletim. Medida básica que qualquer advogado tomaria: ter ciência pré- via da acusação para poder instruir o cliente para seu interrogatório. Regra básica, que tem como pressuposto lógico um direito comezinho, o de ter franqueado o acesso ao que já foi documentado.
Apesar dos abusos e constrangimentos já cometidos naquela noite, o escrivão apresentou o gran finale, transformando aquele senhor, subme- tido a uma situação humilhante, na personificação de Josef K., o famoso personagem de Franz Kafka, na obra O Processo, de leitura obrigatória a qualquer profissional do direito, onde se critica fortemente o autoritaris- mo do Estado e toda a estrutura judicial.
Munido de toda a sua autoridade – destaque-se que não participou do ato a delegada que subscreveu o termo posteriormente – o escrivão disse que não permitiria a leitura da acusação, ou seja, o que continha o boletim de ocorrência e nem o que tinham os policiais militares dito em seus depoimentos; afirmou que se os advogados ali presentes lessem es- sas peças, o cliente teria que ser acompanhado por outro advogado ou poderia até ser interrogado sem a presença de um defensor. A situação era dantesca. Tudo isso poderia ser passível de dúvida sobre sua efetiva ocorrência, não fosse por um detalhe: o indeferimento do escrivão restou consignado no termo de interrogatório. Diante da manifesta ilegalidade, a orientação da defesa técnica não poderia ser outra que não o do interro- gado permanecer em silêncio; além disso, solicitaram-se providências ad- ministrativas na Corregedoria da Polícia Civil e criminais ao Ministério Público, pela prática do crime do art. 32, da Lei n. 13.869/19, que prevê detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa àquele que
“Negar ao interessado, seu defensor ou advogado acesso aos au- tos de investigação preliminar, ao termo circunstanciado, ao in- quérito ou a qualquer outro procedimento investigatório de in- fração penal, civil ou administrativa, assim como impedir a obtenção de cópias, ressalvado o acesso a peças relativas a dili- gências em curso, ou que indiquem a realização de diligências futuras, cujo sigilo seja imprescindível”.
O outro caso que se passa a citar é de interesse nacional. Trata-se do Inquérito 4781, em trâmite perante o Supremo Tribunal Federal e, em que pese já decidido por maioria ampla do Plenário daquela Corte ser legal a sua instauração, certamente ainda gerará muito questiona- mento sobre sua licitude. Falamos do que se convencionou chamar de o Inquérito das Fake News.
Há uma certa limitação no que se pode expor aqui sobre o conteúdo do processo, vez que ele tramita, infelizmente, sobre segredo de justiça, a despeito de alguns advogados que atuam no caso já terem solicitado a sua publicização (exatamente para que que toda a imprensa e a população te- nham pleno conhecimento de seu conteúdo). Trata-se, pois, de fazer valer o princípio da publicidade, estabelecido expressamente na Constituição Federal, em seu art. 5º, LX, art. 93, inciso IX e art. 37, caput. Esse princípio ao mesmo tempo não só de resulta numa garantia às partes no processo, mas, concomitantemente, na efetivação da transparência necessária para o controle democrático da atuação do Poder Judiciário, conforme ensina Simone Schreiber.1
No entanto, a decretação desse segredo foi tão fortemente encarna- da pelo seu relator (que foi nomeado – e não sorteado – para presidi-lo), que os próprios advogados dos investigados tiveram e ainda continuam a ter toda uma série de limitações para acessar a investigação.
Apropriado um rápido histórico acerca desse Inquérito n. 4781. Foi ele instaurado por ordem do Presidente daquela Corte, Ministro Dias Toffoli, através da Portaria GP. n. 69, de 14 de março de 2019. Designou-se como relator o Ministro Alexandre de Moraes, o qual esta- beleceu em 19 de março de 2019 o objeto da investigação como sendo notícias fraudulentas ( fake news), falsas comunicações de crimes, de- nunciações caluniosas, ameaças e demais infrações revestidas de ani- mus caluniandi, diffamandi ou injuriandi, que estariam a atingir a hono- rabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros; bem como de seus familiares, quando houver relação com a dignidade dos Ministros, inclusive o vazamento de informações e documentos sigilosos, com o intuito de atribuir e/ou insinuar a prática de ilícitos por membros da Suprema Corte, por parte daqueles que têm o dever legal de preservar o sigilo; e a verificação da existência de esquemas de finan- ciamento e divulgação em massa nas redes sociais, com o intuito de lesar ou expor a perigo de lesão a independência do Poder Judiciário e ao Estado do Direito.
A razão que levou a presidência do Supremo Tribunal Federal do país a proceder dessa forma teve como estopim a notícia de um artigo, no qual um Procurador da República no Paraná e então integrante da Força Tarefa da Lava Jato publicar sobre o Poder Judiciário, criticando a competência da Justiça Eleitoral para julgar casos de corrupção, visto que, nas palavras do Procurador, publicadas no site “O Antagonista”, “a Justiça Eleitoral histori- camente, não condena e não manda ninguém para a prisão.”
Referido inquérito, que até hoje, transcorrido mais de ano, não veio a público em sua integralidade, mas que se diz já contar com mais de 10 mil páginas, parece investigar um número indefinido de assuntos, en- tre eles, inclusive, o fato envolvendo o ex-Procurador-Geral da República,
Rodrigo Janot, que disse certa feita ter ido armado ao Supremo Tribunal Federal, com a intenção de assassinar o Ministro Gilmar Mendes. Contudo, não se sabe ao certo o que exatamente existe dentro desse inquérito.
Em 26 de maio de 2020 o relator do Inquérito 4781 determinou o afastamento do sigilo bancário e fiscal, busca e apreensão e bloqueio em redes sociais de diversas pessoas, entre eles deputados federais, influencia- dores digitais e empresários (estes últimos no pressuposto de que, possivel- mente, financiariam perfis que promoveriam fake news). A questão posta neste artigo não se relaciona aprofundar o acerto ou desacerto da decisão, não se discute sequer se há ofensa ou não aos direitos de expressão e livre manifestação do pensamento. O ponto é outro. Tal qual o que ocorreu no primeiro caso, onde um escrivão de polícia, fazendo as vezes de um delega- do de polícia, feriu prerrogativas do advogado, o mesmo ocorreu – e ainda continua – no caso em trâmite perante o Supremo Tribunal Federal.
Com efeito, no mesmo dia da operação os advogados dos atingidos pela busca e apreensão imediatamente requereram formalmente no Supremo Tribunal Federal cópia do processo e, principalmente, da deci- são, posto que ela não instruiu os respectivos mandados. O decisum, e somente ele, foi disponibilizado no site daquela Corte no dia seguinte à operação. Não obstante os esforços de todos os advogados constituídos nos autos, o acesso ao processo demandou vários dias.
Nesse ínterim, foram impetrados vários habeas corpus visando combater a ilegalidade de não concessão de vista, valendo destacar os writs do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (HC 186492) e da Associação Nacional de Membros do Ministério Público – MP. Pró Sociedade (HC 185500). Posteriormente se constatou que de fato o Ministro relator havia, dois dias após a operação, decidido por dar aces- so parcial do inquérito; contudo, a burocracia, que tanto o judiciário pro- cura combater, imperou no caso, vez que por se tratar do inquérito físico, todas as intimações dos advogados estavam e continuam sendo feitas por correio. Se não bastasse, os defensores tiveram ainda que esperar que os autos voltassem da Procuradoria Geral da República, sendo, que de fato, o primeiro contato havido com algum elemento concreto do malsinado inquérito ocorreu somente 10 dias após. Isso sem contar que durante esse período ocorreram algumas audiências para inquirição dos investigados, sobre os fatos que permaneciam sigilosos. Na prática, ocorreu a mesma si- tuação do caso relatado na Delegacia da Mulher de Curitiba: interrogatório sem franqueamento prévio à defesa do dos elementos probatórios. Em face disso, alguns alvos do Inquérito 4.781 permaneceram em silêncio.
O problema não se findou por aí. Com surpresa, os vários defenso- res que atuam no caso verificaram que não foi disponibilizado o inquéri- to em si, mas, sim, uma parte pequena, constituída basicamente por do- cumentos selecionados, de pouca importância, que passaram a formar o denominado Apenso 70. Da análise do referido apenso, constatou-se a ausência de vários relatórios, que foram expressamente citados na deci- são do relator, que decidira então pela busca e apreensão, quebras de sigi- los bancário e fiscal e bloqueio (indevido) de perfis dos investigados nas redes sociais. De fato, por ocasião da imposição das cautelares, o relator fez expressa referência a esses documentos (relatórios), os quais não esta- vam no Apenso 70.
Assim, foram requeridos os documentos que foram a base funda- mental para a decretação das medidas em comento. Invocou-se no pleito, como é curial, não só o Estatuto da Advocacia e da OAB (Lei n. 8.906/94, art. 7°, incs. XIII, XV e XXI), como também a Súmula Vinculante n. 14 do STF, a qual estabelece que “É direito do defensor, no interesse do repre- sentado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”.
O pedido foi indeferido ao argumento de que haveria ainda dili- gências pendentes de realização ou ainda em curso.
De fato, a jurisprudência tem temperado e retirado o caráter abso- luto de um direito de acessar todo e qualquer procedimento investigató- rio. Nesse sentido, vale citar a Reclamação n. 29.958, de relatoria do Ministro Alexandre de Moraes, onde restou consignado que o direito do defensor de acesso aos autos esbarra em diligências ainda em andamento. Há nisso uma certa subjetividade e falta de precisão no que exatamente consistiria o conceito de diligências em andamento. Por diligências em andamento, por óbvio, não se pode confundir investigação em curso. O que se pode compreender como razoável, que necessariamente não deva ainda ser acessível ao investigado e seu advogado, é aquela diligência que, descoberta a sua existência, poderá vir a ser frustrada seu resultado, pos- to que ainda não finalizada. Exemplo disso é a interceptação telefônica, pois, sabendo o investigado que está sendo monitorado, lógico que irá cessar suas comunicações; outro exemplo é o agente infiltrado, com a fi- nalidade de descobrir crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes (art. 190-A, da Lei n. 8.96/90), bem como também a infiltra- ção de policial em crimes praticados por organização criminosa (art. 3°, VII, da Lei n. 12.850/13).
Deveras, tendo havido no bojo do referido inquérito – que tramita desde seu nascedouro em sigilo e onde inclusive foi determinada a censu- ra prévia da Revista Crusoé e do site O antagonista – a decretação das cau- telares de busca e apreensão de dispositivos eletrônicos, em especial tele- fones celulares, quebra de sigilos bancário e fiscal e, para o espanto da comunidade jurídica, de perfis nas mídias sociais, a conclusão lógica é de que os relatórios citados na decisão constituem prova já realizada. Prova já encartada aos autos, tanto que foram utilizadas para a promoção de medidas invasivas.
Portanto, a menos que num futuro incerto se demonstre o oposto, com a publicização da investigação, ou ao menos disponibilização às de- fesas, as provas que materializam ditos relatórios constituem-se atos de investigação finalizados e concluídos. Não é demais ressaltar que a fase ostensiva da operação (rectius: as buscas e apreensões) foram em maio de 2020, passados, portanto, meses sem que nenhum advogado tenha tido conhecimento das provas que alicerçaram o decisum do relator.
Amplamente noticiado que a decisão de bloquear os perfis dos inves- tigados, inclusive no exterior, sofreu relativa resistência das redes sociais, em especial do Facebook. No entanto, a ameaça de penas de multa altíssimas e até a prisão do seu presidente no Brasil, fizeram com que a ordem fosse cumprida. E os processos, ou parte significativa deles, de interesse direto da defesa, continuam inacessíveis. Na prática, as defesas continuam às es- curas, sem poder ter a real dimensão das provas (no pressuposto de que de fato há algo de concreto). Não há, nesse panorama, como exercer de fato uma defesa eficaz. Como bem apontam Alberto Zacharias Toron e Alexandra Lebelson Zafir, “Advogados cegos, ‘blind lawyers’, poderão, quem sabe, confortar afetivamente seus assistidos, mas, juridicamente, prestar-se-ão, unicamente, a legitimar tudo o que no inquérito se fizer con- tra o indiciado.”2
O ponto nevrálgico é que a decisão da busca e apreensão, bloqueio e quebra de sigilos, baseia-se em provas (relatórios) já encartadas ao pro- cesso, que não poderia por essa razão serem sonegadas ao conhecimento dos atingidos pelas medidas impostas. Tomando por base o magistério de
Paulo Rangel, “Por conclusão, os princípios da verdade real e da igualda- de das partes na relação jurídico-processual fazem com que as provas car- readas para os autos pertençam a todos os sujeitos processuais, ou seja, dão origem ao princípio da comunhão das provas.”3
O postulado da comunhão das provas é bem explorado em diver- sas decisões do Supremo Tribunal Federal, tendo no decano da Corte, Ministro Celso de Mello, a melhor expressão de sua importância. Sua excelência, na Reclamação n. 18399, com maestria peculiar ensina que “a prova penal, uma vez regularmente introduzida no procedimento persecu- tório, não pertence a ninguém, mas integra os autos do respectivo inqué- rito ou processo, constituindo, desse modo, acervo plenamente acessível a todos quantos sofram, em referido procedimento sigiloso, atos de perse- cução penal por parte do Estado”.4
Os tais relatórios apenas deixaram de constar do Apenso 70, que constitui de peças as mais esparsas possíveis, sem uma ordem clara, sele- cionadas sem um critério claro. Mas é fato que tais relatórios, omitidos nas peças entregues aos inúmeros advogados do feito (visto que também são inúmeros os investigados), certamente integram o Inquérito das Fake News, que se diz possuir mais de 10.000 páginas. O fato de estarmos em fase de investigações, e não de ações penais propriamente ditas, não des- legitima a necessidade da atuação da defesa por advogado. Como bem lembrado por Carlos Hélder Carvalho Furtado Mendes, Marcos Eugênio Vieira Melo e Tiago Bunning Mendes, “a efetivação do direito de defesa na fase de investigação é um dos passos necessários para uma investiga- ção mais democrática”.5
O conhecimento sobre dois casos, um da Delegacia da Mulher de Curitiba e outro do Supremo Tribunal Federal, ocorridos ainda nesse fatídi- co ano de 2020, servem para bem ilustrar que ilegalidades jurídicas são co- metidas em qualquer lugar, independentemente da posição de seus autores. Cotidianamente, por esse país de proporções continentais, infelizmente, não é surpresa para a maioria dos advogados e serve bem para ilustrar que estamos retrocedendo no campo da violação aos direitos da defesa. O exem- plo que vem de cima, pode ser para o bem ou para o mal. Se a mais alta Corte de Justiça do Brasil demora semanas para dar acesso aos autos, e quan- do o faz, seleciona as peças, não ofertando exatamente aquilo que seria o essencial e que foi a base para decisão de busca e apreensão e outras medidas, o que se esperar de outras autoridades, espalhadas pelos rincões do Brasil?
Os exemplos mostram as batalhas diárias que são colocadas a nós, advogados, em situações que a princípio deveriam ser simples e não neces- sitariam energia alguma: ter ciência da acusação e das provas coligidas.
Chegamos a um ponto que, como disse Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay:
“Para nós, advogados, exercer a advocacia passou a ser também fazer o enfrentamento político. Não a política partidária, mas a defesa da Constituição. A advocacia vive e sobrevive dentro do Estado democrático de Direito e dele depende, pois há de exercer seu papel indispensável à administração da Justiça sempre com fiel observância à lei e à Constituição. E não se trata de mera op- ção profissional! É um dever, que impõe ao advogado grande comprometimento com toda e qualquer luta contra arbitrarieda- des e violências às liberdades, aos Poderes da República, ao devi- do processo legal, ao direito de defesa.”6
A advocacia, notadamente a advocacia criminal, é uma atividade de resistência, contra os abusos dos Estado e seus agentes, em quaisquer ní- veis. Aquele que se presta ingressar nas trincheiras da defesa da liberdade, do respeito ao devido processo legal, contra a tirania e o autoritarismo, jamais pode se esquecer de Sobral Pinto, o advogado dos advogados, que imortalizou a frase de que “A advocacia não é profissão de covardes”.
De nada adianta termos leis e mais leis assegurando direitos à defe- sa, como a recente Lei n. 13.869, de 5 de setembro de 2019. Magistrados e membros do Ministério Público devem compreender que a advocacia, notadamente a defensiva, necessita ser respeitada, não podendo, ainda que em um pensamento inconfesso, ser entendida como um estorvo ao processo ou à investigação. Marta Saad, com muito discernimento e olhar
crítico, já anotou e notou que “a Constituição vem sendo reiteradamente interpretada de forma a restringir as garantias constitucionais lá escancara- das, reduzindo-se a nada o direito de defesa (art. 5º, LV) e o direito à assis- tência de advogado (art. 5º, LXXIV, arts. 133 e 134), já na persecução prepa- ratória ou prévia”7. Convém lembrar que a atual Constituição, nas palavras do Ministro Luís Roberto Barroso, “é o símbolo maior de uma história de sucesso: a transição de um Estado autoritário, intolerante e muitas vezes violento para um Estado democrático de direito”8.
Bem observou o advogado Leônidas Ribeiro Scholz, em artigo que merece atenta leitura, que “O grande desafio da advocacia criminal no Brasil reside em lutar incansavelmente pela observância do devido pro- cesso legal, que não é favor, não é indulgência do Estado; é o estrito cum- primento da legislação, que ele próprio, Estado, editou.”9
Parafraseando o Ministro Marco Aurélio, que asseverou que “são tempos estranhos, muito estranhos”, ao se referir à conclamação da socie- dade para os protestos do ano passado, realmente estamos passando por tempos estranhos. O Brasil, que avançou nas décadas passadas, no rumo da democracia plena, vê, vez ou outra, pinceladas de autoritarismo, e de onde jamais poderia se esperar. Interpreta-se a Constituição Federal de forma a renegar o óbvio; tudo é relativizado e entendimentos são modificados da noite para o dia, desnudando um país sem segurança jurídica.
Mais do que nunca a advocacia se faz necessária. Advocacia respei- tosa, mas não subserviente; ética, mas não acovardada. Jamais esqueça- mos de Ruy Barbosa: “O advogado pouco vale nos tempos calmos; o seu grande papel é quando precisa arrostar o poder dos déspotas, apresenta- do perante os tribunais o caráter supremo dos povos livres.”
Referências
1 SCHREIBER, Simone. Notas sobre o princípio da publicidade processual no pro- cesso penal. Revista SJRJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 36, 2013, p. 137.
2 TORON, Alberto Zacharias. SZAFIR, Alexandra Lebelson. Prerrogativas profissio- nais do advogado, p. 86, item n. 1, 2006, OAB Editora.
3 RANGEL, Paulo. Direito processual penal, p. 411/412, item n. 7.5.1, 8. ed., 2004, Lumen Juris.
4 Fonte cit. Os destaques são do original.
5 MENDES, Carlos Hélder Carvalho Furtado. MELO, Marcos Eugênio Vieira. MENDES, Tiago Bunning. A Lei 13.245/2016 e a efetivação das prerrogativas do advo- gado na investigação criminal: garantia constitucional ao direito de defesa na fase preliminar. Artigo publicado na RBCCrim n. 159 (setembro 2019), p. 286.
6 CASTRO. Carlos de Almeida Castro. É a Constituição, estúpido! diz Kakay. Sítio “Poder 360”, publicado em 7/8/20. https://www.poder360.com.br/opiniao/justica/ e-a-constituicao-estupido-esbraveja-kakay/
7 SAAD, Marta. O direito de defesa no inquérito policial. São Paulo: Revista dos Tribunais (Coleção Estudos de Processo Penal Prof. Joaquim Canuto Mendes de Almeida, v. 9), p. 200.
8 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção de um novo modelo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 492.
9 SCHOLZ, Leônidas Ribeiro. “Desafio da advocacia criminal no Brasil” artigo publi- cado no Boletim IBCCRIM n. 207, fevereiro de 2010, p. 13.
BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção de um novo modelo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
CASTRO. Carlos de Almeida Castro. É a Constituição, estúpido! diz Kakay. Sí- tio “Poder 360”, publicado em 7/8/20. https://www.poder360.com.br/opi- niao/justica/e-a-constituicao-estupido-esbraveja-kakay/
MENDES, Carlos Hélder Carvalho Furtado. MELO, Marcos Eugênio Vieira. MENDES, Tiago Bunning. A Lei 13.245/2016 e a efetivação das prerrogativas do advogado na investigação criminal: garantia constitucional ao direito de defesa na fase preliminar. Artigo publicado na RBCCrim n. 159 (setembro 2019).
RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal, p. 411/412, item n. 7.5.1, 8. ed., 2004, Lumen Juris.
SAAD, Marta. O direito de defesa no inquérito policial. São Paulo: Revista dos Tribunais (Coleção Estudos de Processo Penal Prof. Joaquim Canuto Men- des de Almeida, v. 9).
SCHOLZ, Leônidas Ribeiro. “Desafio da advocacia criminal no Brasil” artigo publicado no Boletim IBCCRIM n. 207, fevereiro de 2010, p. 13. TORON, Al- berto Zacharias.
SZAFIR, Alexandra Lebelson. Prerrogativas profissionais do advogado, p. 86, item n. 1, 2006, OAB Editora.
SCHREIBER, Simone. Notas sobre o princípio da publicidade processual no processo penal. Revista SJRJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 36, 2013.
DEVEMOS LUTAR PELA SOLIDEZ EPISTEMOLÓGICA NO PROCESSO PENAL
Por: Douglas Rodrigues da Silva
A faculdade de direito, de uma forma geral, não costuma preparar os estudantes e futuros profissionais para lidarem com fatos do processo ou com problemas estruturais na comprovação da verdade. Na realidade, uma análise geral dos currículos de cursos de graduação e especialização demonstra que a preocupação da academia jurídica, em grande medida, reside na busca de critérios interpretativos na aplicação de uma norma jurídica em detrimento de um estudo mais aprofundado ou sistêmico dos instrumentos de construção da verdade jurídica.
Falta-nos uma solidez epistemológica em relação ao fato jurídico.
Como se sabe, o ponto principal do processo – por mais estranho que possa parecer – não está necessariamente em se saber qual a melhor interpretação que se deva dar à norma jurídica. É óbvio, claro, que o direito consiste na aplicação de normas e, por isso mesmo, não se pode olvidar da extrema importância do estudo de seus critérios de interpretação, da sua dogmática e de outras vertentes teóricas. Entretanto, como é sabido, o direito apenas tem espaço quando há, no contexto tratado, um fato comprovado que detenha relevância jurídica, pois sem isso, o direito não tem o seu objeto de atuação.
Não há direito sem fatos. E por isso mesmo o fato, antes mesmo da norma jurídica, deveria merecer maior atenção de todos aqueles personagens do cotidiano forense. Com mais razão aqueles que atuam na seara penal e processual penal.
E aqui, especificamente, adquire crucial importância a solidez da epistemologia judiciária.
Só cabe falar em aplicação adequada da norma ao fato se, diante dos parâmetros aceitáveis de construção do conhecimento, puder se confirmar que o fato realmente existiu. É preciso, pois, que antes de se entender por tal ou qual solução jurídica, entenda-se se tal ou qual fato pode ser visto como algo concretizado, como algo demonstrado, e, por conseguinte, digno de apreciação jurídica. Sem isso, por evidente, de nada adianta esvaziar toneis de tinta para escrever linhas sobre a hermenêutica ou a dogmática sem ter como se apontar um fato como demonstrado.
Segundo Taruffo (2014, p. 17), “o direito define e seleciona os fatos”, portanto, o fato que interessa ao direito deve ter, antes de tudo, uma dimensão jurídica, capaz de torná-lo relevante. Mas, apesar disso, o fato também demanda uma dimensão empírica, já que adquire relevância como “[...] base de um caso jurídico somente quando pode ser dito que existem no mundo empírico”. Um homicídio, por exemplo, é um fato com dimensão jurídica, posto que criminalizado, mas, concretamente, só adquire espaço no âmbito processual quando realmente se está diante da comprovação de que um ser humano ceifou a vida de outro. Sem isso, tudo não passa de mera especulação teórica, e por esse motivo se clama tanto pela compreensão mais pungente do que seja a epistemologia judiciária.
O objetivo do processo penal, se pudéssemos resumi-lo, é a legitimação do poder punitivo do Estado, o qual somente se dá quando, diante do julgamento concreto, se consegue verificar que o exercício do poder se deu amparado em critérios racionais capazes de dar um grau mínimo de confiabilidade às conclusões exaradas na decisão (BADARÓ, 2019, p. 18). O papel do processo penal, pois, está na reconstrução histórica de um fato juridicamente relevante, a partir de critérios racionais e confiáveis, que permitam ao julgador, em primeiro plano, concluir pela ocorrência desse fato para, na sequência, poder optar pela melhor norma ou interpretação jurídica cabível. A intenção do julgador, ao fim e ao cabo, deve residir na busca da verdade.
Sem adentrar no mérito do que se possa compreender pela verdade – e muito menos dividi-la em graus, como parte da doutrina costuma fazer –, partimos desde logo da ideia de que a verdade é uma só, assim como descreve Schünemann (2013, p. 245). Porém, e aqui é um ponto importante, sabe-se que a verdade (no caso, conhecimento sobre ela), ao menos no que atine à reconstrução histórica de fatos, é aproximativa. Ou seja, a partir de métodos racionais de busca dessa verdade, pautados em critérios epistemológicos, é que poderemos apontar com o mínimo de segurança e probabilidade que determinada situação ocorreu no mundo dos fatos e, só a partir daí, conseguiremos buscar a melhor solução.
E o papel da epistemologia judiciária merece proeminência justamente nesse estado de coisas. Se consideramos que o processo só tem razão de ser se pautado na verdade dos fatos ali apreciados, é certo que apenas caberá confirmar a legitimidade da decisão adotada se, antes de tudo, se puder falar que o fato é verdadeiro, seguiu parâmetros racionais de confirmação e refutação e, ao final de tudo, superou todos os “testes”.
No processo penal, em específico, a hipótese a ser provada é uma só: aquela que consta do enunciado fático da denúncia. Toda a atividade probatória se fixará no intento de confirmar a hipótese (acusação) ou de refutá-la ou apresentar uma hipótese alternativa mais favorável (defesa). Mas essa atividade, quando necessita ser valorada pelo julgador, não pode ficar à mercê de uma leitura subjetiva ou por mera coerência (por ser mais “crível”). O juiz precisa indicar, racionalmente, de que maneira entendeu ocorrido o fato do processo ou, se muito, porque acredita que ele não ocorreu. E isso somente se faz possível pela epistemologia. Não há outro caminho.
É pelo estudo da epistemologia, por exemplo, que se pode definir quais são os melhores parâmetros que possibilitam crer que um fato está comprovado ou não. É pela epistemologia também que se podem fixar, de forma racional, o standard de prova mais adequado e, principalmente, verificar se ele foi ou não alcançado no caso concreto, ainda mais no processo penal, em que se fala tanto em “provas acima da dúvida razoável” (ou seja, não é qualquer comprovação da verdade que serve).
No ponto, alerta Badaró (2019, p. 84):
Por ser algo frequente ao longo de toda a vida e realizado de modo natural, quase automático, há uma crença comum de que valorar provas no processo é algo que se aprende quase que intuitivamente, não sendo necessário para tanto que adquirir conhecimentos específicos ou dominar técnicas epistemológicas mais sofisticadas. Essa equivocada concepção de que “os julgamentos sobre fatos constituem simples constatações da realidade”, muitas vezes, leva a uma acrítica recepção e aceitação dos juízos de fatos realizados pelos magistrados no processo. Se os juízes têm feito um mal uso do seu ‘livre convencimento’, o remédio não será eliminar esse princípio de valoração livre, mas estabelecer e aplicar mecanismos racionais e procedimentais que possam assegurar o bom uso da discricionariedade nas escolhas feitas na valoração da prova.
A epistemologia judiciária, portanto, não merecia ser tão menosprezada como se costuma fazer entre nós. É somente por meio dela que se podem retirar critérios seguros de construção do conhecimento juridicamente relevante a fim de apontar a veracidade ou não de um fato. Mas não só. É dela que surgem mecanismos de controle decisórios tão importantes quanto os critérios hermenêuticos tão debatidos atualmente. Sem antes definir quando o juiz pode dizer que algo realmente ocorreu num passado não tão distante, não adianta se debruçar em tantas regras e princípios de como interpretar a lei.
Por isso, como dito no título deste texto, devemos lutar por uma solidez epistemológica no processo penal.
REFERÊNCIAS
BADARÓ, Gustavo Henrique. Epistemologia judiciária e prova penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.
SCHÜNEMANN, Bernd. Um olhar crítico ao modelo processual penal norte-americano. In. Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito. São Paulo: Marcial Pons, 2013. p. 240-261.
TARUFFO, Michele. A prova. São Paulo: Marcial Pons, 2014.
Douglas Rodrigues da Silva
Mestre em Direito (UNICURITIBA)
Especialista em Direito Penal e Processo Penal (UNICURITIBA)
Bacharel em Direito (UNICURITIBA)
Professor de Direito Penal Econômico e Legislação Penal Especial nas Faculdades da Indústria de São José dos Pinhais (FIEP-IEL)
Advogado Criminal em Curitiba, Paraná.